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sábado, 23 de julho de 2022
Irmãos Grimm (O Senhor Korbes)
Houve, uma vez, um franguinho e uma franguinha que resolveram fazer uma viagem juntos. O franguinho construiu um lindo carrinho com quatro rodas vermelhas e atrelaram quatro ratinhos. A franguinha subiu, sentou-se ao lado do franguinho e partiram. Logo mais adiante, encontraram uma gata, que lhes perguntou para onde iam. O franguinho respondeu:
Nós vamos para fora,
Para a casa onde o Senhor Korbes mora.
- Levai-me convosco! - pediu a gata.
- Com muito gosto, - respondeu o franguinho, - senta-te atrás, porque na frente poderás cair.
Muito cuidado é preciso tomar
Para as rodinhas vermelhas não sujar.
Rodinha chia.
Ratinho assobia,
Nós vamos para fora,
Para a casa onde o Senhor Korbes mora.
Depois veio uma mó, depois um ovo, depois uma pata, depois um alfinete, e, por fim, uma agulha. Todos subiram no carro e viajaram juntos.
Mas, quando chegaram à casa do Senhor Korbes, o Senhor Korbes não estava. Os ratinhos levaram o carro ao paiol, o franguinho e a franguinha voaram para um galho, a gata acomodou-se na lareira, a pata empoleirou- se no cabo de bombear água, o ovo se embrulhou na toalha de rosto, o alfinete se enfiou na almofada da poltrona, a agulha pulou para a cama, no meio do travesseiro, e a mó ajeitou-se em cima da porta.
Pouco depois, voltou para casa o Senhor Korbes. Foi à lareira para acender o fogo e a gata atirou-lhe cinzas no rosto. Correu à cozinha para se lavar, e a pata esguichou-lhe água em cima. Quis enxugar-se na toalha, e o ovo rolou-lhe pelo rosto, quebrou-se e grudou-lhe os olhos. Quis descansar e foi sentar na poltrona, o alfinete espetou-o. Louco de raiva, foi atirar-se na cama, mas quando deitou a cabeça no travesseiro, a agulha picou-o de tal modo que ele soltou um grito de raiva e, furioso, quis fugir para fora. Mas, quando chegou à porta, a mó caiu em cima dele e matou-o.
O Senhor Korbes devia ser um homem muito mau, não achas?
sexta-feira, 22 de julho de 2022
Sammis Reachers (Seu Onório do Bairro Antonina – e o peixe que faz piscar o Universo)
Todos os dias, com sábados e domingos neles, ele aguarda as 17h e sai do Bairro Antonina, no município fluminense de São Gonçalo, numa viagem de dois ônibus até a praia de Gragoatá, em Niterói. Escolhe uma posição aleatória no grande calçadão que separa as praias de Boa Viagem e Gragoatá, sempre o ponto mais vazio da noite. Em seguida, lança sua linha de mão – pois jamais gostou de varas de pesca – e aguarda acontecer.
Nunca entendeu o motivo de tal extravagância do Universo, mas, que importa?
Na primeira vez foi assustador, e ele se acreditou morto. Era a terceira ida até o calçadão do Gragoatá, depois de anos pescando apenas na gonçalense Praia da Luz, local que se tornara inviável pela violência. A pesca de linha era sua forma de descontrair as noites, de embriagar – ele que nunca bebia – e engabelar sua solidão. O filho se fora para Anápolis, trabalhar no agro, mas isso era da vida e para tal fora criado. Mas ela... Ela a partida, ela a finada, ela era a sua dor.
Ia pras 20h quando a linha acusou retorno, rompendo a sonolenta divagação do velho solitário.
Ele puxou, e a dádiva do mar e da noite foi uma bela e inesperada raia viola. Susto imediato, pescar uma raia ali na costa, na potência da simples linha!
Ao apanhar o peixe, com cuidado pois jamais manuseara um daqueles, o velho Onório surpreendeu-se sorrindo – sim, sorrindo, depois de três anos de um luto travestido de eternidade.
Ao abrir cerimoniosamente a boca do peixe para remover o anzol, aconteceu.
Sua visão pareceu escurecer, como sucede quando se está prestes a um desmaio, mas logo foi inundada por um clarão oceânico. Três ou quatro segundos foram necessários para ele voltar a abrir os olhos, e agora já não havia noite nem mar.
Sentado num banco da praça Carlos Gianelli, no concorrido bairro de Alcântara, em São Gonçalo, sua primeira sensação foi daquela mão macia e aquecida segurando a sua. Olhou para o lado, e era ela, Amária. Não era possível! Antes que pudesse falar alguma coisa, ela se antecipou:
– Fique calmo, Onório. Eu estou aqui, eu estou aqui. – Ela disse, deitando a cabeça em seus ombros. Ele respondeu reclinando sua cabeça de encontro a dela, apertando ainda mais aquela mão, e só então fixando o olhar na paisagem, banhada pelo mais aconchegante dos sóis.
Um Fiat Tempra, retinindo de novo, cruzava a rua. Na outra mão, um ônibus da empresa Santa Isabel parava para o embarque de passageiros. Ele trabalhara naquela empresa que já não era, desfeita que fora em 2006. Só então ele deu-se conta: Aquela praça também já não existia; dera lugar a um obtuso shopping. Amária estava bem mais jovem do que quando partira, e isso tinha motivo, legível na paisagem e nas memórias: ele voltara até os anos 1990.
– Eu te amo tanto, Onório. Essa dor, ela é tanta, mas pra que isso? A vida acontece, e morrer foi da vida. Você precisa ser forte, precisa continuar.
– Eu sei. Eu sei! Mas não consigo, não consigo... De dia fico enfurnado naquela casa, ainda ouço a Rádio Tupi, só pra lembrar de quando ficávamos ouvindo as notícias e causos, eu consertando televisores, você na costura... Mas quando a tarde vai caindo eu não aguento, e preciso esquecer. Saio para pescar, e tentar esquecer você, mas não funciona muito bem. Por tantas vezes pensei em me jogar no mar!
– Nem tem pra que disso, Onório! Te conheci macho, macho te escolhi, então honre o que você foi e é. Tenha brios, homem!
– Ô minha fortuna... Só de estar aqui e falar com você, meu Deus, nunca tive um sonho tão doce, e tão real. Cê voltou dos mortos pra estar comigo!
– Ninguém volta dos mortos, meu carneirinho... E nem tem outra vida além dessa que vivi, que você vive. E sonho não tem cheiro. Sente esse cheirinho de angu à baiana, vindo daquela barraca? Aqui não é sonho nem realidade, é uma outra coisa, não tem nome pra isso. Seu amor que fez esse milagre, Onório.
– Mas é lindo, Amária, é lindo. E como você está linda. Esse vestido azul, nem me lembrava.
– Está na hora de você voltar, meu amor.
– Não, não! Que é isso, meu doce, aqui é meu lugar, que voltar o quê!
– Aqui nem é lugar, nem é nosso, Onório. Mas aqui estamos, isso foi uma piscadela do Universo, uma graça de Deus. Mas o Universo já está abrindo os olhos.
– Não, não, meu amor, eu te imploro!
– Vai. Amanhã o Universo vai piscar de novo.
Outro clarão acometeu aos olhos do viúvo, seguido por um escuro manso – processo do início da visão, mas ao revés.
Onório ainda estava com a raia nas mãos – peixe raro, de estranho nome científico, Zapteryx brevirostris, tão ameaçado de extinção quanto o amor. Nativo da Baía de Guanabara, sua pesca era proibida. O velho o lançou de volta ao mar.
E todos os dias, com sábados e domingos e tempestades neles, religiosamente o velho sai de seu agora já não tão mal cuidado casebre, situado numa travessa sem saída no Bairro Antonina, e vai até aquele calçadão niteroiense para pescar a mesma raia, em cuja boca o Universo pisca – ressuscitando, noite após noite, o moribundo Onório e seu amor.
Nunca entendeu o motivo de tal extravagância do Universo, mas, que importa?
Na primeira vez foi assustador, e ele se acreditou morto. Era a terceira ida até o calçadão do Gragoatá, depois de anos pescando apenas na gonçalense Praia da Luz, local que se tornara inviável pela violência. A pesca de linha era sua forma de descontrair as noites, de embriagar – ele que nunca bebia – e engabelar sua solidão. O filho se fora para Anápolis, trabalhar no agro, mas isso era da vida e para tal fora criado. Mas ela... Ela a partida, ela a finada, ela era a sua dor.
Ia pras 20h quando a linha acusou retorno, rompendo a sonolenta divagação do velho solitário.
Ele puxou, e a dádiva do mar e da noite foi uma bela e inesperada raia viola. Susto imediato, pescar uma raia ali na costa, na potência da simples linha!
Ao apanhar o peixe, com cuidado pois jamais manuseara um daqueles, o velho Onório surpreendeu-se sorrindo – sim, sorrindo, depois de três anos de um luto travestido de eternidade.
Ao abrir cerimoniosamente a boca do peixe para remover o anzol, aconteceu.
Sua visão pareceu escurecer, como sucede quando se está prestes a um desmaio, mas logo foi inundada por um clarão oceânico. Três ou quatro segundos foram necessários para ele voltar a abrir os olhos, e agora já não havia noite nem mar.
Sentado num banco da praça Carlos Gianelli, no concorrido bairro de Alcântara, em São Gonçalo, sua primeira sensação foi daquela mão macia e aquecida segurando a sua. Olhou para o lado, e era ela, Amária. Não era possível! Antes que pudesse falar alguma coisa, ela se antecipou:
– Fique calmo, Onório. Eu estou aqui, eu estou aqui. – Ela disse, deitando a cabeça em seus ombros. Ele respondeu reclinando sua cabeça de encontro a dela, apertando ainda mais aquela mão, e só então fixando o olhar na paisagem, banhada pelo mais aconchegante dos sóis.
Um Fiat Tempra, retinindo de novo, cruzava a rua. Na outra mão, um ônibus da empresa Santa Isabel parava para o embarque de passageiros. Ele trabalhara naquela empresa que já não era, desfeita que fora em 2006. Só então ele deu-se conta: Aquela praça também já não existia; dera lugar a um obtuso shopping. Amária estava bem mais jovem do que quando partira, e isso tinha motivo, legível na paisagem e nas memórias: ele voltara até os anos 1990.
– Eu te amo tanto, Onório. Essa dor, ela é tanta, mas pra que isso? A vida acontece, e morrer foi da vida. Você precisa ser forte, precisa continuar.
