sábado, 20 de maio de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 5

 

Monsenhor Orivaldo Robles* (Um inculto e nobre amigo)

Nenhum professor de História poria no filho o nome de Teglatfalasar, Vercingétorix ou Nabucodonosor. Na certa compraria briga com a mulher e pretexto para o divórcio. Contudo, de vez em quando, nos assustam nomes que mais parecem palavrões. Onde os pais os descobriram? E por que marcaram assim os filhos para o resto da vida?

Em Jales (SP), no meu segundo ano escolar, em 1949, transferido não sei de onde, entrou em minha sala um colega chamado Heliobas (com “o” fechado). Bizarro, sem dúvida, o nome; mais bizarro o dono. Não se via, entretanto, no grupo escolar inteiro, um estudante que lhe negasse a mais rasgada simpatia. Era uma figura rústica, quase selvagem. Ao mesmo tempo, de uma doçura ingênua e um coração tão puro que se tornava impossível não amá-lo. Não revelava preocupação alguma de ocultar sua procedência de uma família com recursos mais limitados até do que as nossas. E olhe que nós já éramos pobres o suficiente para atender à categoria socioeconômica de classe D. Até inferior, se houvesse. Para ele, no entanto, pobreza não constituía problema. Nela nascera e com ela se acertava muito bem, desde o berço. Ela era como um componente natural de sua vida.

Taludo, de compleição física superior à nossa, era também mais velho. Ainda assim, acompanhar a classe custava-lhe indisfarçável esforço. Não tinha sido boa sua escola anterior, se é que acaso tivesse frequentado uma. Possivelmente trabalhasse duro na roça. Na certa, residia longe do amontoado de casas a que dávamos o pomposo nome de cidade. Com paciência de pai, o professor Oscar Aidar cuidava de lhe respeitar a lentidão do ritmo. De certa feita, observando que toda a classe tinha copiado as dez questões do quadro, mandou um aluno apagá-lo. Lá do fundo, irrompeu a voz grossa de Heliobas: –“Pera um pouco, professor. Ainda tô na novena”. Ninguém riu. Não fosse ele, a reação teria sido outra. Mas dele ninguém caçoava. Era puro demais para sofrer atos de “bullying”, do qual nem ainda tínhamos ouvido falar.

Numa das caminhadas dominicais – atrás de frutas silvestres e banho nas águas cristalinas do riacho que corria pelo matagal ao fundo da chácara do tio Vito –, meu irmão Eraldo, alguns vizinhos e eu nos aventuramos além das vezes anteriores. De súbito, demos com um rancho. Naquela área nunca tínhamos pisado. Nem visto pobreza igual. Heliobas aceitou bem nossa presença anunciada pelos cachorros. Não demonstrou constrangimento pela choupana em que sua família morava. No meio do mato. Literalmente.

Passado pouco tempo, nos mudamos. Nunca depois consegui dele sequer notícia. Estará ainda vivo? Em que parte deste Brasilzão rico, desigual e injusto? Melhorou a dura vida que suportava sem queixa? Desfruta de saúde e de uma boa aposentadoria? Goza de paz interior e vive feliz, rodeado de bastantes amigos? Criou uma linda família, com filhos e netos que lhe confortam a velhice? Seria o mínimo para compensar-lhe a infância (e juventude?) tão sofrida(s).

Ah, caro amigo Heliobas, sabe Deus quantos, como você, arrastam a nosso lado a sua cruz. Em silêncio. Nós desviamos o rosto. Como se não nos dissessem respeito. Nem revestissem a mesma dignidade que para nós reivindicamos. Deus queira que um dia, tremendo de pavor, não tenhamos que ouvir: “Tive fome e não me destes de comer, sede e não me destes de beber…” (Mt 25,42).
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* Biografia do autor:
Filho de Antônio Robles (1914-1982) e de Luzia Gonsales Robles (1916-2010), monsenhor Orivaldo nasceu em Polôni (SP) em 6 de maio de 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Com a mudança da família para o Paraná (1957), veio concluir o antigo segundo grau no Seminário São José, em Curitiba. Cursou Filosofia no Seminário Rainha dos Apóstolos, em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP), com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma.

Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória – Instituto de Filosofia de Maringá. Em 22 de janeiro de 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial.

Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública.

Por ocasião do cinquentenário da Diocese de Maringá, em 2007, publicou o livro “A Igreja que Brotou da Mata – Os 50 anos da Diocese de Maringá”, com 352 páginas, sobre a presença da Igreja Católica na região de Maringá. 

Em 2012 teve publicado o livro “Celeiro Desprovido”, com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá, também de sua autoria. 

Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.

Faleceu de enfisema pulmonar. Há vários anos o presbítero estava com a saúde debilitada, realizando tratamento médico por problemas pulmonares.

