domingo, 10 de setembro de 2023

Contos do Paraná ("Bento Cego", de Valência Xavier)


Bento Cordeiro nasceu no Registro, em Antonina, lá por 1821. Nasceu cego e pobre, filho de 
caboclos do nosso litoral. Logo perde o pai, e a sua mãe, Ana Maria, tem de manter o barraco da família e cuidar do filho cego.

Mocinho, Bento foi numa festança, onde os caboclos dançavam fandango batendo pé com os tamancos chumbados de chocalhos. Lá estava Chico Folião, o Rouxinol da Faisqueira, cantador de muita fama. Chico Folião já tinha derrotado todos outros repentistas da noite. Cada quatro porfias ganhas davam direito ao prêmio: um galho de arruda na viola e a admiração das moças.

As moças assanham Bento para desafiar o campeão, afinal ele era dono da mais bela voz do coral da igreja. Arranjam uma viola para Bento e começa seu primeiro combate. Chico Folião parte para o ataque. "Nem namorar você pode/ porque vista não tem/ vive só sem ser amado/ sem olhar não se quer bem”. Bento cego contra-ataca: "Sem olhar também se ama/ a mulher que estima a gente/ os olhos são traidores quando o coração não sente".

A porfia segue braba e, por fim, Chico Folião se confessa derrotado. Cabelão comprido, moço bonito logo enfrenta outro cantador famoso. A peleja termina com os dois chorando com os versos de Bento: "Não posso dizer se tal coisa/ é feio ou bonita/ porque me vejo no abismo/ da escuridão infinita."

Antonina fica pequena para ele. Bento Cego se despede da mãe e sai pelo mundo afora vencendo desafios. Sente fraqueza nos pulmões e vai para Lapa se curar. Lá enfrenta o invicto Manoel Viola e diz o que pensa da mulher: "Tem amor tem distinção/ ralha e fala/ mas não deixa de escutar teu coração". Manuel Viola alerta: "Pois então se é assim/ estás de todo perdido/ Hás de verter coração/ cair bem logo vencido". Bento reflete: "Bem vindo que seja ele/ pela graça da mulher/ antes ela nos vença/ do que a mão de Lúcifer". Vence mais esta porfia. Sente-se curado e segue seu caminho.

Fica em Santa Catarina, numa casinha dum fazendeiro seu fã. Encontra o amor: é Catarina, uma bela jovem órfã que trabalha na roça. Ela cuida dele e tudo vai bem, mas Bento Cego quer mais: "Só quisera ter a dita/ de filha te enxergar/ que a vida eu não gozaria/ diante de teu olhar". Ela sorri para Bento, os dois se amam: "Não há dúvida que tens/ muita candura no amor/ mas eu quisera senhora/ ver-te sorrir com fulgor". Vivem felizes.

Um dia, ele acorda e não sente mais o doce cheiro do corpo de Catarina. Sem aviso, ela foi embora. Seu mundo fica mais escuro. Sem poder suportar a solidão, Bento parte. Talvez um dia, reencontre Catarina, o amor.

Um dia aparece em Sorocaba, amargo, cansado e com os pulmões doentes. Mesmo fraco, aceita enfrentar ao mesmo tempo 3 cantadores. A porfia segue por 3 dias e 3 noites. Caindo de cansaço. Bento Cego ainda canta: "Hei de morrer cantando/ Cantando me hei de enterrar/ Cantando irei para o céu/ Cantando conta hei de dar". Diz-se que, nesse momento, levantou os olhos ao fundo da sala, onde havia uma imagem da Virgem. Nesse momento, viu a imagem da Virgem. Ninguém sabe. Nesse momento, ele caiu morto, deitando sangue pela boca. Ninguém sabe, mas acho que, nesse momento, ele não viu a imagem da Virgem, viu novamente o amor, viu Catarina.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

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