– Eu sei. Eu sei! Mas não consigo, não consigo... De dia fico enfurnado naquela casa, ainda ouço a Rádio Tupi, só pra lembrar de quando ficávamos ouvindo as notícias e causos, eu consertando televisores, você na costura... Mas quando a tarde vai caindo eu não aguento, e preciso esquecer. Saio para pescar, e tentar esquecer você, mas não funciona muito bem. Por tantas vezes pensei em me jogar no mar!
– Nem tem pra que disso, Onório! Te conheci macho, macho te escolhi, então honre o que você foi e é. Tenha brios, homem!
– Ô minha fortuna... Só de estar aqui e falar com você, meu Deus, nunca tive um sonho tão doce, e tão real. Cê voltou dos mortos pra estar comigo!
– Ninguém volta dos mortos, meu carneirinho... E nem tem outra vida além dessa que vivi, que você vive. E sonho não tem cheiro. Sente esse cheirinho de angu à baiana, vindo daquela barraca? Aqui não é sonho nem realidade, é uma outra coisa, não tem nome pra isso. Seu amor que fez esse milagre, Onório.
– Mas é lindo, Amária, é lindo. E como você está linda. Esse vestido azul, nem me lembrava.
– Está na hora de você voltar, meu amor.
– Não, não! Que é isso, meu doce, aqui é meu lugar, que voltar o quê!
– Aqui nem é lugar, nem é nosso, Onório. Mas aqui estamos, isso foi uma piscadela do Universo, uma graça de Deus. Mas o Universo já está abrindo os olhos.
– Não, não, meu amor, eu te imploro!
– Vai. Amanhã o Universo vai piscar de novo.
Outro clarão acometeu aos olhos do viúvo, seguido por um escuro manso – processo do início da visão, mas ao revés.
Onório ainda estava com a raia nas mãos – peixe raro, de estranho nome científico, Zapteryx brevirostris, tão ameaçado de extinção quanto o amor. Nativo da Baía de Guanabara, sua pesca era proibida. O velho o lançou de volta ao mar.
E todos os dias, com sábados e domingos e tempestades neles, religiosamente o velho sai de seu agora já não tão mal cuidado casebre, situado numa travessa sem saída no Bairro Antonina, e vai até aquele calçadão niteroiense para pescar a mesma raia, em cuja boca o Universo pisca – ressuscitando, noite após noite, o moribundo Onório e seu amor.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Texto enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata (Nanocontos) 2
Altivez
Decididos, seus pés nunca escorregaram nos seixos: equilibraram-se na certeza.
= = = = = = = = = = =
Compreensão
Saiu possessa com a vida. No jardim a rosa perfumada se oferecia com espinhos… aí compreendeu.
= = = = = = = = = = =
Decência
Embora o chão tenha sido sempre irregular, conduziu-o sem abalos a lisura do seu pisar,
= = = = = = = = = = =
Doppia faccia
Era maldoso e destemido e se enfurecia por pouco, mas, nos braços do namorado, implorava por tudo...
= = = = = = = = = = =
Esbanjador
Beber à vida e beber a vida: pequeno acento que diferencia a gravidade do ato.
= = = = = = = = = = =
Maléfica
A inveja pariu a curiosidade e a pôs reinar, má, nos olhos do invejoso.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Março
A Tristeza aliou-se à carranca do tempo, mas o sol, dissolvendo nuvens, puxou pelas mãos a Alegria.
= = = = = = = = = = =
Parasitas
Enquanto penamos com o colesterol, elas esbanjam vitalidade e robustez: malditas rugas.
= = = = = = = = = = =
Poesia
Um belo verso nunca nasceu da pena ou da tecla; é a inspiração quem o pariu.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Poleiro
Sentia-se o dono, por isso cantava alto e estridente, mas foi traído: por uma voz aveludada.
= = = = = = = = = = =
Por dentro...
A lápide de granito polido brilha ao sol, mas soube sempre do miolo que teria.
= = = = = = = = = = =
Profissão
Quis ser goleiro e foi. Montou um aviário com o resultado.
= = = = = = = = = = =
Responsabilidade
A liberdade pesou-lhe tanto que a imaginou uma prisão de desejos.
= = = = = = = = = = =
Sabedoria
Bom exemplo o da girafa: sempre vê tudo do alto, mas nada diz.
= = = = = = = = = = =
Soberba
Sua inteligência brilhava tanto que iluminou a vaidade. Morreu de personalidade ofuscada.
Decididos, seus pés nunca escorregaram nos seixos: equilibraram-se na certeza.
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Compreensão
Saiu possessa com a vida. No jardim a rosa perfumada se oferecia com espinhos… aí compreendeu.
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Decência
Embora o chão tenha sido sempre irregular, conduziu-o sem abalos a lisura do seu pisar,
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Doppia faccia
Era maldoso e destemido e se enfurecia por pouco, mas, nos braços do namorado, implorava por tudo...
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Esbanjador
Beber à vida e beber a vida: pequeno acento que diferencia a gravidade do ato.
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Maléfica
A inveja pariu a curiosidade e a pôs reinar, má, nos olhos do invejoso.
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Março
A Tristeza aliou-se à carranca do tempo, mas o sol, dissolvendo nuvens, puxou pelas mãos a Alegria.
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Parasitas
Enquanto penamos com o colesterol, elas esbanjam vitalidade e robustez: malditas rugas.
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Poesia
Um belo verso nunca nasceu da pena ou da tecla; é a inspiração quem o pariu.
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Poleiro
Sentia-se o dono, por isso cantava alto e estridente, mas foi traído: por uma voz aveludada.
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Por dentro...
A lápide de granito polido brilha ao sol, mas soube sempre do miolo que teria.
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Profissão
Quis ser goleiro e foi. Montou um aviário com o resultado.
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Responsabilidade
A liberdade pesou-lhe tanto que a imaginou uma prisão de desejos.
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Sabedoria
Bom exemplo o da girafa: sempre vê tudo do alto, mas nada diz.
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Soberba
Sua inteligência brilhava tanto que iluminou a vaidade. Morreu de personalidade ofuscada.
Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.
quinta-feira, 21 de julho de 2022
Daniel Maurício (Poética) 35
Paulo Mendes Campos (Alice no Rio)
Um dia, se o coração não espocar antes do tempo, escreverei uma história para crianças: Alice no País dos Cariocas.
Alice chegará por via aérea e, naturalmente, ficará encantada com a exuberância da paisagem e com os aviões que vão passar tirando finos em seu quadrimotor. No Galeão, será recebida por um representante do Departamento de Turismo e Certames da Prefeitura, chamado Dr. Brasiliano Brasileiro do Brasil, um general de pijama, metido mesmo em um pijama cheio de galões, um bispo auxiliar, sem esquecer, por último mas não menos importante, o Sr. Herbert Moses, que a saudará naquele inglês ao mesmo tempo manco e fluente, cometendo diversos trocadilhos em torno das palavras Wonderland e Wondertown, País das Maravilhas e Cidade Maravilhosa.
Deixando de automóvel o aeroporto, a menina perguntará ao Dr. BBB se os urubus e o cheiro da Favela do Esqueleto não prejudicam um pouco o renome do turismo. Brasiliano Brasileiro do Brasil, relações públicas de inesgotáveis recursos, responderá em tom confidencial que se trata de um item secreto e estratégico na Defesa do Atlântico Sul. "Como eu sou mesmo boba", exclamará Alice, "devia ter pensado isso antes."
O quarto do hotel reservado à estrangeirinha será um amor. Das prateadas torneiras do esplêndido banheiro colorido jorrará, em vez de água, um som subterrâneo e melancólico. Alice achará excelente tomar o seu banho com suco de uva, pois logo naquele dia faltou água mineral na praça.
A primeira refeição de Alice no País dos Cariocas constará de feijoada completa, da qual darei no meu livrinho uma descrição igualmente completa, a fim de justificar o espanto da menina ao ter de enfrentar, assim de saída, esse delicioso, mas tão estranho, prato nacional. Ela ficará morrendo de fome o dia todo.
O Dr. BBB pedirá gentilmente que ela escolha entre dois programas: uma visita oficial, mas não formal, ao presidente da SURSAN, ou uma visita formal, mas não oficial, ao Sr. Prefeito. Alice, é claro, responderá com um bocejo que é a mesma coisa, sendo, portanto, conduzida ao gabinete do Prefeito. Este a fará esperar duas horas, mas justificará plenamente o atraso: estava tentando fazer uma ligação telefônica na hora do resultado do jogo-do-bicho. "Nas outras horas, é mais fácil falar no telefone?" - indaga a visitante. "Não, é a mesma coisa" - responde o Prefeito com tristeza. Em seguida, colocarei, data venia, na boca do Sr. Prefeito uma explanação minuciosa sobre o jogo-do-bicho. Truque literário.
Despedindo-se de S. Exa., Alice percorrerá os recantos da cidade considerados pitorescos ou instrutivos pelo Dr. Brasiliano Brasileiro do Brasil: o Manequinho de Botafogo (por causa daquela aguazinha), as enfermarias da Santa Casa, os principais buracos urbanos e suburbanos, a Casa de Rui Barbosa (ele tem um grande amigo de seu povo, doutrinará o Dr. BBB), a Gaiola de Ouro (grandes discursos), o mausoléu da Praça da República, e o palácio que não ousa dizer seu nome (situado no fim da Praia do Leblon). A menina pedirá para dar um passeio de lotação e será atendida.
Ao fim da tarde, as Pioneiras Sociais lhe oferecerão um chá na piscina do Copa, sob o patrocínio de Madame Gato, e Jabberwocky. Um colunista chamado Jeff Thomas estará presente, e de chapéu na cabeça, como o chapeleiro na xícara maluca. Tudo lindo.
À noite, Alice será levada a uma emissora de televisão, onde será entrevistada por Al Neto e seu cachimbo apagado. Este fará à menina umas perguntas de corar um telespectador de pedra. Duas delas, no entanto, são publicáveis, e aqui as forneço: 1) "My dear Alice: você esteve no País das Maravilhas, mas soube por acaso, darling, que já estive várias vezes na Maravilha dos Países, os Estados Unidos do Benjamin Franklin, de Ford, de Jane Mansfield, de Rockefeller, de Elza Maxwell?"; 2) "Me diz, my little honey, se você fosse ainda uma potranquinha (com o perdão da palavra um pouco forte, mas acontece que sou do Sul, tanto aqui, quanto nos States), quem você levaria, my rosy rutabaga, para uma ilha deserta: Mickey Mouse (pausa, sorriso inteligente, audaz, malicioso, piscadela para a câmara)... ou Marlon Brando?"
Findo o programa, presenteada com um corte de casimira nacional, ela seria convidada, pelo Al Neto, a mandar um beijo para milhares de seus amiguinhos do Brasil. Mas não mandaria.