Fontes:
Crônica
Biografia

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLII

A água dança na cascata,
nos encanta enquanto cai,
de noite faz serenata
de dia encantando vai…
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A fauna se torna escassa
porque flora já não tem,
aos homens, grave ameaça,
de não resistir também.
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A tenda vende banana,
outras frutas e verduras,
às vezes, caldo de cana
e as gostosas rapaduras.
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A vida, quando imatura,
mais parece uma comédia,
começa numa aventura
e acaba numa tragédia.
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Escuto o choro do vento
na vidraça a se ferir,
mais se parece ao lamento
vendo um sonho sucumbir.
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Faltando água na banheira
banho não dá pra tomar,
pior se for na torneira
nem as mãos podes lavar.
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Mesmo rude sendo a estrada
que vamos seguir na vida,
se tiver porta de entrada
também deve ter saída.
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Muitos momentos vivemos
de augusta felicidade,
mas a plena, só teremos,
um dia na eternidade.
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Na cadência dos meus passos
vou traçando o meu caminho,
nele vão ficando os traços
de quem nunca o fez sozinho.
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Não faça do preconceito
um conceito descabido,
se o fizer fere o direito
pela lei reconhecido.
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Ninguém pague um alto preço
por ser morador de rua,
vive mudando o endereço
mas sem teto continua.
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Nos caminhos da existência
temos medo de encontrar,
a intrigante decadência
sem poder nos levantar.
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Nunca aceitamos perder,
ganhar também não sabemos,
bem pior que não saber
é culpar quando perdemos.
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O mundo vive com sede
de justiça e liberdade,
jamais deve haver parede
que divida a humanidade.
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Parte da população
deita sem se alimentar,
sobre a mesa falta o pão
e o leite suplementar.
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Qualquer água sendo pura
é inodora e não tem cor,
totalmente sem mistura
também não guarda sabor.
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Quando a vida em oração
parece se transformar,
nosso humilde coração
se transforma num altar.
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Quem somente planta ventos
pelos campos das vontades,
pode estar entre lamentos
colhendo só tempestades.
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Se à vida ficas a olhar
frutos não puderes ver,
é porque no teu lugar
alguém passou pra colher.
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Seguindo sem direção
tal um trem fora dos trilhos,
os pais, na separação,
quem mais sofrem são os filhos.
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Se na rocha construir
o vento pode soprar,
que jamais fará ruir
a casa, nem abalar.
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Tem o ferro, com certeza,
grande aplicabilidade,
contendo por natureza
'dureza e tenacidade'.
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Temo na vida, somente,
os que dizem ser amigos.
Também a Deus sou temente:
vem livrar-me dos perigos!
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Toda construção desaba
se não tem planejamento,
e o seu construtor acaba
tendo um aborrecimento.
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Tudo de bom acontece
quando o bem for cultivado
e o ramo que mais floresce,
não se chamasse 'pecado'.
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Tudo o que formos comprar
neste mundo consumista,
temos um preço a pagar,
seja a prazo, seja à vista.
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Um túnel em linha reta
dispensa qualquer sinal,
tem no começo uma seta
e uma luz no seu final.
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Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Pontos e sinais)

QUANDO OLHEI para a moça que acabara de subir e cruzar a catraca dentro do coletivo e que depois de pagar a passagem viera se sentar frente a mim, não pude deixar de olhar para seu corpo escultural, suas pernas longas e bem-feitas metidas num vestidinho azul extremamente curto. Imaginei, em pensamento, aquele pedaço de mau caminho totalmente despido de um leve pedacinho de pano que resguardava o mais delicioso de todo o conjunto: a sua nudez. 

Desde que a bela se acomodara, notei que colocara a mão esquerda no rosto, tampando o parcialmente. Esse gesto ligeiro, meio que opressivo, me chamou mais ainda a atenção, e, então, eu me dei conta do real motivo daquilo que para ela deveria permanecer oculto. Longe das vistas de todos, escondido mesmo, como algo que não carecesse de estar ao exposto de terceiros. O desencanto da sua desdita: ele se constituía num ponto medonho que ela não queria mostrar à curiosidade de terceiros, possivelmente por vergonha. Esse lado da sua mágoa se fixava na sua abertura oral. Era totalmente desconexa e torta, o que deformava o encanto da sua magia e colocava um tremor mórbido em seus lábios. Os olhos de um azul muito claro pareciam extremamente tristes. O aleijo, talvez de nascença, ou quem sabe causado por alguma enfermidade mal curada, deixara à sanha do desvairo público uma consternada sequela. 

Um desfecho que ela, por ser jovem, não conseguia engolir. E isso, visivelmente gritava alto e em som manifesto. Constrangia, sobremaneira, aquela boneca impecavelmente linda e inimitável. Obcecada pela vergonha, horrorizada pelo fato de não se sentir à vontade, deduzi que ela não se ponderava feliz, embora o albor da sua juventude dissesse exatamente o contrário. O tempo todo da viagem, quase duas horas e meia, ela seguiu de rosto tapado. Vez em quando trocava de mão, sempre escondendo o pejo da cicatriz malvada que lhe tirava o viço e a diminuía na dor e na agonia, o que evidentemente a levava a se sentir feia ou talvez, por essa razão, se via excluída das pessoas ao seu redor.  Que desdita! 

