sábado, 30 de setembro de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 12

 

Carolina Ramos (Tiní)

Bleu nunca foi esquecido, embora sua dona ganhasse, como prêmio um gatinho persa, também lindo demais!

Comprado em São Paulo, ainda pequenino, Tiní veio de trem junto comigo e minha mãe. E, já que passageiro clandestino, muito bem camuflado numa caixa de papelão cheia de buracos disfarçados.

Às tantas, durante a viagem, resolvido a rebelar-se contra a prisão, Tini desandou a miar. E, ai... o "palco" abriu-se! E haja sorriso amarelo, da mãe e da filha, para disfarçar o vexame...

Logo, tornou-se impossível esconder a verdade e decidimos enfrentar o pasmo dos demais passageiros, tirando Tini da caixa! Foi aquele alvoroço!

A graça e o fascínio, daquela belezura de gato, correram de banco em banco, logo conquistando a simpatia de todos. E todos, sem exceção, queriam ver de perto aquela coisinha linda que até aos mais sisudos encantava!

Quando, algum tempo depois, o guarda trem adentrou o vagão para picotar as passagens, a cumplicidade geral, solidária, muito contribuiu para camuflar a presença do gatinho clandestino que, por sua vez, quieto e calado, parecia ter noção da gravidade daquele suspense vivido por tantos.

Foi justamente assim que aquela bolinha de pelo, rajada e macia, deixou o planalto e, despercebida, chegou, sem maiores problemas, à nova residência, nesta Santos praiana, para amenizar os dias cinzentos daquela menina ainda bastante machucada pela ausência daquele inesquecível gatinho azul, guardado para sempre na saudade.

Tini, tornando menos doída a lembrança de Bleu, passou a ser meu companheiro de estudos. Cúmplice, em tempos de provas, ajudava-me a despistar meu pai que, altas madrugadas, percebendo-me acordada ao ver, por debaixo da porta a luz acesa, entrava intempestivamente no quarto e surrupiava os livros espalhados ao redor da filha desobediente. E apagava as luzes, deixando-me às escuras, para que eu dormisse.

Tini, por sua vez, alheio, ou solidário às circunstâncias, lambia as patinhas, com cara de sonso, como se nada de errado houvesse acontecido à sua frente. Em autodefesa, logo aprendi a calçar as frestas da porta. Embora... ao descobrir o engodo, vez ou outra, meu querido pai me surpreendesse com um livro nas mãos, levando-o consigo. Contudo, meu querido pai não sabia que o livro que de fato me interessava já fora antes estrategicamente escondido debaixo do travesseiro, de onde só sairia findo o "perigo".

Hoje, analiso não ter sido rebeldia a desobediência daquela menina, que viria a se repetir algumas vezes mais. E ao entender melhor o que acontecia, reconheço, hoje, não ter sido nada fácil tentar equilibrar as exigências de boas notas, com a disciplina imposta por um pai severo.

Constato, também, vir de longa data essa minha fixação pelas horas produtivas das madrugadas, o que ainda hoje me furta períodos preciosos de sono. As madrugadas de ontem, sempre dedicadas aos estudos e as de agora, à digitação. Tudo, e, em qualquer tempo, porque "eu nasci assim", como diria Jorge Amado. E, mesmo não sendo Gabriela, assim espero continuar a viver e a pavimentar com letras as ruas que traçam meu destino, enquanto Deus o permita.

Nos cenários de ontem, Tini, por sua vez, após as broncas de meu pai, continuava a lamber as patinhas, como quem lavasse as mãos, com cara de sonso, solidário, ou simplesmente alheio a tudo. Como se nada de errado houvesse acontecido à sua frente.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 18 –


DE - SEN - VELHECER


Desenvelheço toda vez que me retoco
E a maquiagem que me dou, não me desmente,
Ela é o presente de um passado que eu evoco,
Quando meu foco é viver mais intensamente.

Rejuvenesço quando pinto meus cabelos
Mas alguns pelos denunciam minha idade,
Minha saudade nunca cede aos meus apelos...
Sem atropelos, chega com suavidade.

É impressionante essa leveza cristalina
Que as retinas não contêm, quando algum pranto
Faz meu encanto mais feliz dobrar a esquina,
Mas me deixar algumas notas de acalanto.

Que bom cantar... toda canção tem o poder
De me fazer amar o tempo em que a poesia
Sempre se alia à energia de viver
E compreender o meu amor com alegria.

Minto e desminto minha dor mais escondida
E enquanto há vida num canto da solidão,
A pulsação do meu amor sempre revida,
Quando, atrevida, a dor convida-me à razão.

Desenvelheço ao zombar do meu espelho,
Quando um joelho me impede de levantar...
O meu olhar vê, nos meus olhos, o fedelho
Que eu sempre fui, vendo um espelho se quebrar.

Sorrir me leva ao que me enleva e me abençoa,
Minha alma voa, pois é preciso sonhar
E para amar é só criar um sonho à toa,
Pois é tão boa a sensação de não chorar.

Rejuvenesço, eu mereço este momento
De ver o vento expondo as pétalas no ar,
Pois toda vez que o vento cria outro rebento,
Eu polinizo um novo tempo em meu olhar.
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LABAREDA

Teu amor se chega quando te incendeias,
Quando quem tu amas se virtualiza,
Quando a paixão permite que tu creias
Que há mais que um desejo em tua pele lisa.

O amor é lágrima que não desliza
No espasmo da dor das vísceras latentes,
Quando um riso tênue surge e nem avisa
Que há mais amor na dor que só tu sentes.

Teu amor é filho dessa solidão
Tão silenciosa que, sutil, te habita,
Que afaga a pele do teu coração
Quando a emoção sufoca a dor que grita.

Teu amor se chega como um invasor
De múltiplas faces, múltiplos desejos...
Quando ele se vai, já replantou a dor
Feita de prazer que existe em cada beijo.

O amor é teu riso, quando ele se solta,
Mexe em teus anseios e se alimenta
Dessa fantasia livre à tua volta...
O amor só volta... quando tu te ausentas.
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LÍRICOS ANSEIOS

Falo de amor... sou redundante... Incorrigível!
Parece incrível, mas até nas reticências,
Evoco a musa mais etérea ... ou mais tangível,
Dessas que surgem das mais líricas essências.

Quando me expresso ao falar de um sentimento,
Sou como o vento, toco as pétalas do amor
E cada verso que me dou, é o momento
Mais Inefável desse encontro com essa flor.

Por excelência, adjetivo essa ternura
Que dura o tempo da mais pura abstração,
Meu coração, liricamente só procura,
O amor que cura minha dor de solidão.

É assim que canto o maior amor que sinto,
Não minto a dor, é impossível disfarçar,
Mas meu olhar desvenda sempre o labirinto
Do sonho extinto que eu preciso ressonhar.

Lírico e lúdico, desenho, brinco, exprimo
Meus mais sensíveis sentimentos, quando escrevo...
Jamais me atrevo a ser o outro, quando rimo,
Meu verso é primo do amor, em alto relevo.

Seja quem for a minha musa... não nomeio
Meus devaneios... eles só têm um destino:
Abençoar, com meu mais lírico enleio,
O riso leve dos anseios... de um menino.
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QUANDO A NOSSA DOR FAZ POESIAS

O amor é o nosso ponto de partida
em tudo que façamos... a razão
não sabe controlar um coração,
quando nossa emoção comanda a vida.

Não penses que só tu tens incertezas,
mágoas, medos, raivas... melancolias,
pois quando a nossa dor faz poesias,
copia simplesmente das tristezas.

Nem sempre o que te dói é o que perfura,
há pobres sem saber o que é pobreza
e quem é infeliz por natureza,
nem sempre compreende a alma pura.

A água não desgasta a pedra dura...
apenas acomoda-a em seu leito,
assim é o coração: só dói no peito,
quando não tem mais jeito, a amargura.

Doutor nenhum conserta a criatura,
poeta, sim, engana até a dor,
e engana-se a si mesmo...ele é doutor
em conversar com a dor com mais ternura.

