quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Coelho Neto (Rosas, corações desfeitos)

Foi com a entrada luminosa de Hermes, ainda cheirando a silvas redolentes, porque subira da terra onde andara a vagar, que se acendeu no coração impetuoso de Zeus o desejo forte do rever a terra em flor, as águas que escorrem nas rochas, os largos praianos dos mares glaucos, os outeiros frondosos dos montes acima dos quais adejam as águias imponentes.

Horas alegres bordavam a tela azul com fios de ouro tirados do novelo do sol; outras, pálidas, de olhos melancólicos, vestidas de negras túnicas funéreas, coroadas de mirto e papoulas, recenavam estrelas para que fulgissem na treva com luz viva e o Olimpo, nessa tarde de maravilhoso encanto, clara e suave como os olhares macios de Afrodite, rejubilava festivamente.

A própria Hera, sempre taciturna no seu ciúme divino, cantava dobrando a lã translúcida das nuvens estivais.

Eis que Zeus, de repente, se levanta, acena à águia cujo olhar fuzila e, assentando-se-lhe no dorso, instiga-a.

Pasmam os deuses; um momento detém-se as horas e o animal soergue-se, arranca, abre as asas largas e arremessa-se nos ares fulgurantes. Desce vertiginosamente como os titãs rebeldes quando rolaram sob as catapultuosas penhas sobrepostas.

Zeus tem ânsia de rever a terra, os homens, os rebanhos; deseja avistar as águas e as verduras, as furnas sombrias e sempre gementes e as clareiras onde o sol retouça. Já os oceanos brilham como sóis e os lagos lampejam como estrelas, cresce o esplendor entre sombras que parecem nuvens e são serras altas e são prados longos e são vales fundos. A terra aparece de uma só cor sombria, alarga-se dilatadamente em alfombra azul, lisa, sã, sem um relevo de colina, mas logo avultam os acidentes redondos, as bolas dos outeiros de fina relva; movem-se lentos rebanhos e homens. Já se acentuam as linhas, rendilham-se as frondes, ondulam os trigais dourados, aves voam cantando, sobe o fresco aroma dos jardins e das searas e o balido dos anões geme. É a terra.

A águia fogo e os olhos claros de Zeus mal distinguem a mansão efêmera dos homens e as suas belezas transitórias que a Morte espreita cobiçosa. Em toda a parte há flores e risos: são danças cíclicas nos prados, partênias (plantas da América do Sul) à volta dos templos, entre cedros; amores à beira d'água. Em tudo a alegria, a alegria, ilusão da tristeza.

Mas longe, à flor dos mares, branca e muda, uma ilha aparece. Toda branca e lisa é como larga lápide nos mares. A águia, guiada pelo deus, paira um momento sobre a desolada paragem de onde não sobem aromas nem rumores. É tudo funéreo: brancas as praias de areal sem dunas, branco o interior apagado da ilha. Nem arvoredo nem ervas, tudo desolação e silêncio e vultos merencórios seguindo as trilhas brancas, como lêmures cimérios, levando de raso, no lento e tristonho andar, as longas túnicas, tão alvas como o areal estéril. Zeus medita um momento e, fazendo baixar a águia sobre um roçado alvadio, salta em terra, desce à planície, torna-se invisível e espreita a gente melancólica que vai e vem, sem falar, sem sorrir, em passos morosos e surdos.

A sua onisciência logo adivinha a causa de tão estranha tristeza e, lesto, retomando a águia, remonta. Entra no olimpo irritado. É a hora quieta em que se recolhem as púrpuras da tarde e se estendem no espaço as alcatifas da noite mosqueadas de estrelas.

Atravessando impetuosamente o vestíbulo fulgurante, Zeus brada o nome de Eros. As brancas pombas de Afrodite, já agasalhadas no columbário, esvoaçam espavoridas ante a cólera estrondosa do acumulador de nuvens; os deuses afastam-se medrosos e, pálida e lânguida, a deusa, filha da espuma egina, temendo pelo filho, precipita-se embrulhando os pequeninos pés na fímbria da túnica diáfana, luminosa e volátil, como feita da bruma e sol, a receber o Pai, já se lhe arrojando ante os joelhos, linda com o pranto, em fios, a descer-lhe dos olhos verdes, cheios de espanto e medo.