Olhei para ela com ternura. Com um carinho especial. Tão linda e perfeita, todavia atormentada, no âmago da sua insatisfação, por uma deformidade inverossímil. Apesar disso, seja qual for o nosso problema, não devemos sentir vergonha de certos desconfortos, por mais feios e sinistros que possam parecer. Todos nós temos pequenos mutilos. Alguns desses amputos, visíveis. Outros nem tanto. Entretanto, quero crer, e, em verdade abono piamente o que agora penso e escrevo. Não importa onde o nosso ponto fraco, o nosso aleijo, ou a nossa flagelação esteja manifesta, ou, via outra, onde a nossa desgraça se faça estropiada. 

O fato de sabermos que alguma anormalidade, por menor que seja, nos diminui e tira o nosso viço, bem ainda, atormenta a nossa alma, apavora o nosso espírito e afasta a nossa sensibilidade do sermos felizes (e entenda aqui felicidade) na sua melhor forma de expressão, não devemos nos preocupar. Mesmo norte, jamais nos deixarmos ser levados pela leviandade de quem nos julga e nos coloca numa visão dúbia e desconfigurada do que entendemos por dentro da “normalidade”. Por conta de pequenas ou grandes cissuras, por levarmos em conta opiniões infames e ignóbeis, ficamos divorciados de nós mesmos, e, sobretudo, deixamos de viver a plenitude casta e honrável da verdadeira razão de sermos completamente realizados. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Daniel Maurício (Poética) 52

 

Cecy Barbosa Campos (Síntese de um amor)

A primeira vez em que o viu, ele se encontrava semiencostado ao balcão do correio, de maneira 
displicente, parecendo não ter pressa. Contrastava com o burburinho do local, onde as pessoas entravam e saíam rapidamente, empenhadas na resolução de seus problemas, sem enxergar os circunstantes.

Quando seus olhos se encontraram, ela sentiu que algo estranho acontecia. De relance, percebeu detalhes que, usualmente, seriam imperceptíveis: o relógio prateado, a camisa creme que aparecia por baixo do pulôver marinho de decote em V, os sapatos esportivos, adequados ao conjunto.

Ele sorriu levemente, e ela. desconcertada, deixou que seu envelope escorregasse pela primeira das caixas, sem verificar a indicação do estado ou se ali era o local apropriado para as cartas destinadas ao exterior.

Passou-se algum tempo, até que se defrontaram novamente. Aproximou-se, como um velho conhecido, e tudo aconteceu como se estivesse apenas continuando, como se estivessem ligados por um grande amor, que existia desde sempre, sem interrupções.

Um dia, sem avisos nem explicação, houve o adeus.

— Não posso continuar vivendo aqui. Estou partindo não sei para onde. — Foram as palavras dele, entrecortadas por um beijo apaixonado, misturado às lágrimas, que jorravam dos olhos da jovem, afogando os dois num ímpeto fremente.

A cidade, como todo o país, tornava-se a cada dia mais agitada e confusa, com notícias de perseguição a estudantes e intelectuais. No período em que estiveram juntos, não conversavam sobre os acontecimentos, que sacudiam o país. Ela se deixara alienar, pois nada mais lhe interessava além de viver aquele amor.

Só depois da despedida inopinada, ela se apercebeu do fato de não conhecer suas atividades ou sua posição política. Os sentimentos que os uniam era a única coisa que a preocupava, alheia aos sérios incidentes que preocupavam a todos os brasileiros.

Aos poucos, ela começou a entender. Sua cidade se elevara acima das montanhas e ultrapassara a mineirice silenciosa que a caracterizava, tornando-se foco da atenção nacional, já que de lá foram dados os primeiros passos para a Revolução de 1964. À medida que a ditadura militar ampliava seus tentáculos, em busca daqueles que, verdadeira ou presumivelmente, se insurgiam contra ela, notícias de perseguição e do desaparecimento de pessoas conhecidas ou desconhecidas se espalhavam, cochichadamente. Pessoas que, de uma forma ou outra, faziam parte do cotidiano da cidade: um artista, um bancário, um vendedor de livros etc.

Juntando as partes, gradualmente, ela ficou sabendo que ele era considerado "subversivo" e que exercia influências no meio estudantil por sua capacidade de liderança. Os Diretórios Acadêmicos das faculdades eram vasculhados, e os nomes de seus participantes devidamente anotados, não exatamente para investigação, mas para perseguição, prisão e tortura.