Quem diz que é grão-mestre em autoajuda,
mas não pratica nada do que ensina,
semeia um amor que não germina,
retira a proteína que o acuda.

A vida tem um tempo, o destino
não manda nos desígnios de Deus,
por isto, aprimora os gestos teus
e ensina-te com cada desatino.

Nós somos seres únicos, porém
somente somos dignos de nós,
quando passamos ter a mesma voz
daqueles que só querem nosso bem.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Monsenhor Orivaldo Robles (Minha delicada obsessão)

É bem possível que eu entre em uma loja de sapatos e saia exatamente da mesma forma que entrei, apenas com aqueles que calçam meus pés. Agora, quando entro em uma livraria, dificilmente conseguirei sair de mãos vazias.

Guardo comigo uma lista escrita e mental dos livros que ainda quero ler, sem contar aqueles que me surpreendem com suas cores, letras e prefácios pelas prateleiras.

A curiosidade em ler cada boa palavra escrita faz transbordar meu coração de euforia. Se eu pudesse, pedia para parar o mundo de vez em quando, só para ler horas seguidas despreocupadamente, longe das tarefas do dia-a-dia.

De uns tempos para cá notei que essa minha delicada obsessão traduz-se em uma simples palavra: compartilhar.

Quem escreve quer compartilhar suas experiências e impressões sobre o mundo que nos cerca e quem lê compartilha a certeza de que no peito de todos passam os mesmos sentimentos: amor, alegria, tristeza, esperança, compaixão, dentre tantos outros descritos de tantos modos.

Nem parece que o meu amor pela leitura começou quase que forçado. Assim que eu mudei de cidade, aos 13 anos, tirei nota baixa em uma prova na escola, meu pai me impôs um castigo de não sair de casa até que eu restabelecesse a boa média. Só que a prova de recuperação seria apenas no final do bimestre, ou seja, 2 longos meses me aguardavam em casa.

Não havia nada a fazer nas tardes quentes sem internet, smartphones, TV à cabo ou amigos na nova cidade desconhecida. Restou-me procurar pelos livros a ocupação para os solitários períodos de tédio, cumprindo a pena imposta, já que eu sempre fui péssima em desobediências.

Para minha felicidade, encontrei pelas incontáveis páginas editadas a companhia e o conforto para diversos outros momentos. A leitura começou a me conduzir por novos mundos, mostrando-me as inúmeras possibilidades de me expressar, a partir das incontáveis personagens e situações que passam pelo meu atento olhar. Os livros transformaram-se no alimento da minha alma.

Tive a capacidade de cometer um furto por esse amor: me apossei de um exemplar de poesias do Vinícius de Moraes da biblioteca da escola. Um dia decidi que só eu o lia, então ele seria mais útil na minha casa. Desde então me segue pelas diversas mudanças que fiz.

A verdade é que, num mundo em que tudo se acessa rapidamente através de telas reluzentes, o que me encanta é a usual página opaca com letras apertadas, a história contada sem pressa, a palavra milimetricamente posta para descrever os sentidos que movem a vida.

Na hora que todos os equipamentos eletrônicos devem ser desligados, é meu amigo fiel que permanece imóvel na palma da minha mão, ajudando-me a distrair dos calafrios dos pousos, decolagens e desavisadas turbulências.

Esse será meu refúgio até os meus últimos dias, porque se tenho poucos desejos para a velhice, certamente um deles traduz-se em estar rodeada pelos livros, bem acomoda na poltrona, lendo incansavelmente até quando meus olhos permitirem.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 6

AS SITUAÇÕES


Para contar histórias é fundamental criar situações. Você decide que a história transcorra em um bar de beira de estrada no início dos anos 80 na Espanha profundo ou em uma festa durante a véspera de Ano Novo do ano 1999. Escrever é tomar decisões e essas decisões têm consequências: embora o enredo e os personagens sejam os mesmos em ambas situações anteriores, a história resultante será diferente.

Como seria a sua história mudando o quadro espacial e temporal? Você se lembra da senhora atravessando a rua? E se transformássemos a rua em uma rodovia? Seria isso a mesma situação hoje de 20 anos atrás?

Se você fez a linha do tempo da sua história, aí você tem todas as situações que você teve proposta para o seu desenvolvimento. Pense em outras possibilidades. Tenha em mente que situações também devem responder ao esquema: abordagem, desenvolvimento e resultado.

Não importa quão linear seja a história, você sempre omitirá momentos (lembre-se: escrever é decidir), aqueles que não lhe interessam para o desenvolvimento. O importante é que esses saltos são executados suavemente, sem deixar no receptor a sensação de que dados estão faltando ou foram deliberadamente omitidos com a intenção de gerar intriga. Este último seria como um mágico vendo o truque.

Para finalizar a revisão das situações da sua história, é importante estimar o tempo que decorre do primeiro ao último. E, se houver, localize o tempo pulado. Como você os resolveu? Além disso, se a sua história acontecer por um longo período de tempo, e seus personagens não são imortais, eles deveriam envelhecer à medida que o ambiente muda
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Varal de Trovas n. 588

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 92

Sons distantes, cães latindo, grilos cricrilando. Vicejam as hortaliças, eucaliptos estão gingando, pessegueiros, engalanados de flores. O perfume da viúva-alegre.

Os verdes estão contentes porque sentiram a chegada da estação-ternura, os humanos estão risonhos recebendo a primavera-inspiração. A bem-chegada floresce novas vidas, insufla ternos sentimentos, renova a sensação de viver.

O que seria a primavera senão esse manjar terreno-celestial de cores, sons, eflúvios embalados pela brisa dos caminhos, o aroma dos vergeis, o matizado dos banhadinhos, com hosanas na vibração do universo.

Cantai, avezinhas, - beija-flores, tico-ticos, corruíras, canarinhos, bem-te-vis, joões-de- -barro - , exultai com os novos dias embalsamando a prima estação. Lembrai que as calendas são passageiras. Vibrai, pois, trinai jubilosas.

Bem-vinda, primavera!

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Caldeirão Poético LXVIII


Corina Rebuá

QUE INSÔNIA!


Como faz frio neste quarto agora!
A chuva bate em cheio na vidraça.
E o relógio da igreja, de hora em hora,
Soa. Há passos na rua... E a ronda passa...

Não consigo dormir. Como demora
Esta vigília que me torna lassa!
Se abro um livro, não leio. E lá por fora
Chove. Há passos na rua... E a ronda passa...

Dormes? Não creio... Eu sei que estás velando,
Porque eu pressinto que, de quando em quando,
Vem o teu corpo fluídico e me enlaça.

O relógio da igreja está batendo.
São quatro horas... Que insônia! Está chovendo.
Ouço passos na rua... E a ronda passa.
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Dimas Guimarães

CALEIDOSCÓPIO

Outrora, foste a pérola mais pura
e mais bela dos mares do Japão,
messe dourada, fonte de ternura,
o tesouro encantado de Jasão.

E, sendo a mais perfeita criatura,
— flor adulta com ares de botão —
eras linda promessa de ventura,
gema rara da Líbia ou do Industão.

Mas veio o outono... As folhas amarelas
lembram extintos sonhos de donzelas...
Sonhos que o tempo rápido esfumou...

E, em vão, procuro pelo teu encanto,
e reparo — olhos úmidos de pranto —
nem a pureza o tempo conservou...
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Helena Collin

FELICIDADE

Por fazer-te feliz não me constranjo
em parecer-te excêntrica... ou vulgar.
Os meus tesouros de carinho esbanjo
sem prêmios nem louvores reclamar.

Sou capaz de ir ao céu na asa de um anjo
pedir a Deus a graça de perdoar
teus pecados de amor... E a lira tanjo
a teus pés, como um crente ao pés do altar!

Adivinho o que pensas e o que queres;
e, nesse amor, dando-te tudo, almejo
dar-te alto o amor de todas as mulheres.