À noite, a menina seria levada a um inferninho de Copacabana; o curador de menores entra e acaba com a minha história. Ou talvez eu a faça sofrer, primeiro, um acesso de tosse, provocada pela fumaça dos cigarros; depois, dormir de tédio e sonhar uma cidade com água dentro dos canos, ruas pavimentadas, praias limpas, trânsito em ordem, gente cordial, sem favelas, miséria, barulho, mau cheiro, enchentes, burocracia.
Ou desisto de escrever esse livro monótono, que iria servir apenas para os pais de crianças teimosas: "Ou vais imediatamente para a cama, seu moleque, ou eu te leio a historia Alice no País dos Cariocas."
Estou decidido: a minha história de Alice no Rio não presta; vou é escrever as Aventuras do Filho de Jeca Tatuzinho.
Alice chegará por via aérea e, naturalmente, ficará encantada com a exuberância da paisagem e com os aviões que vão passar tirando finos em seu quadrimotor. No Galeão, será recebida por um representante do Departamento de Turismo e Certames da Prefeitura, chamado Dr. Brasiliano Brasileiro do Brasil, um general de pijama, metido mesmo em um pijama cheio de galões, um bispo auxiliar, sem esquecer, por último mas não menos importante, o Sr. Herbert Moses, que a saudará naquele inglês ao mesmo tempo manco e fluente, cometendo diversos trocadilhos em torno das palavras Wonderland e Wondertown, País das Maravilhas e Cidade Maravilhosa.
Deixando de automóvel o aeroporto, a menina perguntará ao Dr. BBB se os urubus e o cheiro da Favela do Esqueleto não prejudicam um pouco o renome do turismo. Brasiliano Brasileiro do Brasil, relações públicas de inesgotáveis recursos, responderá em tom confidencial que se trata de um item secreto e estratégico na Defesa do Atlântico Sul. "Como eu sou mesmo boba", exclamará Alice, "devia ter pensado isso antes."
O quarto do hotel reservado à estrangeirinha será um amor. Das prateadas torneiras do esplêndido banheiro colorido jorrará, em vez de água, um som subterrâneo e melancólico. Alice achará excelente tomar o seu banho com suco de uva, pois logo naquele dia faltou água mineral na praça.
A primeira refeição de Alice no País dos Cariocas constará de feijoada completa, da qual darei no meu livrinho uma descrição igualmente completa, a fim de justificar o espanto da menina ao ter de enfrentar, assim de saída, esse delicioso, mas tão estranho, prato nacional. Ela ficará morrendo de fome o dia todo.
O Dr. BBB pedirá gentilmente que ela escolha entre dois programas: uma visita oficial, mas não formal, ao presidente da SURSAN, ou uma visita formal, mas não oficial, ao Sr. Prefeito. Alice, é claro, responderá com um bocejo que é a mesma coisa, sendo, portanto, conduzida ao gabinete do Prefeito. Este a fará esperar duas horas, mas justificará plenamente o atraso: estava tentando fazer uma ligação telefônica na hora do resultado do jogo-do-bicho. "Nas outras horas, é mais fácil falar no telefone?" - indaga a visitante. "Não, é a mesma coisa" - responde o Prefeito com tristeza. Em seguida, colocarei, data venia, na boca do Sr. Prefeito uma explanação minuciosa sobre o jogo-do-bicho. Truque literário.
Despedindo-se de S. Exa., Alice percorrerá os recantos da cidade considerados pitorescos ou instrutivos pelo Dr. Brasiliano Brasileiro do Brasil: o Manequinho de Botafogo (por causa daquela aguazinha), as enfermarias da Santa Casa, os principais buracos urbanos e suburbanos, a Casa de Rui Barbosa (ele tem um grande amigo de seu povo, doutrinará o Dr. BBB), a Gaiola de Ouro (grandes discursos), o mausoléu da Praça da República, e o palácio que não ousa dizer seu nome (situado no fim da Praia do Leblon). A menina pedirá para dar um passeio de lotação e será atendida.
Ao fim da tarde, as Pioneiras Sociais lhe oferecerão um chá na piscina do Copa, sob o patrocínio de Madame Gato, e Jabberwocky. Um colunista chamado Jeff Thomas estará presente, e de chapéu na cabeça, como o chapeleiro na xícara maluca. Tudo lindo.
À noite, Alice será levada a uma emissora de televisão, onde será entrevistada por Al Neto e seu cachimbo apagado. Este fará à menina umas perguntas de corar um telespectador de pedra. Duas delas, no entanto, são publicáveis, e aqui as forneço: 1) "My dear Alice: você esteve no País das Maravilhas, mas soube por acaso, darling, que já estive várias vezes na Maravilha dos Países, os Estados Unidos do Benjamin Franklin, de Ford, de Jane Mansfield, de Rockefeller, de Elza Maxwell?"; 2) "Me diz, my little honey, se você fosse ainda uma potranquinha (com o perdão da palavra um pouco forte, mas acontece que sou do Sul, tanto aqui, quanto nos States), quem você levaria, my rosy rutabaga, para uma ilha deserta: Mickey Mouse (pausa, sorriso inteligente, audaz, malicioso, piscadela para a câmara)... ou Marlon Brando?"
Findo o programa, presenteada com um corte de casimira nacional, ela seria convidada, pelo Al Neto, a mandar um beijo para milhares de seus amiguinhos do Brasil. Mas não mandaria.
À noite, a menina seria levada a um inferninho de Copacabana; o curador de menores entra e acaba com a minha história. Ou talvez eu a faça sofrer, primeiro, um acesso de tosse, provocada pela fumaça dos cigarros; depois, dormir de tédio e sonhar uma cidade com água dentro dos canos, ruas pavimentadas, praias limpas, trânsito em ordem, gente cordial, sem favelas, miséria, barulho, mau cheiro, enchentes, burocracia.
Ou desisto de escrever esse livro monótono, que iria servir apenas para os pais de crianças teimosas: "Ou vais imediatamente para a cama, seu moleque, ou eu te leio a historia Alice no País dos Cariocas."
Estou decidido: a minha história de Alice no Rio não presta; vou é escrever as Aventuras do Filho de Jeca Tatuzinho.
Fonte:
Paulo Mendes Campos. Rir é o único jeito. 1976. (reedição de Hora do Recreio, de 1967)
Paulo Mendes Campos. Rir é o único jeito. 1976. (reedição de Hora do Recreio, de 1967)
quarta-feira, 20 de julho de 2022
Athos Fernandes (Poemas de Amor) 1
A LEI DO AMOR
Por ser o Amor a lei da espécie humana,
somente às leis da espécie ele obedece,
pois sendo um deus, atende à própria prece
E, se às vezes redime, - às vezes dana!
Tal qual a rosa de Sharon floresce
na primavera, a mocidade ufana.
É como um vinho bom, que não engana,
embriaga melhor quando envelhece.
O Amor, já disse alguém, de amor se paga.
Se fere, cura; e quando agride, afaga,
seiva que nutre e combustão que inflama.
E assim se vê que pela vida afora,
se muito pode a dor, para quem chora,
mil vezes pode o Amor, para quem ama!
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NOSSA HISTÓRIA DE AMOR
Nossa história de amor nasceu do acaso,
ou quem sabe talvez de algo divino?
Um sorriso, um olhar, um breve aceno
e a fênix morta ressurgiu das cinzas.
Foi como se o outono e a primavera
num encontro fortuito, em pleno estio,
entre roseiras e canções de ninhos,
viessem percorrer a mesma estrada.
Eu era o outono em véspera de inverno.
Você, a primavera aberta em flores,
entre nós dois o mundo, o tempo e o espaço.
Venceu, no entanto, o amor. Como detê-lo?
Como impedir que o sol sazone o fruto
quando é própria a estação para a colheita?
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SAUDADE
Saudade: olhar perdido no horizonte,
mirando as nuvens que depressa vão.
Saudade: uma casinha ao pé da fonte,
cheia de sonhos e de solidão!
Saudade, cruz plantada lá no monte,
onde alguém dorme na eternal mansão.
Saudade: bela e invisível ponte
que liga coração a coração!
Saudade! Ave Maria da Esperança!
Crepúsculo do Amor! Alma de criança,
que castigada ainda deseja bem...
Saudade é dor que só traduz quem sente,
porque a saudade é o coração da gente
já misturado ao coração de alguém.
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SEMPRE O AMOR
Nunca é demais o amor! Nunca é perdido
o mais ínfimo sonho que sonhamos.
Amemos hoje e amando envelheçamos,
que muito amar é muito ter vivido.
Toda a glória do amor é ser sentido
sem sacrifício algum de alguém que amamos.
E glória ainda maior quando choramos,
porque chorar de amor é ter sorrido.
Amor!...Sublime e lúcida loucura!
Tão forte é a sua trama, o seu poder,
de aço que fere e bálsamo que cura.
De tal modo atormenta e dá prazer,
que às vezes na tristeza traz ventura
e às vezes na alegria faz sofrer!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
VELHA MUSA
A minha velha Musa enamorada,
que comigo habitou por muitos anos,
de tanto partilhar meus desenganos
ficou também por mim desenganada.
E abandonou de vez a minha amada;
onde à custa de esforços sobre-humanos,
em pobres versos não camonianos,
do amor eu canto a última balada...
Se alguém a vir, não a maltrate nunca,
pois a coitada as próprias mágoas trunca,
como truncou meus versos tantos vezes...
Velha e caduca, ainda a quero,
pois que o amor mais velho é mais sincero,
unindo as almas como irmãos siameses!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
VERSOS DE AMOR
Versos de amor...quantos não há, querida?
Por que motivos, pois, devo escrevê-los?
Se estou junto de ti, não sinto zelos,
e longe estando, que me importa a vida?
O amor é fruta rara e apetecida
que exige trato e que requer desvelos.
Meus minutos de amor quero vivê-los
sem cogitar da hora da partida!
Deixa-me, pois, dormir no teu regaço!
Cada carícia é um hino à tua graça,
e que cada beijo um verso que te faço!
Quero-te assim, e assim, sei que me queres!
Não há ser mais feliz na humana raça,
nem mulher mais amada entre as mulheres!
Por ser o Amor a lei da espécie humana,
somente às leis da espécie ele obedece,
pois sendo um deus, atende à própria prece
E, se às vezes redime, - às vezes dana!
Tal qual a rosa de Sharon floresce
na primavera, a mocidade ufana.
É como um vinho bom, que não engana,
embriaga melhor quando envelhece.
O Amor, já disse alguém, de amor se paga.
Se fere, cura; e quando agride, afaga,
seiva que nutre e combustão que inflama.
E assim se vê que pela vida afora,
se muito pode a dor, para quem chora,
mil vezes pode o Amor, para quem ama!