Mais tarde, ela soube que ele saíra do país e, passados alguns anos, com a volta da democracia, soube de seu retorno.

Encontraram-se um dia, em outra cidade, por acaso. Um desses acasos que o destino prepara para cada ser humano. Intensa emoção aflorou ao se depararem. A mesma emoção que surgira naquele primeiro dia em que se viram.

Entretanto, outros rumos tinham sido tomados, direcionando suas vidas. Agora maduros, eram capazes de analisar suas diferenças e entender que seu "momento" havia passado. Restava a profunda melancolia das lembranças da juventude, misturadas ao ideal de justiça que o movera, interrompendo a trajetória daquele amor esfuziante.

Não mais se viram, mas, vez por outra, o nome dele aparecia nos jornais. Continuava ativo na defesa das minorias e da justiça social. Ela o admirava e ficava feliz pelo seu desprendimento e por saber que, em sua luta contínua, ele encontrava a felicidade.

A última notícia que teve dele, também veio pelos jornais: "Bimotor explode em seu destino à Amazônia, para demarcação de terras". A descrição do corpo despedaçado, confundido com os pedaços do avião era terrível.

Uma dor inexprimível apertou seu peito naquele momento. A dor das lembranças que ficariam para sempre, corroendo o seu coração.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Fábio Siqueira do Amaral (Trovas Dispersas)


Ao que vive de promessa,
ouça bem o que lhe opino:
– Pense mais no que professa
e fabrique seu destino.
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Aos meus caros notifico,
com claros sons de clarim,
toda a paz que lhes dedico
vem do céu, não vem de mim!
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Com toda esta minha idade
aventurei-me no amor
e a desgraça da saudade
não me fez nenhum favor…
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Contemplo meu sol de outono
e as borrascas deste mar;
confesso o triste abandono
num amargo lamentar…
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Da antiga infância... que sinto?
Juventude?  Não provei...
Se falo em saudade... eu minto!
Lembro só... quanto chorei...
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De alegria singular
governante tem a glória
persistente e popular
quando faz da paz, história...
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De tornar ao meu passado,
sonho até com mais vontade;
mas do amar sem ser amado
é impossível ter saudade.
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Deus dos céus, oh! sol fulgente,
santa paz da eternidade;
dá-nos esse grão presente:
a luz da fraternidade!
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E do amor tanto se fala,
se escreve e nada se sente;
esta trova não se cala
e haverá quem a desmente?!
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Enrugado e impopular
como fole de sanfona,
corre o risco de ficar
quem o amor só coleciona.
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Gostaria de esquecer...
Ser-lhe igual... Nada sentir...
Mas... Qual! Bem sei que vou ter 
a saudade a me oprimir!
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Há nos céus menos estrelas
do que os versos que eu cantei;
nosso amor vai surpreendê-las
com os beijos que lhe dei...
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Há quem culpe seu destino
pelas desgraças que enfrenta,
mas esquece o desatino
da má vida que fomenta!
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Lancei sementes de paz
para ver da guerra o fim
e o triunfo que perfaz
toda fé que existe em mim...
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Livros teus, abraça forte
se cultura queres ter;
coisas fúteis, dá-lhes corte
deixa de moleque ser!
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Melancólica estação
das cores esmaecidas
gera alguma inspiração
no outono de nossas vidas…
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O destino pode ser 
a desculpa do fracasso 
daquele que julga ter
uma pedra em cada passo.
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O sincero sentimento
faz cantar nova canção,
sopra à vida o vivo alento,
quando o amor cala a razão.
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O vento derruba as folhas,
fez o tapete no chão
do outono que, sem escolhas,
pôs rimas numa canção…
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Quem a paz deseja ter,
honra e valor conquistar,
procura não se envolver
no ato que o mal lhe insuflar!
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“Queres paz? Prepara a guerra!”
Funesto lema romano!
Faze assim e... pobre Terra...
e... do que é chamado humano!
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Sem meus pais e irmãos aqui;
e os amigos que partiram,
por saudade traduzi
tanta dor que me impingiram...
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Sempre foi o meu destino
ser calado e assim sofrer;
nem a fé, num descortino,
fez-me a vida bendizer...
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Somos todos criaturas
pelo amor de Deus gerados;
Ele nos vê das alturas
e nos faz apaixonados...
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Temos o exemplo no mundo,
 – livre de qualquer domínio –
da paz, de um jeito profundo,
dos seres sem raciocínio!
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Todo afeto se alivia
no cantar ou no sofrer
e a saudade, em sintonia,
faz-nos trovas escrever...
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Um amor ou outro eu tive...
Conto-os nos dedos da mão;
me foram joias de ourives
que perdi por precaução.
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Fonte:
https://www.asesbp.com.br/TROVADORES/indice%20trovadores.html

Leandro Bertoldo Silva (Um livro nunca termina ao virar da última página)

Sempre tive fascinação pelas coisas simples. Acho mesmo que sou um fazedor de miudezas. Não por acaso tenho por Manoel de Barros uma admiração profunda, na capacidade que ele tinha — ou tem, porque um poeta nunca morre — de construir pequenezas insignificantes. Insignificantes? Ha, ha, ha!...