E quando vier, um dia, a saciedade
apagar-te os incêndios do desejo,
terás de cada instante uma saudade!
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Iéda Lage Passos Guaraná

CONVITE NOTURNO

Vem! Sigamos, pelo ermo das distâncias,
o destino da Noite! Entre as boninas,
desatemos em véus de seda, as ânsias,
no aconchego macio das neblinas!

Taça a taça, bebamos as fragrâncias
do amor celestial que me propinas!
Embriagados, sem voz e relutâncias,
no alvo leito de relva das campinas!

Como tochas de fogo, redentoras,
as estrelas, ardendo de desejos,
soltam murmúrios de almas pecadoras.

Vem! Que a aurora não brilhe nos espaços!
Quero ser machucada nos teus beijos,
quero ser esmagada nos teus braços!
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Inocêncio Candelária

NÓS

Brincávamos nós dois o dia inteiro:
Você, linda criança, eu pequenino,
num mútuo bem-querer, num verdadeiro
mundo de flores, plácido e divino!

Sempre juntos, você foi quem primeiro
ensinou-me, de um modo peregrino,
viver, amar, ser bom, ser altaneiro,
minha loura boneca de menino...

Depois fui para longe... A nossa dita
o tempo transformou. Deus assim quer!
Fiquei moço e você ficou mulher...

E mulher, mais mimosa, mais bonita,
você é ainda a mesma em meu destino,
minha loura boneca de menino!
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Maria Nascimento Santos

FANTASIA


Meu sonho era fazer versos um dia...
E quando, às vezes, triste me encontrava,
fingia que chorava de alegria,
quando era de tristeza que eu chorava!...

E percebi que até numa poesia,
que entre lágrimas tristes me brotava,
como um divino toque de magia,
mesmo sofrendo, assim, me reanimava!

Foi tudo em vão, porque, fazendo versos,
eu nem notei que os meus sonhos dispersos
transcendiam meu mundo pequenino.

E, na angústia de quem sempre sofreu,
então, pergunto a Deus por que me deu
um sonho bem maior que o meu Destino...
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Maria Thereza Cavalheiro

CONTEMPLAÇÃO


O céu hoje parece um campo aberto,
todo de ovelhas mansas pontilhado...
O vento pastoreia, rumo incerto,
o seu branco rebanho, leve e alado...

O firmamento tem mais luz, por certo,
nesse esplendor azul de que é tomado,
para dar a impressão de que está perto
de nós o Ser Criador por nós amado.

Quantos segredos, quantos, que a razão
dos homens não consegue desvendar:
o mar, o céu, as matas — amplidão!

Esplêndida, infinita de beleza,
pudéssemos um dia revelar
as misteriosas leis da natureza!

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. Publicado em 1987.

Machado de Assis (Um dístico)

Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.

Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na Rua de S. José, entre onze horas e meio-dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era das Almas ou do Santíssimo Sacramento. Tal encontro era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.

A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos, cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho — o pedinte era um velho, — mostrou então em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.

Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia obsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da plateia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances, durante anos eternos.

Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:

Le matin catholique et le soir idolâtre,
Il dîne de l’église et soupe du théâtre.


(A manhã católica e a noite idólatra,
Ele janta de igreja e sopa do teatro.)


Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho. O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.

É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, le matin catholique, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Momo: et le soir idolâtre.

Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.

Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã; le matin catholique. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram de um ou dois mil-réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor, e fossem três mil-réis, ao todo: ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.

Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes, voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: Para a missa...

Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto, e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dístico: il dîne de l’église et soupe du théâtre.

De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes, na mão, grave, calado, e sem remorsos.

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Quinzena, nº. 7, 1º. de julho de 1886.
Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 36: Os causos do meu pai

 

Geraldo Pereira (Os meus enganos)

Há coisas que acontecem comigo que o diabo duvida de costas, em noite de sexta-feira treze! São ligações telefônicas erradas, recebidas ou discadas ou são anotações de agenda trocadas na minha cabeça. Foi assim que compareci ao casamento de amiga minha, marcado para um dezenove qualquer do ano, sete dias antes e nada ou quase nada encontrei na igreja.

Indaguei do flanelinha em bom português se havia por ali um enlace matrimonial e o menino, ávido pelo trocado que não chegou a receber, de pronto confirmou. Não perguntei pelo nome da noiva, porque quem toma conta de carro ignora esses detalhes, faz o seu papel no teatro da vida e nada mais. Entrei e havia pouca gente no templo, pessoas concentradas no meio dos bancos, em torno de um bebê. Era um batizado, na verdade e eu dei com os burros n’água!

Pior com o velório! É que morreu um homônimo de uma pessoa que conheço há muitos anos, da qual me afastei pelas circunstâncias do existir e não tive dúvidas, vesti o paletó, apertei a gravata e parti em direção ao cemitério considerado, também, um parque e que de parque nada tem. Identifiquei o lugar no qual se fazia o ritual da finitude e cumprimentei a todos. Não havia um conhecido que fosse! Notei uma certa estranheza, como se estivesse completamente fora do contexto e estava. Olhei para o homem largado à própria sorte e observei que usara bigode em vida, característica ausente no meu ilustre amigo. Do celular, mesmo, contei à minha dedicada secretária o impasse. Ouvi a recomendação necessária: “Volte! Ele nunca usou bigode!” Para a família, restou a perplexidade.  Afinal, eu nunca tinha visto o pobre do defunto!

Mas, durante uma reunião em Olinda, no convento do Carmo, tocou o telefone. Nunca atendo esse equipamento quando me ocupo. A oportunidade, porém, de ir à janela e dali apreciar o mar, para mim foi uma tentação irresistível. O interlocutor, então, se apresentou: “É Valter!” Há quem pense no prenome como uma identificação definitiva, como se fosse o único no mundo com aquela nomeação. Fiz um esforço de memória, associando a voz com o nome, mas foi debalde. E ele: “Você não está me reconhecendo?” Respondi com todo cuidado: “Estou começando a reconhecer! Aos poucos saberei de quem se trata!” Ai, complementou: “Sobrinho do finado Wilson!” Piorou tudo, inibiu todas as minhas associações! Desesperado, entretanto, explicou: “É Coruja!” “Bom! Coruja eu conheço!” E o diálogo prosseguiu! Tinha morado em minha rua nos tempos de menino e virou pastor, como tantos por ai!

De outra feita, pedi à telefonista que ligasse para amigo meu que dirige instituição importante e que havia me pedido fosse resolvida uma questão de seu interesse, para continuar o trabalho que vinha fazendo. Dei como indicação o prenome e mais o cargo que exerce. A moça, muito solícita aliás, fez a conexão e passou a ligação. Como tinha resolvido tudo, disse, de logo: “Fique tranquilo! Vamos continuar juntos nessa luta pelo social! Pela gente simples e pela educação!” Ouvi de meu interlocutor de ocasião uma exclamação que estranhei, francamente: “Por que você fez isso? Eu não lhe pedi! Eu não preciso disso! Vivo aqui de meu negócio e não me meto com nada que esteja na esfera do social!” Perdão, quase peço, pois que era da iniciativa privada e não tinha a menor relação com aquilo que lhe transmitia por telefone!

Uma vez, numa sexta-feira de Carnaval – já vai longe –, recebi telefonema de uma certa criatura que procurava pelo namorado, indagando: “André está?” Ora, não existe André por aqui e ninguém com namorada, mas não perdi a oportunidade: “Está no bar da esquina, completamente embriagado!” E ela: “Eu não acredito nisso não! Ele prometeu que iria comigo ao Galo!” E eu: “Você é a quinta pessoa que liga! Ele prometeu a mais quatro!” Não hesitou em responder: “Vou matá-lo!” Não o matou, certamente!

Fonte:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Goulart Gomes (Poetrix) IV

Poetrix é um poema com, no máximo, trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe com três versos (terceto) e título que, quanto à sua forma e conteúdo, deve ser composto conforme dispõe a Academia Internacional Poetrix.