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NOSSA HISTÓRIA DE AMOR
Nossa história de amor nasceu do acaso,
ou quem sabe talvez de algo divino?
Um sorriso, um olhar, um breve aceno
e a fênix morta ressurgiu das cinzas.
Foi como se o outono e a primavera
num encontro fortuito, em pleno estio,
entre roseiras e canções de ninhos,
viessem percorrer a mesma estrada.
Eu era o outono em véspera de inverno.
Você, a primavera aberta em flores,
entre nós dois o mundo, o tempo e o espaço.
Venceu, no entanto, o amor. Como detê-lo?
Como impedir que o sol sazone o fruto
quando é própria a estação para a colheita?
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SAUDADE
Saudade: olhar perdido no horizonte,
mirando as nuvens que depressa vão.
Saudade: uma casinha ao pé da fonte,
cheia de sonhos e de solidão!
Saudade, cruz plantada lá no monte,
onde alguém dorme na eternal mansão.
Saudade: bela e invisível ponte
que liga coração a coração!
Saudade! Ave Maria da Esperança!
Crepúsculo do Amor! Alma de criança,
que castigada ainda deseja bem...
Saudade é dor que só traduz quem sente,
porque a saudade é o coração da gente
já misturado ao coração de alguém.
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SEMPRE O AMOR
Nunca é demais o amor! Nunca é perdido
o mais ínfimo sonho que sonhamos.
Amemos hoje e amando envelheçamos,
que muito amar é muito ter vivido.
Toda a glória do amor é ser sentido
sem sacrifício algum de alguém que amamos.
E glória ainda maior quando choramos,
porque chorar de amor é ter sorrido.
Amor!...Sublime e lúcida loucura!
Tão forte é a sua trama, o seu poder,
de aço que fere e bálsamo que cura.
De tal modo atormenta e dá prazer,
que às vezes na tristeza traz ventura
e às vezes na alegria faz sofrer!
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VELHA MUSA
A minha velha Musa enamorada,
que comigo habitou por muitos anos,
de tanto partilhar meus desenganos
ficou também por mim desenganada.
E abandonou de vez a minha amada;
onde à custa de esforços sobre-humanos,
em pobres versos não camonianos,
do amor eu canto a última balada...
Se alguém a vir, não a maltrate nunca,
pois a coitada as próprias mágoas trunca,
como truncou meus versos tantos vezes...
Velha e caduca, ainda a quero,
pois que o amor mais velho é mais sincero,
unindo as almas como irmãos siameses!
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VERSOS DE AMOR
Versos de amor...quantos não há, querida?
Por que motivos, pois, devo escrevê-los?
Se estou junto de ti, não sinto zelos,
e longe estando, que me importa a vida?
O amor é fruta rara e apetecida
que exige trato e que requer desvelos.
Meus minutos de amor quero vivê-los
sem cogitar da hora da partida!
Deixa-me, pois, dormir no teu regaço!
Cada carícia é um hino à tua graça,
e que cada beijo um verso que te faço!
Quero-te assim, e assim, sei que me queres!
Não há ser mais feliz na humana raça,
nem mulher mais amada entre as mulheres!
Fontes:
Athos Fernandes. Miscelânea Poética. 1979.
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.
Athos Fernandes. Miscelânea Poética. 1979.
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.
terça-feira, 19 de julho de 2022
Nilto Maciel (Questões de Estilo)
Salomão governava com mão de pluma. Quando estudante, até fizera versos. Queria ser poeta. Conhecia os melhores poetas da língua portuguesa. Dos mais antigos aos mais modernos. Com o tempo, trocou os versos pelos discursos. E o moderno pelo antigo. Terminou prefeito de Palma.
Vivia discutindo com seu secretário, que redigia torto. Pedia um ofício, vinha uma barbaridade.
— O que significa isso, Seu Elias?
O secretário ria, tentava explicar. Salomão se irritava, falava mal dos neologismos, das gírias, da linguagem dos jornais.
— Não sabem escrever. Bando de analfabetos.
Todo dia os dois discutiam por força das palavras, da sintaxe, dos estilos. O prefeito apegado à gramática, o secretário às novidades.
— Lembre-se de que sou íntimo de Camões, Bilac, Bandeira e de todos os grandes poetas.
Até que resolveu demitir Elias.
Já velho, família para cuidar, o ex-secretário buscou socorro nos moderníssimos olhos da primeira-dama.
— Só sei fazer isso, Dona Josefina. E não há mais tempo para aprender outro ofício.
À noite, Salomão se aborreceu de novo. Não, não voltaria atrás. Palavra de prefeito, palavra de rei. Não admitia barbarismos, barbaridades, barbáries.
— Não seja mau, Salomão. O coitado até chorou.
Do pedido passaram às ordens, destas a dominados e dominantes. E terminaram em revoltas e mortes. A ruína da sociedade, da família, do casamento.
— Vamos então ao divórcio! — ele esbravejou.
Ela chorou, os filhos choramingaram, a vizinhança sorriu. Nem a poesia salvava a felicidade.
Perto da meia-noite, o bate-boca acabou. Ora, direis. Os filhos já dormiam. Os vizinhos se entreolhavam, decepcionados.
No outro dia, Elias voltou à Prefeitura.
Redija um ofício ao Governador. — ordenou Salomão. — E pode usar o seu estilo.
Vivia discutindo com seu secretário, que redigia torto. Pedia um ofício, vinha uma barbaridade.
— O que significa isso, Seu Elias?
O secretário ria, tentava explicar. Salomão se irritava, falava mal dos neologismos, das gírias, da linguagem dos jornais.
— Não sabem escrever. Bando de analfabetos.
Todo dia os dois discutiam por força das palavras, da sintaxe, dos estilos. O prefeito apegado à gramática, o secretário às novidades.
— Lembre-se de que sou íntimo de Camões, Bilac, Bandeira e de todos os grandes poetas.
Até que resolveu demitir Elias.
Já velho, família para cuidar, o ex-secretário buscou socorro nos moderníssimos olhos da primeira-dama.
— Só sei fazer isso, Dona Josefina. E não há mais tempo para aprender outro ofício.
À noite, Salomão se aborreceu de novo. Não, não voltaria atrás. Palavra de prefeito, palavra de rei. Não admitia barbarismos, barbaridades, barbáries.
— Não seja mau, Salomão. O coitado até chorou.
Do pedido passaram às ordens, destas a dominados e dominantes. E terminaram em revoltas e mortes. A ruína da sociedade, da família, do casamento.
— Vamos então ao divórcio! — ele esbravejou.
Ela chorou, os filhos choramingaram, a vizinhança sorriu. Nem a poesia salvava a felicidade.
Perto da meia-noite, o bate-boca acabou. Ora, direis. Os filhos já dormiam. Os vizinhos se entreolhavam, decepcionados.
No outro dia, Elias voltou à Prefeitura.
Redija um ofício ao Governador. — ordenou Salomão. — E pode usar o seu estilo.
Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.
Caldeirão Poético L
Amélia Tomás
Cantagalo/RJ, 1897 – 1992
PANTEISMO
Vem abrir para o sol os teus olhos contentes
Diante da natureza e, em profano ritual,
Alma! às árvores conta a estranha ânsia que sentes
Em cada ondulação de cada vegetal!
Onde um rumor de vento entre as folhas pressentes,
Ouves um coração que te segreda e é tal
A alta repercussão dessas forças latentes,
Que vês na árvore um templo e na folha um missal.
Talvez, há muito tempo, em séculos distantes,
Por capricho de um deus foste árvore; de então
Guardaste a compreensão dos galhos soluçantes...
E de transmigração para transmigração,
No teu sangue ainda flui, em átomos errantes,
A angústia vegetal que há no teu coração ...
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Américo Falcão
Lucena/PB, 1880 – 1942, João Pessoa/PB
VENCIDO
Há longos anos, num pontal vivia,
firme, na areia, intrépido coqueiro,
alto, esbelto, soberbo... e resistia
todo rigor do rígido pampeiro.
Depois, frágil, sem vida se sentia,
pois, lentamente, o velho mar traiçoeiro
todo o seivoso pé lhe carcomia,
para vê-lo cair como um guerreiro!
E numa tarde lúgubre de agosto
fê-lo tombar exânime, na areia,
envolto na penumbra do sol-posto.
Houve uma cena trágica e sublime.
Chorava, de saudade, a maré cheia...
De certo o mar, se arrependeu do crime.
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Antonieta Borges Alves
Cruzeiro/SP, 1906 – ???, Diadema/SP
CREPUSCULAR
No silêncio da tarde azul de fevereiro,
o horizonte irradia esplendor de cristais!
Até um sabiá que mora no coqueiro
suspendeu, enlevado, os ritmos tropicais...
Tanta calma faz crer que, sob o céu fagueiro,
as almas sem amor já não existem mais,
que a paisagem deslumbra e, pelo mundo inteiro,
todos sabem sentir amenos vesperais!
Mas, enquanto lá fora as nuvens do poente
põem limalhas de céu no espelho da lagoa
e põem no entardecer primícias de arrebol,
tu vais sem perceber o espaço reluzente,
sem prever que não é, não pode ser à-toa
que existe fevereiro e existe a luz do sol!...
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Aparício Fernandes
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ
O PRESIDIÁRIO
Ó meu irmão, meu pobre irmão que choras
as lágrimas sentidas de um culpado,
se a lei dos homens te amargura as horas,
perante Deus ninguém é condenado!
Se a fé te anima e se contrito imploras
O suave amparo do Crucificado,
terás a luz de todas as auroras,
sobrepujando a mancha do pecado!
Não há prisão, nem há força que dobre
o coração que um dia se faz nobre
e tudo aceita sem guardar rancor!
Jesus perdoou Dimas, Madalena...
— Assim, também, à tua amarga pena
abre os seus braços de infinito amor!
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Athos Fernandes
Itaperuna/RJ, 1920 – 1979, Bom Jesus do Itabapoana/RJ
PEDINTES
O pobre pede o pão. O nobre pede o trono.
O santo pede o altar, o crente pede a missa,
e quem das leis sociais sofre amargo abandono
ergue as mãos para o Céu, pedindo por justiça.
Quem ama pede amor. O insone pede o sono.
O mártir pede a cruz, e pede, o herói, a liça.
Pede o inverno o verão. A primavera o outono,
e o sábio pede a luz da verdade castiça!
Quem luta pede a paz. O enfermo pede a cura.
O verme pede a terra e a águia pede a altura
e quem sofre a opressão pede a mão que o redima.
E o Poeta, também, seguindo a mesma norma,
é um mendigo a pedir a pureza da Forma,
a beleza da Ideia e a riqueza da Rima!
Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.