Muitas vezes como escritor, busco o pequeno das coisas. Bartolomeu Campos de Queirós, outro que entendia a linguagem miúda da vida, chegou a escrever um livro cujas 45 páginas valiam por 450; uma página de leitura por um mês de reflexão, a iniciar pelo título: “Antes do Depois”. Hã?! Pois é... E ainda há quem avalia se um livro é bom se ele for grosso! Não recrimino. Esses, às vezes, são bons escoradores de porta.

De qualquer forma, gosto das histórias que nos fazem pensar, daquelas a nos puxarem o tapete. O resultado já sabemos: um belo tombo existencial.

Escrever bem não é escrever muito, assim como ler muito não equivale ao ler certo, e eu não estou a falar de ortografia e muito menos de pontuação. Aliás, a gramática é uma necessidade, não uma camisa de força. Haja vista Guimarães Rosa.

Como vê, tantos sãos os escritores e escritoras a nos ensinarem isso. Uma vez estava a ler repetidas vezes um mesmo livro: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Sim, sou uma espécie de (re)leitor. Quem me conhece sabe: prefiro reler um livro a lê-lo pela primeira vez. Estava nisso quando fui interpelado por um amigo:

— Por que lê tão repetidas vezes este livro?

— Porque nele estou quase a encontrar a minha liberdade.

— O que falta para isso?

— A próxima leitura.

— Não te angustia saber que pode novamente não encontrar?

— Me angustia mais achar que já encontrei...

Não houve mais perguntas.

Recomecei.
________________________
Então, aqui está mais um texto em que eu revelo uma pequena particularidade, como ler repetidas vezes um mesmo livro. Há pessoas que acham isso uma perda de tempo, afinal há tantos livros a serem lidos... Mas uma coisa é ler, outra coisa é... ler! Com você como é? Você costuma repetir leituras?

Fonte:
Texto enviado pelo autor, disponível em Árvore das Letras

Fabiane Braga Lima (A professora [da minha varanda eu a observo])

Eu costumava observar a moça, por breves instantes todos os dias. Ela era uma pintura viva, uma jovem bonita, mas sempre triste. Logo de manhã, bem cedo, ela saia apressada, com sua mochila nas costas, para enfrentar as lutas diárias. Colocava o lixo no portão e respirava ofegante e seguia em frente. Eu sempre apreciava essa cena, tão comum para muitos, mas ela me chamava a atenção. No final da tarde, estava ela de volta ao lar, parecia chegar triste e muito abatida.

Novo dia, lá estava ela de novo, seguindo a mesma rotina, mochila nas costas, olhar triste, partindo para o ponto de ônibus próximo. No começo de um dia, percebi que a rotina fora quebrada, ela demorava para ir ao trabalho. E havia me acostumado a vê-la partir e chegar diariamente, apesar de não a conhecê-la pessoalmente. Como moro ao lado, eu fui ver o que ocorrera.

— Olá, tem alguém em casa? — Resolvi chamá-la assim, eu não sabia sequer o nome da mulher, tive um mau pressentimento.

De repente, ela aparece na porta. Estava machucada, haviam vários hematomas em seu rosto.

— Estou bem, ando gripada, vizinho. — Respondeu constrangida, ainda dentro de casa. Mas, era mentira, pois não estava com gripe. Descobri depois, que ela era uma dedicada professora de história, em início de carreira, que trabalhava em três escolas todos os dias, mas estava sofrendo várias agressões.

Eu, um completo estranho, um desconhecido qualquer e ela me convidou para entrar na sua residência. Ao adentrar, notei que era uma casa bem simples e modestamente decorada. Mas, eu vi que tinha as melhores de todas as decorações possíveis, vi livros variados de todos os gêneros e modalidades e estavam por toda a parte em todos os cômodos da casa.

A dona da casa, me conduziu para a sala de estar, ela acabara de passar um café, no coador de pano. Sentamo-nos à mesa, ela me serviu uma xícara de café preto e, sem sequer perguntar o meu nome, contou das agruras que ela estava passando, naquele exato momento da vida.

Confidenciou-me que era de origem humilde e conseguiu se formar em história, a duras penas. E uma vez formada, fez concurso público, foi dar aulas na rede pública de ensino e depois na rede privada também. Contou-me dos assédios morais e agressões sofridas, dentro e fora das salas de aulas, por alunos, alunas e colegas de profissão. Ameaças de morte e até uma agressão física, nas duas redes de ensino. Eu, sem nada dizer sobre isso, ouvi de tudo isso com profundo pesar no coração e na alma, depois disto forjamos uma bela e profunda amizade. Conversamos sempre que possível, aos finais da tarde, à tardinha, tomávamos café eu contava da minha mãe professora e das agruras que eu a vi passar e o que ela me contava. Coisas boas e ruins que uniam as duas professoras.