Formas múltiplas são linguagens poéticas criadas em contextos comunicativos e constituídas como derivações do poetrix; sua elaboração tem como características básicas o dialogismo, a intertextualidade, a polissemia da linguagem, amistosidade, ludicidade e conciabilidade.

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APÓS LAVAR OS PRATOS E
FECHAR A TORNEIRA DA PIA


epitáfio da morte:
o silêncio
é para os fortes
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  AROMA

pétalas no lago
o peixe vem aspirar
o perfume, e nada
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AS POMBAS

símbolos da paz
decolam e me alvejam.
Nego o milho
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BRUXA

escrever: palavras coser, cozer
poesia, linha e pão mistura
mergulho em seu caldeirão
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CAATINGA

madeira couro areia
na terra corre
sangue, nas veias
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DALI

em minhas noites
habitam teus sonhos
noites de Gala
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DITADO IMPOPULAR 2

águas passadas
nos movem
sozinhos
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EU ESCUTO GENTE MORTA 8: SCIENCE

entre a lama e o caos
nunca vi tanto urubu:
uma cerveja para ficar pensando melhor
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GAROA DE IPANEMA

Bethânia cantava, e Felipa Pais
“meus olhos já não estão
entre os mortais”
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GRAVIDEZ

pingos pousam no brilho
a mulher cresce
nasce o filho
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GULA

o amor nos devora
come a gente
de dentro para fora
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INCONFIDÊNCIAS PASCOAIS

sonhos enforcados
corpos esquartejados
longa travessia à terra prometida
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JANELA

não posso vê-la
saio
por ela
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LIBERDADE

vento frio
sopra onde quer
cão sem coleira
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NOITE DE GALA

Com as mãos, leria
tuas tatuagens e cicatrizes
- Poeta sem tato, me dizes
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PEDRO, ANTONIO E JOÃO

muita cachaça, pouca oração
na mão direita um terço
na esquerda, um quentão
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PEDROFILIA

em múltiplas formas
sua poesia
faz meu gênero
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POETRIX AOS MESTRES BANDEIRA

vou-me embora pra Bahia

todo mundo é “meu rei”
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PRETÉRITO MAIS QUE PERFEITO

passa o carrinho
sejam doces ou salgadas
pipocam saudades
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QUEBRA CABEÇAS

não me encaixo
por mais que peças
ainda que me esqueças
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UM POETA GUIA SEU VEÍCULO
NO TRÂNSITO DE SALVADOR
LEMBRANDO QUINTANA

ônibus atravancando meu caminho
eles, lotação
eu, unozinho
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campos de girassóis
quem deu a vida
por nós?

Fonte: Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos. SP: Scortecci, 2022.
Enviado por Goulart Gomes.

Renato Frata (Não é pedir demais)

Lá fora, o sol bate nos quarenta e pode atropelá-lo.

O asfalto avistado ao longo, parece tremer em vapores. Homens com uniforme varrem com languidez, as flores dos ipês deixadas pela noite. Há entre elas tocos de cigarros e outros lixos que o povo insensato deixou na passagem, e ali no muro, ao descuido de alguém, uma torneira chora pingos amornados.

Parece olhos cansados de chorar, mas não, é de alegria que ela verte, já que uma poça formada escorre seu excesso até a guia e dali, em outra menor, segue na descida sem se importar com a quentura que enquanto a aquece, lhe arranca a alma. Esse pequeno fiapo de água escorrida, porém, à mercê da aventura vadia que lhe toma o brio, parece rir do sol pela contraposição do cá em baixo e nem liga se logo estará seco. Aliás, nem se apercebe... E a situação sol-calor, água-frio, me dá uma ideia. Aliás, alguém poderá dizer que de jerico.

Pois como aquele filete desmiolado de água a mim exposto, dispo-me de qualquer siso ou conceito e saio em sua direção. Não sei por que, mas inadvertidamente procuro sombras que me abriguem a calva. Amparo-me no muro, me aproximo, abaixo meu corpo e abro a torneira. Sorrio como quando fazia peraltagem e nem ligo para uma senhora de bolsa e sombrinha que passa em resfolego. Tem pressa e vai. Deixo a água vazar espirrando em meus sapatos sem me preocupar se logo o terei que engraxar.

Aguardo que a água esfrie e então, como aquele moleque de ontem, colho-a e ela, também peralta, brinca de escorrer de minhas palmas. Bebo-a do que sobra. Pego mais, refresco meu rosto e fico. O Eu-Água ganha vida, mas sinto que há um vazio entre nós. Talvez saudade de um passado que se escorre pela memória, tal como ela, pela guia, para morrer mais adiante.

Inspiro solerte, olhos brilhantes, tez acetinada, rejuvenescido. Mais pessoas passam. Umas estranham, outras sorriem concordando que a velhice permite, sim, certas loucuras. Fecho a torneira e dou dois passos para voltar, mas aí, paro. Contemplo o céu, volto agora o olhar à boca seca da torneira, à poça que ainda escorre em filete mais metro, menos metro abaixo, para a morte.

Indago: devo tirar os sapatos e sapatear a poça? Minha juventude repentina pede que sim, as sobrancelhas acinzentadas não deixam.

Então me consolo, mas penso: bem que você poderia estar aqui para partilhar comigo essa arte em que nós sorrindo, levaríamos suas mãos em concha a aparar um pouco de água e, enquanto você a saboreasse, meus olhos saboreariam sua linda face e o complemento que a faz bela por inteiro.

Não é pedir muito, é?

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 5

OS PERSONAGENS


Os personagens não são pessoas. Se você usou um modelo real para criar o protagonista da sua história, você escolheu bem, é um método rápido que funciona, mas não insista para que seu personagem aja como seu modelo faria na vida real porque uma história não é a vida real. Na melhor das hipóteses, é a vida real reinterpretada por você.

Seus personagens sempre precisam ter algo especial, uma qualidade que os torne únicos, mas ao mesmo tempo permite-nos sentir identificados com eles. De modo que seja um personagem positivo ou negativo; deveria se destacar dos demais, mas Cuidado: não é necessário que todos voem como o Superman. É o componente caráter humano do Super-Homem que nos permite sentir-nos identificados com ele. Por muito mais fantástica que seja sua história, os recursos de seus personagens, no final, estão no mais básico do ser humano. E vice-versa: não importa quão realista seja a sua história, basta descrevê-la, você já está extraindo o personagem daquela massa difusa que o cerca, você está fazendo algo especial.

A motivação é a força que faz o personagem se mover e com ele toda a história. Sim, algo acontece em cada história, cada personagem tem que se transformar durante a história. ou seja, a história conta a evolução de um personagem, pode ser uma iniciação ou uma tarde chata em casa, mas no final da história, o protagonista não é o mesmo que o começo.

Faça seus personagens falarem de acordo com suas circunstâncias e características, ouça em voz alta o que eles dizem e faça parecer que uma conversa é a parte mais complicada e mais satisfatória. Mas não devemos confundir escrever diálogos com transcrever uma conversação. Quando falamos na vida real usamos gírias, regionalismos, até alteramos a pronúncia de algumas palavras e a construção de frases dependendo do nosso interlocutor e da publicidade ou outros elementos externos e com um pouco de sorte, nossa história durará no tempo, ainda que seja compreensível, mesmo fora do nosso ambiente.

Para finalizar, liste seus personagens e conte-os. Quantos tem? Quais são as suas motivações? Que função eles desempenham na história? Se houver algum que não cumpra nenhuma função, exclua-o; Tenho certeza de que essa cena alivia a tensão do todo.

Existe um personagem cuja função é semelhante à de outro? Por exemplo, quantos amigos seu protagonista tem? Você precisa deles?
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução por J.Feldman

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 37

 

Newton Sampaio (Dois homens feios conversam)

Os dois homens feios desembocaram na Cinelândia. Tinham saído de uma redação de jornal, onde foram encher com as garatujas cotidianas uns tristes linguados anônimos. Espiaram as grandes luzes da cidade, subindo, impressionando. Escutaram os conhecidos ruídos da metrópole, confundindo-se, apagando-se.

