sábado, 30 de setembro de 2023

Carolina Ramos (Tiní)

Bleu nunca foi esquecido, embora sua dona ganhasse, como prêmio um gatinho persa, também lindo demais!

Comprado em São Paulo, ainda pequenino, Tiní veio de trem junto comigo e minha mãe. E, já que passageiro clandestino, muito bem camuflado numa caixa de papelão cheia de buracos disfarçados.

Às tantas, durante a viagem, resolvido a rebelar-se contra a prisão, Tini desandou a miar. E, ai... o "palco" abriu-se! E haja sorriso amarelo, da mãe e da filha, para disfarçar o vexame...

Logo, tornou-se impossível esconder a verdade e decidimos enfrentar o pasmo dos demais passageiros, tirando Tini da caixa! Foi aquele alvoroço!

A graça e o fascínio, daquela belezura de gato, correram de banco em banco, logo conquistando a simpatia de todos. E todos, sem exceção, queriam ver de perto aquela coisinha linda que até aos mais sisudos encantava!

Quando, algum tempo depois, o guarda trem adentrou o vagão para picotar as passagens, a cumplicidade geral, solidária, muito contribuiu para camuflar a presença do gatinho clandestino que, por sua vez, quieto e calado, parecia ter noção da gravidade daquele suspense vivido por tantos.

Foi justamente assim que aquela bolinha de pelo, rajada e macia, deixou o planalto e, despercebida, chegou, sem maiores problemas, à nova residência, nesta Santos praiana, para amenizar os dias cinzentos daquela menina ainda bastante machucada pela ausência daquele inesquecível gatinho azul, guardado para sempre na saudade.

Tini, tornando menos doída a lembrança de Bleu, passou a ser meu companheiro de estudos. Cúmplice, em tempos de provas, ajudava-me a despistar meu pai que, altas madrugadas, percebendo-me acordada ao ver, por debaixo da porta a luz acesa, entrava intempestivamente no quarto e surrupiava os livros espalhados ao redor da filha desobediente. E apagava as luzes, deixando-me às escuras, para que eu dormisse.

Tini, por sua vez, alheio, ou solidário às circunstâncias, lambia as patinhas, com cara de sonso, como se nada de errado houvesse acontecido à sua frente. Em autodefesa, logo aprendi a calçar as frestas da porta. Embora... ao descobrir o engodo, vez ou outra, meu querido pai me surpreendesse com um livro nas mãos, levando-o consigo. Contudo, meu querido pai não sabia que o livro que de fato me interessava já fora antes estrategicamente escondido debaixo do travesseiro, de onde só sairia findo o "perigo".

Hoje, analiso não ter sido rebeldia a desobediência daquela menina, que viria a se repetir algumas vezes mais. E ao entender melhor o que acontecia, reconheço, hoje, não ter sido nada fácil tentar equilibrar as exigências de boas notas, com a disciplina imposta por um pai severo.

Constato, também, vir de longa data essa minha fixação pelas horas produtivas das madrugadas, o que ainda hoje me furta períodos preciosos de sono. As madrugadas de ontem, sempre dedicadas aos estudos e as de agora, à digitação. Tudo, e, em qualquer tempo, porque "eu nasci assim", como diria Jorge Amado. E, mesmo não sendo Gabriela, assim espero continuar a viver e a pavimentar com letras as ruas que traçam meu destino, enquanto Deus o permita.

Nos cenários de ontem, Tini, por sua vez, após as broncas de meu pai, continuava a lamber as patinhas, como quem lavasse as mãos, com cara de sonso, solidário, ou simplesmente alheio a tudo. Como se nada de errado houvesse acontecido à sua frente.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

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