Eu, filho de professora primária, além de vê-la partir e chegar do trabalho, agora no começo da noite, eu vejo aquela mulher forte, sentada na varanda da casa, preparando as aulas, corrigindo trabalhos, tão dedicada, simultaneamente, desvalorizada da vida…!

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 27

 

Graciliano Ramos (História de um bode)

— Outro caso que tenho pensado em contar a vossemecês é o do bode, anunciou Alexandre um domingo, sentado no banco do copiar. Podemos encaixá-lo aqui para matar tempo. Que diz, seu Firmino?

O cego preto Firmino e mestre Gaudêncio curandeiro, os dois ouvintes daquela tarde, sem falar em Das Dores e Cesária, entusiasmaram-se:

— Está certo, seu Alexandre. Bote o bode para fora.

— Venha o bode, meu padrinho, exclamou Das Dores batendo palmas. 

Alexandre tomou fôlego e principiou:

— Isso se deu pouco tempo depois da morte da onça. Os senhores se lembram, a onça que morreu de tristeza por falta de comida. Um ano depois, mais ou menos. Havia lá na fazenda uma cabra que tinha sempre de uma barrigada três cabritos fornidos. Três cabritos, pois não, três bichos que faziam gosto. Uma vez, porém, nasceu apenas um cabrito, mas tão grande como os três reunidos, tão grande que o pessoal da casa se admirou. Eu disse comigo: — “Isto vai dar coisa.” Era realmente um cabrito fora de marca. Tanto que recomendei ao tratador das cabras: — “Deixe que este bicho mame todo o leite da mãe. Quero ver até que ponto ele cresce.” Mamou e cresceu, ficou um despotismo de cabrito. Eu tinha uma ideia que parece maluca, mas os senhores vão ver que não era. Um animal daquele podia perder-se como bode comum, seu Gaudêncio? Não podia. Foi o que pensei. Quando ele endureceu, botei-lhe os arreios e experimentei-o. Saltou muito, depois amunhecou, e vi que ele ainda não aguentava carrego. Passados alguns meses, tornei a experimentar: deu uns pinotes, correu feito um doido e aquietou-se. Achei que estava taludo e comecei a ensiná-lo. Sim senhores, deu um bom cavalo de fábrica, o melhor que vi até hoje. Mandei fazer uns arreios bonitos, enfeitados com argolas e fivelas de prata — e metido nos couros, de perneiras, gibão e peitoral bem preparados, não deixava boi brabo na capoeira. Rês em que eu passasse os gadanhos (mãos) estava no chão. A minha fama correu mundo. Não era por mim não, era por causa do bode. 

– “Talvez os senhores tenham ouvido falar nele. Não ouviram? Muito superior aos cavalos. Os cavalos correm, e o bode saltava por cima dos alastrados e das macambiras. Por isso andava depressa. A dificuldade era a gente segurar-se no lombo dele. Eu me segurava, conhecia todas as manhas e cacoetes do bicho. Quando me aprumava na sela, nem Deus me tirava de lá. 

– “Ora, numa vaquejada que houve na fazenda vieram todos os vaqueiros daquelas bandas. Meu pai matou meia dúzia de vacas e abriu pipas de vinho branco para quem quisesse beber. Nunca se tinha dado festa igual. Cesária estava lá, de roupa nova, brincos nas orelhas e xale vermelho com ramagens. Hein, Cesária?”

— É verdade, Alexandre, respondeu Cesária. Essa festa ficou guardada aqui dentro. Você apareceu de gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro, tudo brilhando, enfeitado de ouro.