— Que horas são?

— Dez e meia.

— Vamos ver os cartazes deste cinema?

— Vamos.

— Olhe aqui a Kay Francis. Que tal acha essa morena?

— Notável... pelo menos no cartaz.

— Eu gosto das artistas de cinema precisamente porque elas guardam o sortilégio da distância. A distância sabe dar a todas as coisas um encanto muito maior, um legítimo sortilégio invencível.

— A distância aumenta o valor somente daquilo que já se conheceu ou se sentiu um dia. Ora, você nunca sentiu de perto a Kay Francis. Logo, você não pode acreditá-la mais bonita apenas porque essa dama está longe de nós.

— É um engano seu. A gente pode perfeitamente sentir (ora mais intensamente, ora menos intensamente) uma beleza que nossos sentidos não tocaram em tempo algum. Comigo até se dá um fenômeno interessante. Às vezes, eu chego a recompor, dentro de mim, com absoluta perfeição, uma sensação que eu jamais experimentei.

— Isso é fantasmagoria...

— Não é fantasmagoria, não. Eu o faço em plena consciência.

(O outro ficou sorrindo, incrédulo).

— Você pode sorrir à vontade. Mas ouça o seguinte: nós, os que estudamos medicina, quando nos propomos completar o exame do sistema nervoso do paciente, depois de pesquisar o sinal de Kernig, o de Romberg etc., passamos à estereognose...

— Estereognose?

— É a noção do relevo. O sentido estereognótico é o sentido do relevo.

— Mas... o que tem isso a ver com a nossa conversa?

— Apenas isto. Eu apresento aquilo que se poderia chamar, com o competente pedantismo acadêmico: hiperforça na estereognose psíquica.

— Não entendi patavina.

— Eu quis dizer que sou capaz de conhecer um relevo íntimo sem ter sentido jamais o objeto desse relevo.

— Per Baccho! Mudemos de assunto. A conversa está se complicando demais.

Então os dois homens feios perceberam que tinham deixado a Cinelândia para trás e que estavam já no extremo da praça Paris.

— Você não acha que eu converso demais?

— Isso não é um bom predicado.

— Sinto uma necessidade permanente de dar forma ao pensamento. E, quando suspendo a conversa ou a leitura, imediatamente me ponho a escrever. Garanto que hoje, antes de dormir, ainda escreverei qualquer coisa...

— Porque o ato de escrever é o jeito que o homem tem de conversar consigo mesmo!

— Meu caro, tal como o mendigo de Deus lhe pague, eu tenho uma enorme pena dos mudos. Dos mudos e dos analfabetos...

E a conversa rolou pela noite adentro. Rolou, rolou. A orgia de luz continuava. E diminuía o ruído da cidade, pouco a pouco.

O mar, o velho mar amigo, investia sem descanso na murada impassível da praça Paris. Os reclames luminosos davam sua festa noturna nas escarpas dos morros. E automóveis deslizavam no asfalto, levando para os cassinos, ou para as alcovas, lindos corpos perfumados em que se afogariam ânsias poderosas...

E os cabelos dos dois homens feios faziam cambalhotas incríveis sob o vento que vinha do mar...

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 16/05/1936. Republicado na revista Fon-fon. Rio de Janeiro, 16/01/1937.)

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVIII


A agitação que se estende
pelos tempos, sem medida,
busca o tudo e mal entende
o excesso, se falta a vida.
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A amizade é como a chama
que arde quase sem parar,
se entre brasas se esparrama
continua a alma queimar.
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Ao despertar das auroras
o homem parte em caminhada,
mas com o passar das horas
se exaure ao longo da estrada.
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Deus, o eterno poliglota,
entende as línguas humanas,
conhece o que delas, brota
nas vastas plagas mundanas.
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Deus te ilumine e te guie
nas estradas da existência,
se possível sempre adie
a ida para outra querência.
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Difícil de ser vivida
nesta vida em potencial.
aonde há tudo, menos vida,
no contexto existencial.
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Entre amor e um vil namoro,
há quem, sem amar, namore,
não querendo ouvir um choro,
nem namoro, de quem chore.
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Faz do bom-senso o caminho
e dos espinhos o incenso,
que intenso em cada raminho
surja um frutinho suspenso.
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Levar a inércia na estrada,
cresce o rol das depressões,
do êxito fecha-se a entrada
e abre-se a das decepções.
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Nenhuma nuvem suprima
do sol, seu fulgor supremo,
mas ao calor sempre imprima
um ar sedutor e ameno.
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Neste imenso Lar de Deus,
nunca caminhemos sós,
transformemos tantos Eus,
em um deslumbrante Nós.
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O amargor da frustração
rapta a doçura da vida
e prostrada à retração
chora a paz, desvanecida.
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O grande poder da chave
é fazer a porta abrir,
sua falta abre um entrave
que impede entrar ou sair.
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Para que haja aquecimento
é necessária a energia.
E, sem qualquer movimento
talvez, calor não teria.
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Pelas escarpas da inveja,
ou, planícies sem o afeto,
o homem, insano esbraveja,
conspurcando o próprio teto.
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Põe zelo e sustento à vida
com primores divinais.
nenhum temor nela incida
na busca dos ideais.
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Seja a amizade um presente
sem prazo de validade,
nunca com o amor ausente,
sempre sem rivalidade,
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Sendo a morte uma passagem
entre dois planos da vida,
ninguém faça dela a imagem
de uma batalha perdida.
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Se o sol, de brilhar cessasse,
tal uma noite infinita,
embora alguém a almejasse,
a vida estava restrita.
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Se um corpo inerte, no esquife,
nada em vida quis mudar,
nunca espere, alguém borrife,
o esquife para o salvar!
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Tão sedento, beijo a fonte,
sobre uma espectral magia,
debruçado, vejo a fronte,
mergulhada na água fria.
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Teu sonho lança os pilares
de uma nobre construção
e enquanto procrastinares
mais tardas a conclusão.
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Todo o cão que agita e late,
se não morde, muito irrita,
quem chegar á porta e bate
volta e não faz a visita.
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Todo o segredo, com zelo,
a sete chaves, mantido,
como um dia desfazê-lo
sem torná-lo conhecido?
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Tomar por base a aparência
sem qualquer discernimento,
é fugir da própria essência
pra assentar um julgamento.
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Um ar de suavidade
tem a brisa em noite amena,
tão serena a amenidade
que torna a vida mais plena.
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Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 15: Encontro de amor

Após sentir aqueles versos genuínos, absorvidos em sua alma, misturados ao DNA de suas lágrimas inocentes, Isadora voltou-se para seu próprio interior... E permaneceu inerte por algum tempo.

Sabia que precisava mover-se, e num impulso, agitou-se, logo procurando no armário o vestido mais bonito: um vestido vermelho, com fundo estampado em flores brancas, o mesmo que seu pai havia repreendido por não considerar um vestido adequado a uma prenda distinta.

Pois foi o que escolheu e, frente ao espelho da penteadeira, prendeu o cabelo, pintou os lábios, pulou a janela do quarto e foi ao encontro de seu amor.   

Ao vê-la, em pleno horário de serviço, o rapaz pareceu surpreso. Abriu um largo sorriso e correu ao seu encontro.

- Vieste mesmo... És uma prenda atrevida! Gostei. – disse o peão, tirando o chapéu em reverência à ousadia da moça.

- Vim, porque sou uma mulher de palavra e porque gostaria de te agradecer o poema.

- Gostou, prenda?

- Gostei muito!

 No calor da emoção, abraçaram-se fortemente e tornaram-se apenas um. Apenas um, não, grandiosamente um único ser, e a alma de suas naturezas sorriu. Mas logo veio o lampejo de uma falsa realidade, e disse o peão: – Acho que não devemos nos abraçar assim. Lembro que me repreendeste dizendo que somos apenas amigos.

- Verdade!  - disse Isadora.

- Que pena! – disse ele, segurando delicadamente as mãos dela.

- Pena, por quê? Isso já não é o bastante?