Sammis Reachers (O Triciclo dos Alucinados)
Bem no início de nossa estranha amizade, me lembro de que o avô de Renato ainda era vivo. O quintal onde moravam era composto pela casinha desse avô, seu Cândio (provavelmente “Cândido”), e sua esposa, dona Conceição, e aos fundos ficava o barraco da família de Renato.
Na frente, havia uma pequena birosca – Uma barraca, como chamamos aqui, que é na verdade uma minúscula venda dedicada fundamentalmente ao comércio de destilados (cachaça). No tempo eu era bem pequeno, mas uma memória que guardo era do coco em conserva: Pedaços de coco curtidos numa espécie de salmoura, que eram vendidos a alguns centavos cada porção. Eram gostosos!
Foi ali naquela birosca, ainda na infância, que Renato iniciou suas aventuras em algo que, anos depois, se tornaria um vício e lhe custaria a vida: O consumo de bebidas alcoolicas.
Mas deixemos de lado as rudezas da vida, e vamos ao pitoresco.
Esse seu Cândio, homem negro com traços que lembravam de muito longe o ator Grande Otelo, era cadeirante, em decorrência das pernas amputadas. O velho possuía uma estranhíssima cadeira de rodas: Era na verdade um tipo de triciclo, com uma manivela ligada a um eixo de pedais como de uma bicicleta, adaptada para ser movida com as mãos. Assim, forçando aquela manivela, o velho podia mover a cadeira-triciclo, ganhando alguma autonomia.
No objetivo de comprar mercadorias para sua venda, e também apanhar algumas doações que os comerciantes do CEASA lhe forneciam, seu Cândio costumava ir até o CEASA de São Gonçalo, que ficava a coisa de uns cinco quilômetros de nosso bairro. De ônibus são apenas dez minutos. Mas, na força da canela, era duríssima a caminhada, pois o velhote ia naquele triciclo, sendo quase sempre empurrado ou por Volnei, irmão mais velho de Renato, ou pelo próprio. Numa dessas idas ao CEASA (que eu não tinha a menor ideia do que e onde era), fui convidado a juntar-me à expedição. Quem sabe não foi aí que surgiu ou sedimentou-se nossa dupla expedicionária canelar? Confesso que não me lembro.
E lá fomos nós, para uma distância que eu jamais havia percorrido a pé, avançando pela perigosa beira da pista ou estrada.
Na volta, já exaurido, participei de algo que era normal de ocorrer, segundo Renato, quando ele saía assim com o avô, tendo chegado na altura do que hoje é a Honda Motos, naquela pequena ladeira que vai dar onde atualmente é o Instituto Médico Legal e o posto da Polícia Rodoviária de Tribobó, Renato, no que o segui, pendurou-se na parte de trás do triciclo (sim, havia um pedestal aparentemente para isso!), e lá fomos nós, descendo a toda numa única cadeira de rodas, três pessoas: Duas crianças e um senhor de quase setenta anos!
Imagine a cena, amigo leitor: Você, pacato citadino passando de automóvel ou ônibus, avançando sorumbático para seu trabalho ou estudo, refém de mil horários e sistemas, e vendo do livre lado de fora uma sinistra cadeira de rodas descendo a grande, insana velocidade asfalto abaixo, com um velhinho amputado como “piloto” e duas crianças de carona!!! Era a vida loka ainda no seu modo 1.0...
Pouco tempo depois, seu Cândio infelizmente veio a falecer, e a vendinha foi fechada.
Na frente, havia uma pequena birosca – Uma barraca, como chamamos aqui, que é na verdade uma minúscula venda dedicada fundamentalmente ao comércio de destilados (cachaça). No tempo eu era bem pequeno, mas uma memória que guardo era do coco em conserva: Pedaços de coco curtidos numa espécie de salmoura, que eram vendidos a alguns centavos cada porção. Eram gostosos!
Foi ali naquela birosca, ainda na infância, que Renato iniciou suas aventuras em algo que, anos depois, se tornaria um vício e lhe custaria a vida: O consumo de bebidas alcoolicas.
Mas deixemos de lado as rudezas da vida, e vamos ao pitoresco.
Esse seu Cândio, homem negro com traços que lembravam de muito longe o ator Grande Otelo, era cadeirante, em decorrência das pernas amputadas. O velho possuía uma estranhíssima cadeira de rodas: Era na verdade um tipo de triciclo, com uma manivela ligada a um eixo de pedais como de uma bicicleta, adaptada para ser movida com as mãos. Assim, forçando aquela manivela, o velho podia mover a cadeira-triciclo, ganhando alguma autonomia.
No objetivo de comprar mercadorias para sua venda, e também apanhar algumas doações que os comerciantes do CEASA lhe forneciam, seu Cândio costumava ir até o CEASA de São Gonçalo, que ficava a coisa de uns cinco quilômetros de nosso bairro. De ônibus são apenas dez minutos. Mas, na força da canela, era duríssima a caminhada, pois o velhote ia naquele triciclo, sendo quase sempre empurrado ou por Volnei, irmão mais velho de Renato, ou pelo próprio. Numa dessas idas ao CEASA (que eu não tinha a menor ideia do que e onde era), fui convidado a juntar-me à expedição. Quem sabe não foi aí que surgiu ou sedimentou-se nossa dupla expedicionária canelar? Confesso que não me lembro.
E lá fomos nós, para uma distância que eu jamais havia percorrido a pé, avançando pela perigosa beira da pista ou estrada.
Na volta, já exaurido, participei de algo que era normal de ocorrer, segundo Renato, quando ele saía assim com o avô, tendo chegado na altura do que hoje é a Honda Motos, naquela pequena ladeira que vai dar onde atualmente é o Instituto Médico Legal e o posto da Polícia Rodoviária de Tribobó, Renato, no que o segui, pendurou-se na parte de trás do triciclo (sim, havia um pedestal aparentemente para isso!), e lá fomos nós, descendo a toda numa única cadeira de rodas, três pessoas: Duas crianças e um senhor de quase setenta anos!
Imagine a cena, amigo leitor: Você, pacato citadino passando de automóvel ou ônibus, avançando sorumbático para seu trabalho ou estudo, refém de mil horários e sistemas, e vendo do livre lado de fora uma sinistra cadeira de rodas descendo a grande, insana velocidade asfalto abaixo, com um velhinho amputado como “piloto” e duas crianças de carona!!! Era a vida loka ainda no seu modo 1.0...
Pouco tempo depois, seu Cândio infelizmente veio a falecer, e a vendinha foi fechada.
Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
segunda-feira, 18 de julho de 2022
Leandro Bertoldo Silva (Apesar do tempo, pai)
– Desculpe, pai, mas desconfio que não lhe obedeci. Nem ao senhor nem à mãe. Lembra aquele dia quando eu tinha 5 anos? Tudo bem, faz muito tempo, mas o senhor há de lembrar. Foi aquele dia que eu vi outras crianças pegando papel na rua e colocando dentro de um saco para levá-lo a um depósito, onde era pesado e o seu peso pago em moedas. Pai do céu! O senhor não imagina como os meus olhos brilharam. Não sei se pela oportunidade de ganhar dinheiro, pois era muito bom quando o moço do depósito nos entregava as moedas, ou pela própria ação de juntar-me às outras crianças no trabalho de vender papéis. Acredito que eram as duas coisas, acrescido de ainda poder levar recursos para casa, afinal eu já estava me tornando um homem! Lembro-me bem da sensação… “Uau! Ganhar dinheiro é tão fácil e tão gostoso!” O senhor não me reconheceu na rua. Tudo bem, pai, não há nenhum mal nisso. Não tinha mesmo como me reconhecer, eu estava todo sujo. Lembra como foi? O senhor estava a voltar do trabalho quando em uma das inúmeras idas e vindas minhas com o saco às costas cheio de papel a caminhar até o depósito, passou por mim.
— Oi, pai.
— Oi, filho. Oi, filho?!
– Pois é, naquele momento o senhor me levou embora e junto com a mãe, depois dela ter me dado um banho daqueles, sentaram para conversar comigo. Nossa! Como me lembro dos olhos da minha mãe, olhos de ternura. Os do senhor também. Só não entendi muito bem o sorrisinho que estava junto deles quando eu disse estar trabalhando para ajudar nas despesas da casa. O quê? Eu não disse isso a vocês? Mas eu deveria. Então digo agora, mais de 40 anos depois. Engraçado, eu sempre achei que tinha dito isso… Porque lembro bem o senhor e a mãe — ah, os olhos da minha mãe… —, dizerem que eu não precisava fazer aquilo, que nesse ponto eu era diferente das outras crianças. Diferente como, pai? Porque elas eram pobres e a gente não? Sabe de uma coisa, pai, descobri que na vida existem vários tipos de pobreza e de riqueza, e aquelas crianças eram muito ricas. Puxa vida, como eram ricas em liberdade e alegria. O senhor precisava ver como ficávamos alegres no meio da rua, quando encontrávamos um papelão mais grosso que ia render boas moedas. As risadas, pai… Quanta riqueza naquelas risadas! Mas o senhor tem razão em um ponto… Pai, eu vou te contar um segredo que eu nunca contei para ninguém. Eu fiz uma coisa errada. Senti-me tão mal, pai! Era como se o senhor e a mãe nunca fossem me perdoar. Sabe, essa sensação era muito pior do que pensar no castigo de Deus que falavam nas igrejas. Nesse ponto eu fui mesmo diferente das outras crianças. Sabe o que elas faziam? Elas pegavam uma pedra bem grande e colocavam dentro do saco no meio dos papéis que era para pesar mais na hora da balança. Então… Eu fiz isso também. Mas foi uma tentativa só. Foi muito esquisito. Porque enquanto os meninos riam lá fora eu achava que aquilo não estava certo. Mas eles me chamavam de bobo. Ah, isso não! Aí fui provar que eu não era bobo. Peguei uma pedra bem pesada e coloquei no saco. Ela era tão pesada que foi parar lá no fundo. Bem, o moço do depósito logo achou algo estranho, porque eu mal conseguia carregar o saco. Além disso, eu tremia igual vara verde, e os meus olhos faltavam saltar do rosto de tanto medo. O meu coração batia de um jeito que dava para ver no peito sem camisa. O moço fez uma cara desconfiada, pegou o saco e pôs na balança. Pois é, deu para ouvir um “pléim” bem alto, o barulho da pedra no fundo ao bater no ferro. Que vergonha! Ele pegou a pedra, olhou e disse: “Ah, seu moleque…”. Ser chamado de moleque foi a pior coisa que já me aconteceu na vida. Os meninos tinham razão. Eu fui mesmo muito bobo, mas não por ter colocado a pedra no fundo e não no meio dos papéis, como eles disseram, mas por ter cedido àquela manobra. Não se preocupe, pai, o senhor e a mãe ensinaram direitinho, o erro foi todo meu. Mas valeu. Só não valeu o fato de não ter lhe obedecido, e aí voltamos ao início. Sabe o que é, pai? O tempo passou, não foi? E por mais que eu tenha estudado e formado no almejado curso superior, graças a vocês, com tanto sacrifício, eu queria mesmo era vender papéis. Desculpe, pai, mas aquele menino de 5 anos sempre cresceu dentro de mim. Ou melhor, eu crescia e ele vinha junto. Aí, no lugar do saco fiz uma prensa de madeira e nela colo e costuro papéis transformados em livros, que são pesados em uma balança um tanto diferente daquela de antigamente e enviados pelo Correio às pessoas. Está assim confessada a minha desobediência. Pois é, pai, precisava dizer isso ao senhor. Apesar de tudo, sou um vendedor de papéis. A diferença é que eles são escritos. Só não uso pedras; prefiro a poesia.