— Exatamente, gritou Alexandre, tudo enfeitado de ouro. Trouxeram o bode arreado, montei e pensei: — “Vai ser uma desgraceira. Quem chegue perto de mim pode haver, mas quem passe adiante é que não.” Esse bode, meus amigos, era do tamanho de um cavalo grande. Sim senhores. Do tamanho de um cavalo grande, muito barbudo e com um par de chifres perigosos, inconvenientes no princípio. A gente se metia na catinga, e ele enganchava as pontas nos cipós, gastava tempo sem fim para se desembaraçar. Mas como era um vivente caprichoso e não tinha nascido para correr, logo viu que, pulando por cima dos pés de pau, não se atrapalhava. E fazia um barulhão, soltava berros medonhos. Ora, muito bem. No dia da vaquejada, quando me escanchei e peguei na rédea, o bicho largou-se pelo pátio, como quem não quer e querendo, num passinho miúdo que não dava esperança. Os vaqueiros caçoavam de mim: — “Que figura, meu Deus! Era melhor que estivesse montado num cabo de vassoura.” E eu calado, com pena deles todos, e o bode no passinho curto, mangando dos cavalos. De repente avistei uma novilha que não conhecia mourão e gritei para os outros: — “Aquela é minha.” A resposta foi uma gargalhada, mas só ouvi o começo dela, porque um minuto depois estava longe, percebem? É isto mesmo. O bode, que ia brincando, fazendo pouco dos cavalos, empinou-se e tomou vergonha. Foi um desespero. A novilha escapuliu-se, ligeira como o vento, e nós na rabada dela, pega aqui, pega acolá, íamos voando. Sim senhores, voando, que aquilo não era carreira. O mato me açoitava a cara e um assobio me entrava pelos ouvidos. Não se enxergava nada. Só uma nuvem de poeira, e dentro da poeira os quartos da novilha. Nunca vi boi correr daquele jeito, parecia feitiço. Eu me aproximava da bicha, ela torcia caminho e se afastava. Pelejamos assim muitas horas. Pega aqui, pega acolá, suponho que andamos umas sete léguas. Afinal chegamos à ribanceira de um rio seco, a novilha parou, eu consegui passar as unhas no sedenho (cauda) dela e foi a conta. Arreou, despencou-se lá de cima e caiu numas pedras que havia no meio do rio. Desci a ribanceira, apeei e notei que a infeliz tinha desmantelado a pá direita na queda. Fiz o que pude para levantá-la e não houve remédio. Vejam vossemecês que eu estava num embaraço muito grande. Como havia de provar aos outros vaqueiros que a novilha tinha sido pega? Hein? Como havia de provar? Aí é que estava o negócio.

Nesse ponto o cego preto Firmino fez uma pergunta:

— O bode tinha descido com o senhor ou tinha ficado na ribanceira?

— Não me interrompa, seu Firmino, resmungou Alexandre. Assim a gente não pode contar. Então eu já não expliquei? Desci e apeei, foi o que eu disse. Foi ou não foi?

— Exatamente, concordou mestre Gaudêncio.

— “Pois é, continuou Alexandre. Se eu desci primeiro e apeei depois, naturalmente desci montado. Isto é claro. Desci montado, percebe? Com um salto. O natural do bode, como ninguém ignora, é saltar. E agora os senhores me façam o favor de escutar, para não me virem com perguntas tolas. Sabem que eu estava atrapalhado para dar aos outros vaqueiros a notícia da pega. Se contasse a história com todos os ff e rr, eles haviam de acreditar, mas eu queria chegar à fazenda com a rês. E, por desgraça, a pobre estava ali caída, ruim de saúde, com uma pá quebrada. Depois de muito pensar, resolvi, não podendo levá-la, mostrar ao pessoal ao menos uns pedaços dela. Acham que pensei direito? Não havia outro jeito, meus amigos. Puxei a faca de ponta, sangrei a novilha, esfolei-a, tirei um quarto dela e amarrei-o na garupa do bode. Botei o couro na maçaneta da sela, pisei no estribo e tomei o caminho de casa. Isto é, pisei no estribo, montei, o bode pulou para cima da ribanceira e tomou o caminho de casa. 

“Para seu Firmino é preciso que a gente diga tudo, palavra por palavra. Se eu não escorresse tantas miudezas, talvez seu Firmino pensasse que eu tinha viajado com um pé no estribo e outro no chão. Pois é verdade. 

“Larguei-me para casa, devagar, fumando, matutando. Passei por baixo de um pau a cavaleiro da estrada. Não dei importância a isso: galhos tortos há muitos, e eu ia embebido (absorto), fora do mundo, sim senhores. De repente uma coisa me chamou a atenção: o bode começou a puxar uma perna traseira. Caminhava algumas braças e arrastava a perna, como se estivesse carregando um peso grande. — “Que diabo terá este bode?”, perguntei a mim mesmo. Um bicho que nunca tinha feito figura triste, acostumado a varar capoeira, cansando à toa! Ali havia coisa. Olhei para trás. Sabem que foi que vi? Calculem. Imaginem que foi que eu vi, Das Dores.

Das Dores espiou a telha e ficou um minuto pensando. Baixou os olhos e confessou:

— Não sei não, meu padrinho. Como é que eu posso adivinhar o que o senhor viu? Uma alma do outro mundo?