- Não. Amor amigo é amor de irmão. Não posso mentir: o que sinto por ti é paixão. Febre que me tira o norte.

- Eu sei, mas não podemos ser outra coisa. Por favor, aceite ser meu amigo.  

-  Céu, terra, ar, o amor da minha vida me chamou de amigo. Anjos, reúnam-se em conselho e deem a sentença do que devo fazer: fugir para outro planeta, cortar os pulsos ou arranjar outro amor, sem amor, só para enciuma-la e fazê-la entender que sou o amor da sua vida?  Anjos celestiais, entrego a decisão do que devo fazer, em vossas mãos. Votações abertas! – disse, genuíno, bradando aos céus de chapéu na mão e braços abertos.

Isadora teve um acesso de riso, e ele se vingou pegando-a no colo e dando giros no meio do arrozal. Ela escapou, e feito crianças começaram a correr um do outro, até que, ao tropeçarem numa pedra, rolaram pelo chão. Os olhares se encontraram e o primeiro beijo aconteceu.

- Sua falsa... Diz ser apenas minha amiga, e me beija desse jeito.

- Tu me beijaste.

- Não mesmo. Foste tu. Linda, amiga.

- Nos beijamos... - disse a prenda, emocionada e com o cabelo desfeito. E logo trocaram o segundo beijo.

O vento se fazia quente e pássaros pousavam sobre seus corpos, como costumam pousar em galhos de árvores para cantar as belezas da vida. Borboletas coloridas repousaram em seus ombros e águias sobrevoaram ligeiras suas cabeças, e o perfume da existência se fez presente, exalando bênçãos sagradas.

Ao se entregarem, eles sentiram a alma guardiã do amor presente, e por alguns instantes o resto do mundo deixou de existir, porque naquele momento mágico, eles eram o mundo: o mundo da perfeição. Então, sentados um frente ao outro, ficaram em silêncio, a se contemplar...

- Agora preciso fazer-te uma pergunta séria, Isadora – por que só podemos ser amigos? É porque sou negro e não passo de um simples peão? Já entendi. Sua família nunca permitiria – falou o rapaz, quebrando o silêncio.

- O problema é muito mais sério do que isso, mas não posso contar. Por favor, não estrague este momento tão lindo.

- Então, como vamos ficar?  Nos encontrando às escondidas?  Preciso pelo menos entender o motivo. Estou disposto a enfrentar qualquer coisa por ti, por favor confia em mim.

- Tens razão. Não pode haver segredos entre nós. Vou contar, mas não hoje. Beija-me outra vez, querido, amigo...
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continua…

Fonte: Texto enviado pela autora

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 4

A TRAMA


Em toda história, por menor que seja, existem três partes fundamentais: apresentação, meio e fim. Para que possamos entender tanto a trama principal como a subtrama, é necessário, inevitável, que apresentemos aos personagens e proporemos as regras do jogo. Mais tarde iremos submeter a esses personagens a algum tipo de teste, sofrimento, piada macabra que permitam que evoluam e, ao final, decidiremos se eles se casam ou não, se o nosso protagonista morre ou nós lhe perdoaremos seus pecados. Parece simples, mas muitas vezes, cometemos erros de proporções.

Revise sua história e marque onde você acha que cada uma das partes começa e termina. Uma boa história tem sempre proporções harmoniosas: a a apresentação “pesa” tanto quanto o desenlace, tendo maior extensão, aproximadamente o dobro dos anteriores. Esta é apenas uma aproximação que pode-se ver facilmente em qualquer filme.

Os erros mais comuns em relação ao enredo são:

- uma abordagem muito longa que nos aborrece.

- um desenvolvimento que carece de tensão. O ideal seria que saber o interesse em como termina a história foi crescendo e que, pouco antes do desfecho, estivesse em seu ponto máximo. Mas tome cuidado com resultados precipitados. Além disso, os contadores de histórias principiantes tendem a finais dramáticos (a morte do protagonista ou a perda de uma oportunidade que não voltará a surgir) e surpresas. Ler ajuda a se livrar desses vícios.

- a falta de ritmo. Há situações muito interessantes, seguidas de outras que provocam tédio e indiferença. Além disso, o receptor tem a sensação de que essas situações não levam a lugar nenhum. Tudo o que acontece tem que acontecer porque a história precisa disso.

Uma maneira eficaz de controlar as tramas e as subtramas da nossa história é fazer uma “escaleta” (lista). Uma escaleta é a enumeração das cenas da nossa história desde o seu começo até o final. É muito importante que você diferencie dos personagens, subtramas do mesmo personagem... Você pode complicar a escaleta tanto quanto você deseja, porque quanto mais complexo você o tornar, maior compreensão você terá de sua história. Claro, lembre-se que mesmo que você faça uma lista maravilhosa, sua história não tem por que melhorar. Mesmo que os planos da sua casa tenham sido desenhados por um grande arquiteto, não garante a execução da obra.

Além disso, a escaleta serve para examinar uma história já escrita, bem como para criar uma nova. Alguns contadores de histórias acham muito mais fácil saber para onde vão, outros não e há quem se queixe de não conseguir seguir o esquema previamente traçado, dizem que seus personagens ganham vida própria e força-os a mudar a história. Qual é o problema? você sempre terá um alternativa à história que você está escrevendo.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução por J.Feldman

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Ponto cego)

— VOCÊ PENSOU bem no que vai fazer, Rosana?
— Pensei, repensei e estou decidida. É agora ou nunca.
— Eu se fosse você contava até mil.
— Já contei até um milhão.
— Não parece. Conta de novo.
— Nem que a vaca vá pro brejo.
— Não esqueça das consequências. Lembre também de suas duas filhas.
— Elas me darão total razão depois do caso consumado.

— Quando elas descobrirem e entenderem o que você pretende fazer com o pai delas, evidentemente ficarão com raiva. Raiva não, ódio. Ódio mortal.
— Rayane está do meu lado. Entende um pouco da situação humilhante pela qual estou passando. Diria a você que ela sabe das sacanagens que o pai tem feito comigo. O problema, futuramente, se houver, poderá ser com a Rayssa. Embora tendo convicção de que o pai não presta, gosta dele demais...

— Pense no futuro. As duas não têm idade para certos discernimentos. O que quero dizer é que hoje elas não assimilam muitas coisas dessa loucura que é a vida adulta. Porém, amanhã, poderão ser seu inferno.
— Se acontecer, não estarei nem um pouco preocupada. Já escolhi o final da história.
— E o seu capítulo?
— Meu capítulo?
— É.

— Que capítulo? Não tenho nenhum que me recorde.
— Seu capítulo com o Bufônio.
— Acabou.
— Tem certeza?
— Como dois e dois...
— E o que virá a seguir?
— Não estou entendendo, Eugênia.
— Faço referência ao capítulo que o destino escreverá após o fato levado à cabo.

— Planejei cada detalhe com carinho.
— E se algo sair errado?
— Não sairá.
— Rosana, se você não se ama, não se gosta, não tem um pingo de ternura pela sua pele, ao menos, por amor às suas filhas, desista dessa idéia.
— Nessa altura do campeonato?
— Não descarte a possibilidade de uma possível cadeia.
— Se tudo correr conforme espero, e correrá, pode estar certa, não haverá cadeia. Demais a mais, não vou cometer nenhum crime hediondo.

— Já que levou o assunto para essa seara, tenha em mente que o crime não compensa.
— Eugênia, pelo amor de Deus, eu não vou cometer nenhuma barbaridade!
— Vai sim.
— Eu não vou matar o Bufônio. Apenas aplicar um corretivo. Um castiguinho de somenos importância para ele aprender a respeitar a esposa fiel que vive ao seu lado, a companheira que faz de tudo para manter um lar em constante harmonia.