— Oi, pai.
— Oi, filho. Oi, filho?!
– Pois é, naquele momento o senhor me levou embora e junto com a mãe, depois dela ter me dado um banho daqueles, sentaram para conversar comigo. Nossa! Como me lembro dos olhos da minha mãe, olhos de ternura. Os do senhor também. Só não entendi muito bem o sorrisinho que estava junto deles quando eu disse estar trabalhando para ajudar nas despesas da casa. O quê? Eu não disse isso a vocês? Mas eu deveria. Então digo agora, mais de 40 anos depois. Engraçado, eu sempre achei que tinha dito isso… Porque lembro bem o senhor e a mãe — ah, os olhos da minha mãe… —, dizerem que eu não precisava fazer aquilo, que nesse ponto eu era diferente das outras crianças. Diferente como, pai? Porque elas eram pobres e a gente não? Sabe de uma coisa, pai, descobri que na vida existem vários tipos de pobreza e de riqueza, e aquelas crianças eram muito ricas. Puxa vida, como eram ricas em liberdade e alegria. O senhor precisava ver como ficávamos alegres no meio da rua, quando encontrávamos um papelão mais grosso que ia render boas moedas. As risadas, pai… Quanta riqueza naquelas risadas! Mas o senhor tem razão em um ponto… Pai, eu vou te contar um segredo que eu nunca contei para ninguém. Eu fiz uma coisa errada. Senti-me tão mal, pai! Era como se o senhor e a mãe nunca fossem me perdoar. Sabe, essa sensação era muito pior do que pensar no castigo de Deus que falavam nas igrejas. Nesse ponto eu fui mesmo diferente das outras crianças. Sabe o que elas faziam? Elas pegavam uma pedra bem grande e colocavam dentro do saco no meio dos papéis que era para pesar mais na hora da balança. Então… Eu fiz isso também. Mas foi uma tentativa só. Foi muito esquisito. Porque enquanto os meninos riam lá fora eu achava que aquilo não estava certo. Mas eles me chamavam de bobo. Ah, isso não! Aí fui provar que eu não era bobo. Peguei uma pedra bem pesada e coloquei no saco. Ela era tão pesada que foi parar lá no fundo. Bem, o moço do depósito logo achou algo estranho, porque eu mal conseguia carregar o saco. Além disso, eu tremia igual vara verde, e os meus olhos faltavam saltar do rosto de tanto medo. O meu coração batia de um jeito que dava para ver no peito sem camisa. O moço fez uma cara desconfiada, pegou o saco e pôs na balança. Pois é, deu para ouvir um “pléim” bem alto, o barulho da pedra no fundo ao bater no ferro. Que vergonha! Ele pegou a pedra, olhou e disse: “Ah, seu moleque…”. Ser chamado de moleque foi a pior coisa que já me aconteceu na vida. Os meninos tinham razão. Eu fui mesmo muito bobo, mas não por ter colocado a pedra no fundo e não no meio dos papéis, como eles disseram, mas por ter cedido àquela manobra. Não se preocupe, pai, o senhor e a mãe ensinaram direitinho, o erro foi todo meu. Mas valeu. Só não valeu o fato de não ter lhe obedecido, e aí voltamos ao início. Sabe o que é, pai? O tempo passou, não foi? E por mais que eu tenha estudado e formado no almejado curso superior, graças a vocês, com tanto sacrifício, eu queria mesmo era vender papéis. Desculpe, pai, mas aquele menino de 5 anos sempre cresceu dentro de mim. Ou melhor, eu crescia e ele vinha junto. Aí, no lugar do saco fiz uma prensa de madeira e nela colo e costuro papéis transformados em livros, que são pesados em uma balança um tanto diferente daquela de antigamente e enviados pelo Correio às pessoas. Está assim confessada a minha desobediência. Pois é, pai, precisava dizer isso ao senhor. Apesar de tudo, sou um vendedor de papéis. A diferença é que eles são escritos. Só não uso pedras; prefiro a poesia.
Silmar Böhrer (Croniquinha) 57
"Adondiéque" andam aqueles dias que amanhecem sorrindo, sol radioso, luzeiros de felicidade? Por que as manhãs têm acordado como candeeiros bruxoleantes, não se sabe se vão clarear mais ou ficar na média luz? E os pássaros seguirão a a dormitar nestas auroras sombrias, nuvens densas com sol escondido?
Mesmo que a gente goste da chuva, do vento, da melancolia, bastam dois ou três dias para implorarmos o sol, o azul do céu, a plena luz. Por que esta ansiedade de estarmos às claras, com níveas manhãs e o lume de horas tantas ?
Talvez esteja dentro de nós o clarão, a claridade, a clarividência - faróis que nos fazem enxergar a existência como um mundo de dualidades, de que só nos damos conta quando um lado não existe, e nos faz entender que vivemos sempre no oposto, como antípodas, como contrários, divergentes desde o mundo da intimidade.
Mesmo que a gente goste da chuva, do vento, da melancolia, bastam dois ou três dias para implorarmos o sol, o azul do céu, a plena luz. Por que esta ansiedade de estarmos às claras, com níveas manhãs e o lume de horas tantas ?
Talvez esteja dentro de nós o clarão, a claridade, a clarividência - faróis que nos fazem enxergar a existência como um mundo de dualidades, de que só nos damos conta quando um lado não existe, e nos faz entender que vivemos sempre no oposto, como antípodas, como contrários, divergentes desde o mundo da intimidade.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Texto enviado pelo autor.
Eduardo Affonso (Anjos e padres)
Em Minas se diz que cada vez que um casal de namorados fica em silêncio, nasce um anjo – ou morre um padre.
A ser verdade, meus primeiros namoros teriam superpovoado o céu – e dizimado o clero.
Minha primeira namorada se chamava Jane. Estávamos no pré-primário, talvez no primeiro ano. Ela era linda, tinha cabelos lisos,e imagino que tivesse uma voz igualmente lisa e linda, que receio nunca ter ouvido. Eu a namorava sem que ela soubesse, claro.
Contei à minha mãe que estava namorando. E que Jane nunca ia às aulas às sextas-feiras.
– Vai ver, é bruxa. – disse minha mãe, sem se desviar da costura.
Eu não sabia que havia relação entre bruxas e sextas-feiras. Jane – alva, silenciosa – em nada me lembrava as bruxas dos livros. Soube, depois, que ela apenas viajava com os pais todas as sextas. Por outro lado, descobri, naquele comentário, que minha mãe, com o humor característico da família, talvez não tivesse a menor vocação para ser a sogra mais amigável do planeta.
Zirlene, a namorada seguinte, também nunca soube que fomos namorados por quase um ano.
Estávamos então já na quinta série – sim, fiquei solteiro dos 6 aos 11 anos. Da Zirlene não me lembro de nada além do nome (como esquecer um nome desses?). Posso inventar agora que tinha cabelos cacheados, nariz de batata, que era baixinha. Não há de haver outra Zirlene, então será fácil localizá-la e verificar. Namoramos tempo suficiente para não trocarmos uma palavra, ainda que fôssemos colegas de turma.
Em seguida, ou em paralelo, não sei, houve a primeira Helena. Dessa me lembro bem. Era gorducha, tinha seios igualmente gorduchos – apenas intuídos, mas dobrinha aquilo com certeza não era. Devo ter uma fotografia dela, numa dessas caixas que me recuso a abrir. Uma foto de borda serrilhada, autografada no verso, e posso dizer que namorei com a foto, não com ela.
Muito antes do Manuel Carlos, tive a epifania de que minha musa, quando eu me tornasse escritor, se chamaria Helena. Eu já lera sobre a Marília de Dirceu, a Dulcineia de Dom Quixote, e em qualquer história que eu viesse a escrever – porque eu já sabia que escreveria – minha heroína seria Helena, não como a de Troia, mas como aquela, gorduchinha, de Araguari.
Houve então Dulcineia. Que, claro, nunca tinha ouvido falar em Dom Quixote e deve ter rido muito do garoto desengonçado, magricelo, que um dia, depois de muito ensaio, ousou lhe perguntar se ela tinha lido Cervantes. Não, não tinha. E eu me senti o cavaleiro da triste figura.
Veio então outra Helena, que amei só pelo nome, e porque me parecia impossível não amar alguém que se chamasse Helena. Ou Cecília.
Mas Cecília era nome non grato lá em casa – Cecília era a noiva do meu pai, até ele se encantar por uma Conceição. Se Jane era uma bruxa só por faltar às aulas nas sextas-feiras, imagino que passaria uma Cecília nas mãos da minha mãe.
Tive notícias da Jane décadas mais tarde – casada, uma filha, que não sei se terá herdado seus poderes mágicos. De Zirlene e da primeira Helena, nem fumaça. Dulcineia há de ter encontrado um Sancho Pança – ou um moinho. A segunda Helena eu revi num daqueles shows de 1º de maio, no Riocentro. Veio falar comigo, me apresentou o namorado. Conversamos ali, em cinco minutos, mais que nos dois anos do nosso namoro sem palavras.
Foram namoros sem beijos, sem mãos dadas, sem uma sílaba sequer. Namoros unilaterais, com aquele silêncio solitário incapaz de fazer brotar anjos e fenecer padres. No máximo provocariam bocejos em coroinhas ou acúmulo de tecido adiposo em querubins.
Se um dia for a Minas, e for à missa, repare no tédio dos coroinhas ao bambolear o incensório. Depois levante os olhos e preste atenção ao ventre dos querubins, às suas coxas roliças, às dobrinhas dos braços, às suas discretas papadas. Veja com que esforço as asinhas os sustentam no ar.
É tudo obra minha, com a cumplicidade involuntária de Jane, Zirlene, Helena 1, Dulcineia, Helena 2. Só a partir de Maria de Fátima é que entrei no ramo da multiplicação de anjos e extermínio de autoridades eclesiásticas, atividades nas quais sou muito bom até hoje.