— Não, Das Dores, respondeu Alexandre. Vi uma onça. Uma onça lombo-preto, sim senhora, trepada na garupa do bode e já com o bote armado para me agarrar. — “Estou comido”, pensei. Mas não perdi a calma. Sou assim, nunca perdi a calma. Certamente aquela diaba estava em cima do galho torto e na minha passagem tinha voado na carne fresca. Virei o rabo do olho para o traseiro do animal. Só havia ali o cangaraço da novilha, osso esbrugado (separado da carne). Se eu não tivesse muito sangue-frio, era um homem perdido. Mas encomendei-me a Deus e disse baixinho: — “Morto eu já estou, morto e quase jantado por esta miserável. Agora cruzar os braços e entregar-me à sorte é que não vai. Nem cruzo nem me entrego. Quem está morto não se arrisca. Não vale a pena ter medo, e o que vier na rede é peixe.” Puxei o facão devagarinho, virei-me de supetão e — zás! — no pescoço da onça. Ela caiu no chão, meio zureta, eu dei um salto e cortei-lhe a cabeça que foi amarrada na maçaneta da sela, junto ao couro da novilha. Montei de novo e uma hora depois estava no pátio da fazenda, conversando com os vaqueiros. Cesária pode confirmar o que eu digo.

— Perfeitamente, Alexandre, exclamou Cesária. Conte o resto.

— O resto é aquilo que você viu. Meu irmão tenente, isto é, meu irmão mais novo, pessoa de coragem que mais tarde chegou a tenente de polícia, ficou amarelo como flor de algodão. Eu expliquei a coisa com todos os pontos e vírgulas, mandaram buscar o resto da novilha e o corpo da onça. Foi uma admiração, meus amigos, e a festa da vaquejada rolou muitos dias. Meu irmão tenente...

— E o bode? murmurou o cego. Que fez o senhor do bode?

— Ora essa! rosnou Alexandre. O bode se finou, como todos os viventes. Se fosse vivo, tinha trinta anos, e nunca houve bode que vivesse tanto. Morreu, sim senhor. E fez muita falta, foi o melhor cavalo de fábrica daquela ribeira.

Fonte:
Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXIX


SENSUAL

Ainda sinto o teu corpo ao meu corpo colado;
nos lábios, a volúpia ardente do teu beijo;
no quarto a solidão, desnuda, ainda te vejo,
a olhar-me com olhar nervoso e apaixonado...

Partiste!... Mas no peito ainda sinto a ânsia e o latejo
daquele último abraço inquieto e demorado...
- Na quentura do espaço a transpirar pecado,
Ainda baila a figura estranha do desejo...

Não posso mais viver sem ter-te nos meus braços!
- Quando longe tu estás, minha alma se alvoroça
julgando ouvir no quarto o ruído dos teus passos...

Na lembrança revejo os momentos felizes,
e chego a acredita que a minha carne moça
na tua carne moça até criou raízes!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SOLIDÃO

Um frio enorme esta minha alma corta,
e eu me encolho em mim mesmo: - a solidão
anda lá fora, e o vento à minha porta
passa arrastando as folhas pelo chão...

Nesta noite de inverno fria e morta,
em meio ao neblinar da cerração,
o silêncio, que o espírito conforta,
exaspera a minha alma de aflição...

As horas vão passando em abandono,
e entre os frios lençóis onde me deito
em vão tento conciliar o sono

A cama é fria... O quarto úmido e triste...
- Há uma noite de inverno no meu peito,
desde o instante cruel em que partiste...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SOLITÁRIO

Longe de ti, do mundo - solitário.
sem o riso das falsas alegrias
vou desfiando, um a um, todos os dias,
como contas de dor, no meu rosário...

E assim - sem Ter ninguém - oh, quantas vezes!
- no amor que já deixei fico a pensar...
E as semanas se escoam sem parar:
a primeira... outra mais... mais outra... e os meses...

O outono já chegou, e as folhas solta...
E eu, sem querer, nostálgico, me ponho
a pensar que esse amor aos poucos volta...

Mentira!... Vã mentira que me ilude!...
Como é triste a ilusão mesmo num sonho,
Eu que na vida me iludir não pude!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SONETINHO

Não tenho jeito pra trova
apesar das que já fiz,
a quadra lembra uma cova
com a cruz dos versos em  X...

Ainda estou vivo e feliz
e do que digo dou prova:
- tentei cantar, numa trova,
e o meu amor pediu bis.

Bem sei que é meu o defeito.
mas uma trova é tão pouco
que ao meu cantar não dá jeito...

Só mesmo um poema é capaz
de conter o amor demais
que trago dentro do peito.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SONETO AO NOSSO ENCONTRO

Desenrolam-se as curvas do caminho
à proporção que aos poucos avançamos...
Um dia, - e eu vinha então triste e sozinho,
- um dia, - vinhas só... nos encontramos...

Desde esse dia, juntos, simulamos
duas asas de um mesmo passarinho,
- nesse destino que entrançou dois ramos
que dão a mesma flor... e o mesmo espinho...

Depois de tantas curvas já vencidas
que sejamos ao fim de nossas vidas
na perfeição do amor que nos conduz,

- como a folhagem que um só ninho esconde,
ou dois galhos que vêm da mesma fronde
para juntos morrer na mesma cruz!

Fonte:
JG de Araújo Jorge. Meus sonetos de amor. RJ: Ed. do Autor, 1961.