Os dois homens feios desembocaram na Cinelândia. Tinham saído de uma redação de jornal, onde foram encher com as garatujas cotidianas uns tristes linguados anônimos. Espiaram as grandes luzes da cidade, subindo, impressionando. Escutaram os conhecidos ruídos da metrópole, confundindo-se, apagando-se.
— Que horas são?
— Dez e meia.
— Vamos ver os cartazes deste cinema?
— Vamos.
— Olhe aqui a Kay Francis. Que tal acha essa morena?
— Notável... pelo menos no cartaz.
— Eu gosto das artistas de cinema precisamente porque elas guardam o sortilégio da distância. A distância sabe dar a todas as coisas um encanto muito maior, um legítimo sortilégio invencível.
— A distância aumenta o valor somente daquilo que já se conheceu ou se sentiu um dia. Ora, você nunca sentiu de perto a Kay Francis. Logo, você não pode acreditá-la mais bonita apenas porque essa dama está longe de nós.
— É um engano seu. A gente pode perfeitamente sentir (ora mais intensamente, ora menos intensamente) uma beleza que nossos sentidos não tocaram em tempo algum. Comigo até se dá um fenômeno interessante. Às vezes, eu chego a recompor, dentro de mim, com absoluta perfeição, uma sensação que eu jamais experimentei.
— Isso é fantasmagoria...
— Não é fantasmagoria, não. Eu o faço em plena consciência.
(O outro ficou sorrindo, incrédulo).
— Você pode sorrir à vontade. Mas ouça o seguinte: nós, os que estudamos medicina, quando nos propomos completar o exame do sistema nervoso do paciente, depois de pesquisar o sinal de Kernig, o de Romberg etc., passamos à estereognose...
— Estereognose?
— É a noção do relevo. O sentido estereognótico é o sentido do relevo.
— Mas... o que tem isso a ver com a nossa conversa?
— Apenas isto. Eu apresento aquilo que se poderia chamar, com o competente pedantismo acadêmico: hiperforça na estereognose psíquica.
— Não entendi patavina.
— Eu quis dizer que sou capaz de conhecer um relevo íntimo sem ter sentido jamais o objeto desse relevo.
— Per Baccho! Mudemos de assunto. A conversa está se complicando demais.
Então os dois homens feios perceberam que tinham deixado a Cinelândia para trás e que estavam já no extremo da praça Paris.
— Você não acha que eu converso demais?
— Isso não é um bom predicado.
— Sinto uma necessidade permanente de dar forma ao pensamento. E, quando suspendo a conversa ou a leitura, imediatamente me ponho a escrever. Garanto que hoje, antes de dormir, ainda escreverei qualquer coisa...
— Porque o ato de escrever é o jeito que o homem tem de conversar consigo mesmo!
— Meu caro, tal como o mendigo de Deus lhe pague, eu tenho uma enorme pena dos mudos. Dos mudos e dos analfabetos...
E a conversa rolou pela noite adentro. Rolou, rolou. A orgia de luz continuava. E diminuía o ruído da cidade, pouco a pouco.
O mar, o velho mar amigo, investia sem descanso na murada impassível da praça Paris. Os reclames luminosos davam sua festa noturna nas escarpas dos morros. E automóveis deslizavam no asfalto, levando para os cassinos, ou para as alcovas, lindos corpos perfumados em que se afogariam ânsias poderosas...
E os cabelos dos dois homens feios faziam cambalhotas incríveis sob o vento que vinha do mar...
(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 16/05/1936. Republicado na revista Fon-fon. Rio de Janeiro, 16/01/1937.)
— Que horas são?
— Dez e meia.
— Vamos ver os cartazes deste cinema?
— Vamos.
— Olhe aqui a Kay Francis. Que tal acha essa morena?
— Notável... pelo menos no cartaz.
— Eu gosto das artistas de cinema precisamente porque elas guardam o sortilégio da distância. A distância sabe dar a todas as coisas um encanto muito maior, um legítimo sortilégio invencível.
— A distância aumenta o valor somente daquilo que já se conheceu ou se sentiu um dia. Ora, você nunca sentiu de perto a Kay Francis. Logo, você não pode acreditá-la mais bonita apenas porque essa dama está longe de nós.
— É um engano seu. A gente pode perfeitamente sentir (ora mais intensamente, ora menos intensamente) uma beleza que nossos sentidos não tocaram em tempo algum. Comigo até se dá um fenômeno interessante. Às vezes, eu chego a recompor, dentro de mim, com absoluta perfeição, uma sensação que eu jamais experimentei.
— Isso é fantasmagoria...
— Não é fantasmagoria, não. Eu o faço em plena consciência.
(O outro ficou sorrindo, incrédulo).
— Você pode sorrir à vontade. Mas ouça o seguinte: nós, os que estudamos medicina, quando nos propomos completar o exame do sistema nervoso do paciente, depois de pesquisar o sinal de Kernig, o de Romberg etc., passamos à estereognose...
— Estereognose?
— É a noção do relevo. O sentido estereognótico é o sentido do relevo.
— Mas... o que tem isso a ver com a nossa conversa?
— Apenas isto. Eu apresento aquilo que se poderia chamar, com o competente pedantismo acadêmico: hiperforça na estereognose psíquica.
— Não entendi patavina.
— Eu quis dizer que sou capaz de conhecer um relevo íntimo sem ter sentido jamais o objeto desse relevo.
— Per Baccho! Mudemos de assunto. A conversa está se complicando demais.
Então os dois homens feios perceberam que tinham deixado a Cinelândia para trás e que estavam já no extremo da praça Paris.
— Você não acha que eu converso demais?
— Isso não é um bom predicado.
— Sinto uma necessidade permanente de dar forma ao pensamento. E, quando suspendo a conversa ou a leitura, imediatamente me ponho a escrever. Garanto que hoje, antes de dormir, ainda escreverei qualquer coisa...
— Porque o ato de escrever é o jeito que o homem tem de conversar consigo mesmo!
— Meu caro, tal como o mendigo de Deus lhe pague, eu tenho uma enorme pena dos mudos. Dos mudos e dos analfabetos...
E a conversa rolou pela noite adentro. Rolou, rolou. A orgia de luz continuava. E diminuía o ruído da cidade, pouco a pouco.
O mar, o velho mar amigo, investia sem descanso na murada impassível da praça Paris. Os reclames luminosos davam sua festa noturna nas escarpas dos morros. E automóveis deslizavam no asfalto, levando para os cassinos, ou para as alcovas, lindos corpos perfumados em que se afogariam ânsias poderosas...
E os cabelos dos dois homens feios faziam cambalhotas incríveis sob o vento que vinha do mar...
(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 16/05/1936. Republicado na revista Fon-fon. Rio de Janeiro, 16/01/1937.)
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
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