A ser verdade, meus primeiros namoros teriam superpovoado o céu – e dizimado o clero.
Minha primeira namorada se chamava Jane. Estávamos no pré-primário, talvez no primeiro ano. Ela era linda, tinha cabelos lisos,e imagino que tivesse uma voz igualmente lisa e linda, que receio nunca ter ouvido. Eu a namorava sem que ela soubesse, claro.
Contei à minha mãe que estava namorando. E que Jane nunca ia às aulas às sextas-feiras.
– Vai ver, é bruxa. – disse minha mãe, sem se desviar da costura.
Eu não sabia que havia relação entre bruxas e sextas-feiras. Jane – alva, silenciosa – em nada me lembrava as bruxas dos livros. Soube, depois, que ela apenas viajava com os pais todas as sextas. Por outro lado, descobri, naquele comentário, que minha mãe, com o humor característico da família, talvez não tivesse a menor vocação para ser a sogra mais amigável do planeta.
Zirlene, a namorada seguinte, também nunca soube que fomos namorados por quase um ano.
Estávamos então já na quinta série – sim, fiquei solteiro dos 6 aos 11 anos. Da Zirlene não me lembro de nada além do nome (como esquecer um nome desses?). Posso inventar agora que tinha cabelos cacheados, nariz de batata, que era baixinha. Não há de haver outra Zirlene, então será fácil localizá-la e verificar. Namoramos tempo suficiente para não trocarmos uma palavra, ainda que fôssemos colegas de turma.
Em seguida, ou em paralelo, não sei, houve a primeira Helena. Dessa me lembro bem. Era gorducha, tinha seios igualmente gorduchos – apenas intuídos, mas dobrinha aquilo com certeza não era. Devo ter uma fotografia dela, numa dessas caixas que me recuso a abrir. Uma foto de borda serrilhada, autografada no verso, e posso dizer que namorei com a foto, não com ela.
Muito antes do Manuel Carlos, tive a epifania de que minha musa, quando eu me tornasse escritor, se chamaria Helena. Eu já lera sobre a Marília de Dirceu, a Dulcineia de Dom Quixote, e em qualquer história que eu viesse a escrever – porque eu já sabia que escreveria – minha heroína seria Helena, não como a de Troia, mas como aquela, gorduchinha, de Araguari.
Houve então Dulcineia. Que, claro, nunca tinha ouvido falar em Dom Quixote e deve ter rido muito do garoto desengonçado, magricelo, que um dia, depois de muito ensaio, ousou lhe perguntar se ela tinha lido Cervantes. Não, não tinha. E eu me senti o cavaleiro da triste figura.
Veio então outra Helena, que amei só pelo nome, e porque me parecia impossível não amar alguém que se chamasse Helena. Ou Cecília.
Mas Cecília era nome non grato lá em casa – Cecília era a noiva do meu pai, até ele se encantar por uma Conceição. Se Jane era uma bruxa só por faltar às aulas nas sextas-feiras, imagino que passaria uma Cecília nas mãos da minha mãe.
Tive notícias da Jane décadas mais tarde – casada, uma filha, que não sei se terá herdado seus poderes mágicos. De Zirlene e da primeira Helena, nem fumaça. Dulcineia há de ter encontrado um Sancho Pança – ou um moinho. A segunda Helena eu revi num daqueles shows de 1º de maio, no Riocentro. Veio falar comigo, me apresentou o namorado. Conversamos ali, em cinco minutos, mais que nos dois anos do nosso namoro sem palavras.
Foram namoros sem beijos, sem mãos dadas, sem uma sílaba sequer. Namoros unilaterais, com aquele silêncio solitário incapaz de fazer brotar anjos e fenecer padres. No máximo provocariam bocejos em coroinhas ou acúmulo de tecido adiposo em querubins.
Se um dia for a Minas, e for à missa, repare no tédio dos coroinhas ao bambolear o incensório. Depois levante os olhos e preste atenção ao ventre dos querubins, às suas coxas roliças, às dobrinhas dos braços, às suas discretas papadas. Veja com que esforço as asinhas os sustentam no ar.
É tudo obra minha, com a cumplicidade involuntária de Jane, Zirlene, Helena 1, Dulcineia, Helena 2. Só a partir de Maria de Fátima é que entrei no ramo da multiplicação de anjos e extermínio de autoridades eclesiásticas, atividades nas quais sou muito bom até hoje.
domingo, 17 de julho de 2022
Milton S. Souza (O canto da sereia)
Contam as lendas antigas que os marinheiros que escutavam o canto das sereias ficavam enfeitiçados pela maravilhosa melodia e terminavam perdendo os seus rumos e até colidindo os seus navios contra as ilhas onde moravam estas adoráveis criaturas. Estes belos seres, metade mulher e metade peixe, causavam as desgraças de tantos, que afundavam as suas embarcações e morriam nas armadilhas escondidas por trás daquele enfeitiçante canto. Verdadeiras ou não, as histórias das sereias aterrorizavam muitos homens do mar, que procuravam desviar das rotas onde, segundo as lendas, moravam as sereias.
No meio do oceano não deve ser difícil desviar de uma ilha onde tememos nos defrontar com perigos desconhecidos. Basta remar para outro lado, mudar a posição das velas ou, simplesmente, virar a roda do leme para outra direção. Acontece, porém, que ninguém consegue desviar do “canto da sereia moderno” dos nossos dias: a publicidade. E, por causa disso, tantas vidas naufragam no mar profundo do consumismo desenfreado. São poucas as pessoas que escapam dos apelos publicitários que invadem nossos olhos e nossos ouvidos desde o nascer do dia até o momento em que vamos dormir para refazer as energias. Antigamente, nossos filhos e netos rezavam: “Com Deus me deito e com Deus me levanto...”. Hoje a oração é outra: “Com a publicidade me deito e com a publicidade me levanto...”. A publicidade – sereia moderna – canta e encanta com suas “melodias” que prometem fama, beleza, riqueza e tantas outras “maravilhas” que todos nós sonhamos sempre conquistar.
As antigas sereias seduziam homens feitos e experimentados. A “sereias” atuais enfeitiçam seres humanos de todas as idades, desde o bebê que está apenas começando a caminhar e falar até o ancião que vegeta numa cama ou cadeiras de rodas. “Compre o talco tal, que perfuma melhor o seu bebê”; “Só o sabonete xis deixa a pele macia e sedosa”; “O melhor celular do mundo tira fotos, acessa a internet e ainda toca as suas músicas preferidas”; “Empréstimos para aposentados: basta apresentar a carteira de identidade e já sai com o dinheiro na mão”; “Crédito fácil para você comprar o que quiser...”. E por aí se vão os cantos das “sereias” que invadem as nossas vidas e nos fazem perder os rumos traçados pelo nosso orçamento pessoal.
Quem precisa de um talco que perfume melhor? Quem garante que aquele sabonete deixa a pele sedosa? Celular é para promover a comunicação ou para servir de máquina fotográfica? E será que a maioria dos empréstimos concedidos para os aposentados servem para melhorar as suas vidas ou apenas para livrar parentes espertos de dívidas que os próprios aposentados terão que pagar com o sacrifício do desconto em folha? Não é nada fácil escapar deste “canto das sereias” moderno. Compramos o que não precisamos. Gastamos fácil o dinheiro que ganhamos com tanta dificuldade. Afundamos em contas e prestações que só conseguiremos pagar através de novos empréstimos e de mais dívidas. Afundamos o nosso barco no seco, sem possibilidade de jogar qualquer âncora que possibilite a nossa salvação. O verbo “gastar” já está gasto de tanto ser usado nos dias atuais. E o pior é que, depois dele, teremos que conjugar o verbo “pagar”, bem mais difícil de ser conjugado no tempo certo…
No meio do oceano não deve ser difícil desviar de uma ilha onde tememos nos defrontar com perigos desconhecidos. Basta remar para outro lado, mudar a posição das velas ou, simplesmente, virar a roda do leme para outra direção. Acontece, porém, que ninguém consegue desviar do “canto da sereia moderno” dos nossos dias: a publicidade. E, por causa disso, tantas vidas naufragam no mar profundo do consumismo desenfreado. São poucas as pessoas que escapam dos apelos publicitários que invadem nossos olhos e nossos ouvidos desde o nascer do dia até o momento em que vamos dormir para refazer as energias. Antigamente, nossos filhos e netos rezavam: “Com Deus me deito e com Deus me levanto...”. Hoje a oração é outra: “Com a publicidade me deito e com a publicidade me levanto...”. A publicidade – sereia moderna – canta e encanta com suas “melodias” que prometem fama, beleza, riqueza e tantas outras “maravilhas” que todos nós sonhamos sempre conquistar.
As antigas sereias seduziam homens feitos e experimentados. A “sereias” atuais enfeitiçam seres humanos de todas as idades, desde o bebê que está apenas começando a caminhar e falar até o ancião que vegeta numa cama ou cadeiras de rodas. “Compre o talco tal, que perfuma melhor o seu bebê”; “Só o sabonete xis deixa a pele macia e sedosa”; “O melhor celular do mundo tira fotos, acessa a internet e ainda toca as suas músicas preferidas”; “Empréstimos para aposentados: basta apresentar a carteira de identidade e já sai com o dinheiro na mão”; “Crédito fácil para você comprar o que quiser...”. E por aí se vão os cantos das “sereias” que invadem as nossas vidas e nos fazem perder os rumos traçados pelo nosso orçamento pessoal.
Quem precisa de um talco que perfume melhor? Quem garante que aquele sabonete deixa a pele sedosa? Celular é para promover a comunicação ou para servir de máquina fotográfica? E será que a maioria dos empréstimos concedidos para os aposentados servem para melhorar as suas vidas ou apenas para livrar parentes espertos de dívidas que os próprios aposentados terão que pagar com o sacrifício do desconto em folha? Não é nada fácil escapar deste “canto das sereias” moderno. Compramos o que não precisamos. Gastamos fácil o dinheiro que ganhamos com tanta dificuldade. Afundamos em contas e prestações que só conseguiremos pagar através de novos empréstimos e de mais dívidas. Afundamos o nosso barco no seco, sem possibilidade de jogar qualquer âncora que possibilite a nossa salvação. O verbo “gastar” já está gasto de tanto ser usado nos dias atuais. E o pior é que, depois dele, teremos que conjugar o verbo “pagar”, bem mais difícil de ser conjugado no tempo certo…
Fonte:
Recanto das Letras
Recanto das Letras
Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 23: Crônica do desapontamento
DIA DESSES, num desses points de fim de semana, eu estava com um amigo tomando umas cervejas. De repente, a mesa atrás de nós foi ocupada por três jovens. Mais que depressa, tratei de passar os olhos na trinca e confesso, me encantei à primeira olhada com a beldade dos cabelos compridos com algumas mechas vermelhas. Acho que ela percebeu a minha insistência e, para jogar gelo na minha afoiteza, ou qualquer resquício de tentativa de aproximação futura, se sentou de costas para meu total desagrado e irritação.