— Você poderá perder a sua liberdade. Suas filhas ficarão jogadas ao léu. Pense. Na casa dos outros. Duas meninas que mal sabem o que é a vida...
— Rayane e Rayssa não ficarão desamparadas. Vou deixá-las com minha mãe.
— Sua mãe é de idade avançada. Não tem estrutura para aguentar uma pancada dessa envergadura. Duas crianças não são fáceis.
— Eugenia, não adiante tentar me demover dessa paranoia. Já disse, estou decidida. Aquele cachorro vai ter o que merece...

— Premeditação.
— O quê?!
— Isso que está fazendo e quer pôr em prática, não sei o que pretende, mas não importa. Se chama premeditação.
— Não faz diferença o nome que você dê ao que pretendo pôr em evidência. Sei apenas de uma coisa: Bufônio terá o que merece. Hoje me vingo. Acho que todas as mulheres que se sentem traídas deveriam seguir meu exemplo. Aposto que muitos homens metidos à besta tomariam jeito e vergonha na cara.
— E como você porá em prática essa barbárie, ou melhor, como pensa em dar cabo dela?

— Como te falei. Hoje é o aniversario do safado. Reservei uma suíte no motel aqui perto de casa para nós. Mandei preparar um jantar romântico à luz de velas, com o prato preferido dele regado ao vinho que mais aprecia. Vamos nos amar como nunca. Farei tudo o que ele gosta, numa deferência toda especial. Pretendo me transformar na prostituta que ele sempre procurou fora de casa. Sabe aquelas vagabundas bem safadas e fazem estripulias que até Deus duvida? Então...
— Na hora agá você se envolve, entra no clima e volta atrás. Vou torcer para que tal ocorra...

— Aí é que você se engana, amiga. Providenciei com uma colega de serviço, um preparado que ela me garantiu é tiro e queda. Basta adicionar o treco à bebida, no meu caso, ao vinho. Depois é partir para o abraço e comemorar.
— Pela última vez, desista.
— Nem morta!
— Parta pra outra.
— Já estou em outra. Só pretendo lavar minha honra.
— Deixa o rapaz viver a vida dele. Você é nova, não faltarão pretendentes.

— Nem te conto, Eugênia. Estou de olho no Mario do Almoxarifado. Um gato!
— Bufônio conhece o sujeito?
— Praticamente trabalham lado a lado.
— Olha, pela milésima vez. Manda o Bufônio pra casa do chapéu com aba e tudo, passa uma borracha em cima dessa sua ideia maluca. Deixa o desmiolado viver a vida dele como bem quiser.
— Sua maluca, ele vai continuar vivendo. Nada mudará.
— Tudo tomará outro rumo. Bufônio bufará eternamente nos seus ouvidos...
— Você acha que não pensei nisso? Deixa a criatura bufar...  

— Como sua amiga, numa derradeira tentativa, devo avisar que cadeia, polícia e justiça, não combinam com gente do seu tipo.
— Amiga, não vou pra cadeia. Tampouco tenho em mente me envolver com polícia ou justiça.
— Acaso pretende ser tragada pela terra? Acha que ficará invisível?
— Nem uma coisa, nem outra.

— Bem, eu tentei, Rosana. A vida é sua. Seu futuro, segundo me parece, está para correr entre seus dedos. Estou de consciência tranquila. Fiz o que pude.
— Desculpe. Obrigada pelas tentativas...
Horas depois, Rosana se encaminha, de carro, com o marido, para o motel. Ocupam a suíte presidencial, que, anteriormente deixara reservada. Pede o prato preferido dele. O vinho que mais gosta. Jantam, bebem, abraçados como dois pombinhos. Em seguida, assistem um pouco de televisão.

Na sequência da noite criança, trocam juras de eterno amor. Se amam, como nunca. Falam, e depois, de problemas os mais triviais. Bufônio não cabe em si, tamanho o contentamento que aquela recepção da amada lhe está causando. Afinal, recorda, ela nunca esquecera do dia da comemoração do seu natalício. Ao contrário dele, deixava a data transcorrer à revelia. Rosana nessas datas preparava um bolinho, reunia as crianças, e, à noite, acabava com os abraços e os parabéns dos amigos da empresa onde trabalhavam. Um ponto a favor da infeliz com quem, há vinte anos, se casara, o que lhe valera duas lindas e maravilhosas meninas, Rayane e Rayssa, respectivamente com quinze e dezenove anos.

Não seria, pois, correto, esquecer do aniversário da sua outra metade. Mas Bufônio não ligava para pequenas coisas e pouco se importava que corresse à solta. Enquanto remoía essas conjecturas, pediu à esposa que voltasse a completar os canecos. Nessa hora Rosana decidiu que se fizera chegado o momento. Dirigiu-se, então, a um painel eletrônico e acionou um botão que abria no teto, um espaço que permitia ver o céu infinito e as estrelas em todo o seu esplendor. Enquanto o mecanismo se movimentava, ela seguiu até uma pequena geladeira, renovou as duas taças e, na do marido, acrescentou o produto que a amiga lhe indicara, faria o pobre infeliz viajar na maionese. Bufônio bebeu aos goles poucos. Sorveu cada bicada lentamente, numa inocência pagã, como se saboreasse o futuro.

Ah, o futuro! Por falar nele, veio à sua mente, assim do nada, a figura da nova amante, a Lurdinha, secretária recém contratada do patrão.  Nossa, ela era o bicho, na cama! Rosana até que tentava, mas não. Em nenhum instante se comparava a Lurdinha. Lurdinha, a fogosa magnífica, a perdição endiabrada em figura de inventar estripulias. De repente, um sono profundo passou a atormentar seus olhos. Lurdinha virou figura difusa em sua cabeça. Rosana, idem. Ele não sentiu as pernas. Não conseguiu mesmo trilhar, abrir os olhos. O quarto rodou. Rosana girou. Ele, inteiro, mergulhou numa espécie de poço com luzes as mais diversificadas cores e a sensação de estar caindo preso aos travesseiros e ao lençol que baseava o colchão da alcova.

Dois homenzinhos vestidos com roupas estranhas nas cores abóbora e tomate, no mesmo instante, desceram pela abertura que dava para ver as estrelas de dentro do aposento.  As figuras em questão, menores que os anões da Branca de Neve. Traziam nas mãos uma espécie de maca. Bufônio foi colocado sobre ela e a luz o elevou para uma espécie de aeronave pousada logo acima da cobertura do motel. Num intempestivo impulso de medo e terror, desmaiou, langoroso, a sua afoiteza e, sem ter para onde correr, se acovardou completamente "submissado".

Apesar do sono profundo, gritos abafados de terror escaparam da sua garganta. Na verdade, Bufônio bufou ridículo e anedótico, aparentemente imobilizado pela letargia modorrenta da bebida em excesso e da visão dos franzinos. Seus berros lancinantes (que ele acreditava estivessem soltos boca afora), se espalharam e sacudiram o silêncio que reinava por todos os cantos do ambiente. Tudo, em seguida, para ele, virou uma tremenda escuridão. Quando acordou, foi levada a presença de uma nanica (que aliás, parecia ser a chefe suprema daquele paraíso desconhecido.

A jovem lembrava muito a Lurdinha. A donzela apareceu montada elegantemente a bordo de uma espécie de lambreta que flutuava. Sorrindo insinuante e numa voz docemente envolvente, a senhorita comunicou que ele, Bufônio, havia sido abduzido.  E, com o tal e para sempre, permaneceria aprisionado aos cuidados dela. Ele seria, dali para frente, o seu escravo. O pobre coitado se tornaria cativo num planeta ainda desconhecido em toda a galáxia. O astro luminoso tinha o esquisito nome de Oinôfub.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 24

 

Jacira Fagundes (O velho avô)

Já não éramos tão pequenos para aquele tipo de travessura. Contávamos, na época, dez e doze anos, meu irmão e eu.

Mas na casa do avô, naquele lugar distante do mundo, eram poucas as possibilidades de brincadeiras. Nosso pai havia nos feito a proposta. Naquelas férias, primeiro passaríamos alguns dias no chalé, visitando os velhos da família. Depois pegaríamos o avião para o Canadá.