Eros, que se adestra asseteando estrelas, ouvindo a voz tonitruante, adianta-se a correr, com a aljava a bater-lhe o dorso, o arco pendente à ilharga e, avistando o Todo Poderoso, retém os ligeiros passos. E Zeus, fitando nele os olhos flamejantes, ergue-o encolerizado sobre a tristeza da ilha que encontrara, branca e muda, dizendo:

— Todos quantos nela vivem são como sombras que penam. As mulheres são lindas, os mancebos são fortes, e cruzam-se indiferentes. Porque os deixaste em tal abandono?

— Senhor, é fácil reparar o crime do esquecimento. Hoje mesmo, com o favor da noite, farei o que devo.

— E antes do raiar do dia quero ter a prova do que fizeste.

— Tereis a prova, Senhor, antes que as estrelas murchem ao sol.

E Eros baixa aladamente do Olimpo.

O galo vigilante de Ares desfere o seu primeiro canto, ainda que sanem horas tenebrosas levando bojudas urnas de orvalho, quando Eros reaparece no Olimpo e, posto que Zeus repouse adormecido, quer dar conta do seu trabalho e, ante o solo divino, fala com palavras aladas.

— Zeus potente, dominador do Éter... – Aclara-se esplendidamente o Olimpo com a refulgência do olhar do esposo de Hera que desperta à voz do infante.

— Que me trazes por prova do que fizeste?

— Nada, Senhor, senão o desejo de que vos certifiqueis, com os vossos olhos, do resultado da
minha empresa. Era a ilha branca e estéril e é hoje verde alfombra, colmada de formosos bosques odoríferos. Era o presídio do silêncio e nela agora o murmúrio das palavras e o sussurro dos beijos são tão perenes como o fragor das águas nas penhas geradoras. Nos seis caminhos balsâmicos não mais se cruzam figuras solitárias, senão pares abraçados e não há moita de onde não saia, por entre o chilreio de aves que se ameigam, palavras trêmulas de bocas de namorados. Das flechas que levei na aljava nem uma só errou o alvo, e de extremo a extremo da ilha, fui acordando para o amor a gente merencória. O sangue gotejava na areia e as flechas por lá ficaram crescendo em floresta acolhedora e de aroma.

Mas Zeus, sempre desconfiado, ordena a Hermes que baixe à ilha, e percorra, trazendo-lhe uma prova do êxito da missão do infante.

E Hermes desce ligeiro sobre a ilha. Tudo vê e, tentando contar os pares que se sucedem nos meandros amáveis do arvoredo, descobre, a tremer na haste, que era uma flecha acúlea, flor purpurina e nova para os seus olhos divinos. Demora-se a vê-la, maravilhado, e como procure lembrar-se da sua origem — ele que conhecia a origem de todas as flores — eis que ouve uma voz, a voz de Herta, a terra maternal:

— Esta flor, cor de púrpura, de pétalas cordeais — é a rosa: nasceu das gotas de sangue que umedeceram as flechas de Eros vitorioso. Conta-lhes as pétalas e terás o numero dos corações feridos que se buscam e não se deixam nesta ilha florida, dantes areal onde nem o cardo vingava.

E Hermes, tomando a flor, regressa ao Olimpo repetindo a Zeus as palavras de Herta e descrevendo-lhe o que vira.

Zeus, então, afagando a imensa e espalhada barba, mais rebrilhante do que a Via Láctea, põe-se a aspirar o aroma da flor, contente por saber que deixara de existir na terra o triste degredo d'almas, onde corações moços se cruzavam com a indiferença com que duas folhas mortas descem na correnteza fria e trêmula de uma ribeira apressada.

Fonte:
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Disponível em domínio público.

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