Marquinho, meu amigo, também se deixou levar pela beleza e a elegância das recém chegadas. Eu não sabia — ele estava de olho exatamente na moça que eu havia escolhido. Indaguei, de chofre, qual das princesas ele teria coragem de “levar um papo” e, para meu espanto, ele apontou a que me deixara de queixo caído. Literalmente os quatro pneus furados:
— Vamos atacar? — disse ele a certa altura.
— Dá um tempo. — observei. — Elas nem sequer tiveram tempo de esquentar lugar.
Rolou mais quatro cervejas. Resolvi “tirar o time de campo”.
— Você me deixa em casa? Amanhã acordo cedo. O trabalho me espera...
Marquinho balançou a cabeça e chamou o garçom para pedir a conta. Dividimos as despesas. Quando o rapazola voltou com o troco, lhe pedi que me fizesse um favor:
— Pois não! Diga o que deseja e terei prazer em atender.
— Está vendo as três simpatias que chegaram faz bom tempo?
— Sim senhor.
Entreguei a ele um papel de guardanapo com meu nome e o número de telefone celular:
— Faça chegar este bilhetinho às mãos da que está de frente para o balcão de frios. A beldade de costas para mim... os cabelos avermelhados...
Segui no encalço do meu amigo que já ia longe:
— Aposto que ela não liga. — disse desdenhando enquanto abria o carro. – Vale uma cerveja?
— Tranquilo. Porém, se ela cair na rede, você me deve meia dúzia.
— Fechado.
Uma semana inteira se passou. Nem sinal da garota do rosto atraente, sorriso maroto, cabelos compridos, alguns tufos carmesins, o porte de uma rainha dos contos de Meg Cabot. Contudo, quase um mês depois, deu sinal de vida:
— Alô...
— Pois não?
— Queria falar com o Casinho.
— É ele.
— Sou a Márcia.
— Márcia? Que Márcia?!
— Do barzinho. Você me mandou seu número de telefone pelo garçom.
— Ah! Agora estou lembrado. Você é a gatinha que ficou de costas?
— Ela mesma.
Marcamos um encontro para aquele mesmo final de noite. O lugar escolhido: uma pizzaria que não ficava muito distante de onde nos avistamos pela primeira vez. Para início de conversa, na bucha, depois da pizza regada a refrigerantes, arrisquei fazer um convite indecente. Pedi que viesse ao meu apartamento.
Para meu espanto e satisfação, ela topou. Prometi solenemente que a respeitaria e não tentaria nada que viesse magoá-la. Sentados no sofá da sala, diante da tevê, assistindo a um filme sintonizado ao acaso do controle remoto e bebendo um vinho que guardava para ocasiões especiais, coloquei as mãos em torno de seu rosto e escancarei o coração:
— Quer ser minha namorada?
Ela foi rápida, fria e ao mesmo tempo séria:
— Casinho, procuro um amigo. — disse com um sorriso largo. – Alguém em quem confiar. Preciso falar dos meus problemas. Careço de uma pessoa que tenha a paciência de Jó e me ouça. Para ser sua namorada, de papel passado, me acho muito complicada. Além do que, sou chata, imatura e sem chão. E olha que sequer mencionei ser extremamente maçante. Você não me aguentaria muito tempo... logo me mandaria embora com todas as minhas tralhas e atribulações...
Depois desse papo inaugural em meu apê — liguei para ela umas seis vezes. Se não me falha a memória, deve ter me retornado umas duas, talvez três, as ligações. Foi só. Márcia sumiu na poeira. Desapareceu tão silenciosa como chegou. No pouco tempo em que ficou, deixou no meu peito uma saudade estranha. Uma agonia que não demorou muito atingiu, em cheio, toda a parte fraca da minha carência.
Às vezes, na minha agonia gritante, fico imaginando se ela tivesse concordado com a proposta de namoro, logo no início, e assim, sem mais nem menos, topasse comigo em redor de um copo de cerveja colocando um anel de compromisso em seu dedo. Com certeza, hoje estaria sentindo mais forte a dor do chute no traseiro, virado quem sabe, às avessas, perdido num certo éter de um círculo do nada, sendo premido, massacrado por estiletes me cortando impiedosamente os pulsos, ou por outra, apunhalado por fantasmas iracundos e desintegrados de algum tipo de essência.
De certo, de palpável, de conciso, a Márcia passou pela minha vida como um cometa. Um sonho gostoso e bom, uma quimera que durou apenas o tempo de uma pizza e, logo depois, de um copo de vinho gelado. Márcia, pequena luz concêntrica, esperança que brilhou dentro de mim, de maneira muito forte e abundante. Da sua voz restou o desprovido de conteúdo. Da sua presença adocicada, o adeus sem regresso. Permaneceu também a imensidão dos carinhos e afagos, dos beijos e abraços que deixaram de ser permutados.
Em meu ser, em cada batida do coração, algo indescritível segue me atiçando ao amplexo do tempo, como se a minha vida tentasse se manter viva dentro de uma bolha. De tudo, ficou, a lembrança daquela menina tímida que me virou as costas. Persistiu a mágoa dolorida, perseverou o descaso, teimou a insensatez, porfiou o vazio incomensurável de um adeus pesado e sem volta.
Marquinho, meu amigo, também se deixou levar pela beleza e a elegância das recém chegadas. Eu não sabia — ele estava de olho exatamente na moça que eu havia escolhido. Indaguei, de chofre, qual das princesas ele teria coragem de “levar um papo” e, para meu espanto, ele apontou a que me deixara de queixo caído. Literalmente os quatro pneus furados:
— Vamos atacar? — disse ele a certa altura.
— Dá um tempo. — observei. — Elas nem sequer tiveram tempo de esquentar lugar.
Rolou mais quatro cervejas. Resolvi “tirar o time de campo”.
— Você me deixa em casa? Amanhã acordo cedo. O trabalho me espera...
Marquinho balançou a cabeça e chamou o garçom para pedir a conta. Dividimos as despesas. Quando o rapazola voltou com o troco, lhe pedi que me fizesse um favor:
— Pois não! Diga o que deseja e terei prazer em atender.
— Está vendo as três simpatias que chegaram faz bom tempo?
— Sim senhor.
Entreguei a ele um papel de guardanapo com meu nome e o número de telefone celular:
— Faça chegar este bilhetinho às mãos da que está de frente para o balcão de frios. A beldade de costas para mim... os cabelos avermelhados...
Segui no encalço do meu amigo que já ia longe:
— Aposto que ela não liga. — disse desdenhando enquanto abria o carro. – Vale uma cerveja?
— Tranquilo. Porém, se ela cair na rede, você me deve meia dúzia.
— Fechado.
Uma semana inteira se passou. Nem sinal da garota do rosto atraente, sorriso maroto, cabelos compridos, alguns tufos carmesins, o porte de uma rainha dos contos de Meg Cabot. Contudo, quase um mês depois, deu sinal de vida:
— Alô...
— Pois não?
— Queria falar com o Casinho.
— É ele.
— Sou a Márcia.
— Márcia? Que Márcia?!
— Do barzinho. Você me mandou seu número de telefone pelo garçom.
— Ah! Agora estou lembrado. Você é a gatinha que ficou de costas?
— Ela mesma.
Marcamos um encontro para aquele mesmo final de noite. O lugar escolhido: uma pizzaria que não ficava muito distante de onde nos avistamos pela primeira vez. Para início de conversa, na bucha, depois da pizza regada a refrigerantes, arrisquei fazer um convite indecente. Pedi que viesse ao meu apartamento.
Para meu espanto e satisfação, ela topou. Prometi solenemente que a respeitaria e não tentaria nada que viesse magoá-la. Sentados no sofá da sala, diante da tevê, assistindo a um filme sintonizado ao acaso do controle remoto e bebendo um vinho que guardava para ocasiões especiais, coloquei as mãos em torno de seu rosto e escancarei o coração:
— Quer ser minha namorada?
Ela foi rápida, fria e ao mesmo tempo séria:
— Casinho, procuro um amigo. — disse com um sorriso largo. – Alguém em quem confiar. Preciso falar dos meus problemas. Careço de uma pessoa que tenha a paciência de Jó e me ouça. Para ser sua namorada, de papel passado, me acho muito complicada. Além do que, sou chata, imatura e sem chão. E olha que sequer mencionei ser extremamente maçante. Você não me aguentaria muito tempo... logo me mandaria embora com todas as minhas tralhas e atribulações...
Depois desse papo inaugural em meu apê — liguei para ela umas seis vezes. Se não me falha a memória, deve ter me retornado umas duas, talvez três, as ligações. Foi só. Márcia sumiu na poeira. Desapareceu tão silenciosa como chegou. No pouco tempo em que ficou, deixou no meu peito uma saudade estranha. Uma agonia que não demorou muito atingiu, em cheio, toda a parte fraca da minha carência.
Às vezes, na minha agonia gritante, fico imaginando se ela tivesse concordado com a proposta de namoro, logo no início, e assim, sem mais nem menos, topasse comigo em redor de um copo de cerveja colocando um anel de compromisso em seu dedo. Com certeza, hoje estaria sentindo mais forte a dor do chute no traseiro, virado quem sabe, às avessas, perdido num certo éter de um círculo do nada, sendo premido, massacrado por estiletes me cortando impiedosamente os pulsos, ou por outra, apunhalado por fantasmas iracundos e desintegrados de algum tipo de essência.
De certo, de palpável, de conciso, a Márcia passou pela minha vida como um cometa. Um sonho gostoso e bom, uma quimera que durou apenas o tempo de uma pizza e, logo depois, de um copo de vinho gelado. Márcia, pequena luz concêntrica, esperança que brilhou dentro de mim, de maneira muito forte e abundante. Da sua voz restou o desprovido de conteúdo. Da sua presença adocicada, o adeus sem regresso. Permaneceu também a imensidão dos carinhos e afagos, dos beijos e abraços que deixaram de ser permutados.
Em meu ser, em cada batida do coração, algo indescritível segue me atiçando ao amplexo do tempo, como se a minha vida tentasse se manter viva dentro de uma bolha. De tudo, ficou, a lembrança daquela menina tímida que me virou as costas. Persistiu a mágoa dolorida, perseverou o descaso, teimou a insensatez, porfiou o vazio incomensurável de um adeus pesado e sem volta.
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