O avô, na verdade era o avô de nosso pai, estava muito velho vivendo aos cuidados da filha que lhe sobrara. Nosso pai nos convenceu, alertando de que esta talvez fosse sua última visita ao seu velho avô.

De chegada constatamos o pouco de atrativo que a casa oferecia. Na mesinha de canto da sala, um jogo de xadrez com as peças em madeira escamadas. Ao lado da mesa, uma estante que abrigava alguns livros e revistas. E no balcão, a TV, com o pior som e a pior imagem que alguém poderia imaginar.

Então, entediados, aquela manhã de céu cinzento chamou a mim e ao Zé Mauro para a diabrura.

Era o momento certo de sairmos da sala rumo às investidas nos cantos soturnos da vasta casa onde segredos e mistérios nos seriam revelados.

Nossa meta era o quarto do avô. Zé Mauro torceu a maçaneta e empurrou a porta que, para nossa felicidade, não rangeu. A fresta permitia ver com folga os movimentos do velho.

Pelo jeito que Zé Mauro passou a apertar meu braço à altura do cotovelo e pela respiração atropelada, eu deduzi que ele estava perturbado. Empurrei-o para o lado e foi a minha vez de ver o avô, apoiado na guarda da cama, tentar a façanha de enfiar um dos pés no chinelo porque o outro já estava calçado com uma alpargata azul. Enquanto tentava chegar ao chinelo que lhe escapava, ele segurava a calça do pijama que teimava em descer. Foi aí que o coitado começou a tossir, uma tosse fraquinha, mas demorada. Acho que a força que fez para tossir é que deve ter provocado a série de ploct...ploct ploct... como se alguém estivesse a estourar pipocas e algumas falhassem.

Ao invés de rir, eu me assustei. Empurrei a cabeça de meu irmão para a fresta. Mas Zé Mauro passou a sussurrar coisas meio bobas; que o avô antes era tão alto e grande, quando foi que ele encolheu, e que nem percebeu a barata enfiada no chinelo, que ele agora coça os braços, e a calça do pijama arriou de vez, e ele se coça, onde foi parar a barata?

Vem, Zé - eu lhe dei um safanão. Aqui já perdeu a graça e o quarto tá muito escuro e abafado e este cheiro. Vamos lá pra fora, no pátio, sim, é que a gente pode achar alguma coisa e se divertir, olha Zé, voltou o sol.

Nosso pai tinha razão. Foi a última vez que visitamos aquela casa onde houve, em um tempo, uma tia e um avô, parecendo ambos terem a mesma idade.

Hoje, ao acompanhar da sacada, meus dois filhos adultos com seus filhos, no pátio trocando passes com a bola, me bateu esta saudade.

António Nobre (Poemas Avulsos) – 2


AO CAIR DAS FOLHAS

(À minha irmã Maria da Glória)

Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,
Fechar-me os olhos e compor-me o leito,
Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,
Eu me for viajar para o Sol-posto.

De modo que me faça bom encosto,
O travesseiro comporá com jeito.
E eu tão feliz! Por não estar afeito,
Hei de sorrir, Senhor! Quase com gosto.

Até com gosto, sim! Que faz quem vive
Órfã de mimos, viúvo de esperanças,
Solteiro de venturas, que não tive?

Assim, irei dormir com as crianças
Quase como elas, quase sem pecados...
E acabarão enfim os meus cuidados.
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EMÍLIAS
(A uma senhora que não quer ser Emília)

Emília és, quer queiras, ou não queiras:
Que lindo nome o teu, soante de brisas!
É um nome de pastoras e moleiras,
Loira morgada do solar dos Nisas!

Muitas Emílias há, entre ceifeiras,
Há Emílias nos serões das descamisas...
Se tu, Senhor! dás nome às Amendoeiras
Com o nome de Emília é que as batizas!

Que Santa Emília te acompanhe, Rainha!
E com a tua Mãe seja madrinha,
Quando ela, um dia, te levar à Igreja!

E, ó pura Glória, que em teus olhos brilha!
Doces presságios meus, que a tua filha
Seja loira também e Emília seja!
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LÓGICA

Ai daqueles que, um dia, depuseram
Firmes crenças num bem que lhes voou!
Ai dos que neste mundo ainda esperam!
Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrinhos, dos que já tiveram
Ouro e papéis que o vento lhes levou!
Ai dos que tem, que ainda não perderam,
Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,
Que, algum dia, o serão, mas sem poder!
Ai dos que sofrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais pra sofrer!
Ai dos que morrem, que lá vão levados!
Ai de nós que ainda temos de viver!
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NOSSOS AMORES FORAM DESGRAÇADOS

Nossos amores foram desgraçados,
Desgraçada paixão! Tristes amores!
Se Deus me dá assim tamanhas dores,
É porque grandes são os meus pecados.

Quando virão os dias desejados?
Quando virá maio para eu ver flores?
Nunca mais! Ainda bem, santos horrores!
Que os pobres dias meus estão contados.

Passo os dias metido no meu moinho,
E mói que mói saudades e tristezas,
Moleiro que no mundo está sozinho.

Os lavradores destas redondezas
Queixam-se até de que a farinha à data
Tanta é que “está de rastros de barata...”
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O TEU RETRATO

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viajante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

Jaqueline Machado (O Fantasma da Ópera e a tríade da consciência)

O Fantasma da Ópera, do escritor francês Gaston Leroux, é uma misteriosa Tríade Mental formada por Erik, a mente da alma, Christine, a mente da vida, e Raoul, a mente das coisas do mundo.  

A moça, bela e talentosa, ouvia em sua cabeça uma voz que lhe inspirava a cantar. Ela pensava estar ouvindo a voz do anjo da Música, o qual seu pai, grande músico, havia dito que lhe enviaria quando não estivesse mais presente... Ao cantar, ela assemelhava-se a uma taça transbordando bebida doce e suave a quem tem sede... O seu canto era um canto de sereia a encantar a todos ao seu redor. Ela era o espírito da casa de espetáculos, e toda essa magia foi descoberta ao substituir Carlota, estrela principal do Teatro.

O Anjo da Música, Erik, era um homem que vivia escondido nos porões da casa, devido a uma má formação no seu rosto. Tornaram-se cúmplices: a moça emprestava-lhe a beleza, enquanto ele, lhe emprestava a voz. Ou seja, ela era o amor, o encanto, o útero da vida a transbordar possibilidades, talentos... Mas ele, era alma escura, o mistério, as sombras do ser... Perdido nos breus de uma profunda solidão, sofria a impossibilidade de ser amado. Mesmo assim, apaixonou-se por Christine que, por sua vez amava Raoul, namoradinho de infância, e que na história, representa as riquezas do mundo, o direito à escolha, o livre arbítrio.  

O entrelace entre a jovem e o rapaz despertou no fantasma a ira de todos os demônios. Obcecado, passou a estrategiar maneiras de separar o casal. Tudo e todos que separavam Christine de seu espaço, ele matava ou tornava distante.

Em certo momento, Christine quase aceitou se unir ao anjo, mas ela tinha medo do que é oculto, do que é subterrâneo, do que pertence aos mistérios da alma... No fim, optou pelo amor de Raoul. Achou melhor casar com as coisas do mundo, a unir-se a sua alma. Não entendeu que as perversidades de Erik, na verdade, eram uma tentativa de afastá-la do que é perecível, mas ela temia o mistério, e o via como um monstro.

A realidade do “eu” das almas, é vista de forma desfigurada diante da realidade do mundo. Inconformado, o fantasma aprisiona o casal de namorados. Mas percebendo que era inútil desejar separá-los, os liberta.

Christine morreu antes do marido. E certo dia, Raoul foi ao cemitério visitá-la. E lá, próximo ao túmulo, estava a rosa do seu eterno rival.  A tríade se reúne novamente, pois são inseparáveis...

Resumo da minha pequena Ópera explicativa: o espetáculo, o fantasma e Raoul, são os três estados de consciência de Christine. Mais do que isso, são os três estados de consciência de todos nós seres humanos.

Fonte:
Texto enviado pela autora