segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Ponto cego)

— VOCÊ PENSOU bem no que vai fazer, Rosana?
— Pensei, repensei e estou decidida. É agora ou nunca.
— Eu se fosse você contava até mil.
— Já contei até um milhão.
— Não parece. Conta de novo.
— Nem que a vaca vá pro brejo.
— Não esqueça das consequências. Lembre também de suas duas filhas.
— Elas me darão total razão depois do caso consumado.

— Quando elas descobrirem e entenderem o que você pretende fazer com o pai delas, evidentemente ficarão com raiva. Raiva não, ódio. Ódio mortal.
— Rayane está do meu lado. Entende um pouco da situação humilhante pela qual estou passando. Diria a você que ela sabe das sacanagens que o pai tem feito comigo. O problema, futuramente, se houver, poderá ser com a Rayssa. Embora tendo convicção de que o pai não presta, gosta dele demais...

— Pense no futuro. As duas não têm idade para certos discernimentos. O que quero dizer é que hoje elas não assimilam muitas coisas dessa loucura que é a vida adulta. Porém, amanhã, poderão ser seu inferno.
— Se acontecer, não estarei nem um pouco preocupada. Já escolhi o final da história.
— E o seu capítulo?
— Meu capítulo?
— É.

— Que capítulo? Não tenho nenhum que me recorde.
— Seu capítulo com o Bufônio.
— Acabou.
— Tem certeza?
— Como dois e dois...
— E o que virá a seguir?
— Não estou entendendo, Eugênia.
— Faço referência ao capítulo que o destino escreverá após o fato levado à cabo.

— Planejei cada detalhe com carinho.
— E se algo sair errado?
— Não sairá.
— Rosana, se você não se ama, não se gosta, não tem um pingo de ternura pela sua pele, ao menos, por amor às suas filhas, desista dessa idéia.
— Nessa altura do campeonato?
— Não descarte a possibilidade de uma possível cadeia.
— Se tudo correr conforme espero, e correrá, pode estar certa, não haverá cadeia. Demais a mais, não vou cometer nenhum crime hediondo.

— Já que levou o assunto para essa seara, tenha em mente que o crime não compensa.
— Eugênia, pelo amor de Deus, eu não vou cometer nenhuma barbaridade!
— Vai sim.
— Eu não vou matar o Bufônio. Apenas aplicar um corretivo. Um castiguinho de somenos importância para ele aprender a respeitar a esposa fiel que vive ao seu lado, a companheira que faz de tudo para manter um lar em constante harmonia.

— Você poderá perder a sua liberdade. Suas filhas ficarão jogadas ao léu. Pense. Na casa dos outros. Duas meninas que mal sabem o que é a vida...
— Rayane e Rayssa não ficarão desamparadas. Vou deixá-las com minha mãe.
— Sua mãe é de idade avançada. Não tem estrutura para aguentar uma pancada dessa envergadura. Duas crianças não são fáceis.
— Eugenia, não adiante tentar me demover dessa paranoia. Já disse, estou decidida. Aquele cachorro vai ter o que merece...

— Premeditação.
— O quê?!
— Isso que está fazendo e quer pôr em prática, não sei o que pretende, mas não importa. Se chama premeditação.
— Não faz diferença o nome que você dê ao que pretendo pôr em evidência. Sei apenas de uma coisa: Bufônio terá o que merece. Hoje me vingo. Acho que todas as mulheres que se sentem traídas deveriam seguir meu exemplo. Aposto que muitos homens metidos à besta tomariam jeito e vergonha na cara.
— E como você porá em prática essa barbárie, ou melhor, como pensa em dar cabo dela?

— Como te falei. Hoje é o aniversario do safado. Reservei uma suíte no motel aqui perto de casa para nós. Mandei preparar um jantar romântico à luz de velas, com o prato preferido dele regado ao vinho que mais aprecia. Vamos nos amar como nunca. Farei tudo o que ele gosta, numa deferência toda especial. Pretendo me transformar na prostituta que ele sempre procurou fora de casa. Sabe aquelas vagabundas bem safadas e fazem estripulias que até Deus duvida? Então...
— Na hora agá você se envolve, entra no clima e volta atrás. Vou torcer para que tal ocorra...

— Aí é que você se engana, amiga. Providenciei com uma colega de serviço, um preparado que ela me garantiu é tiro e queda. Basta adicionar o treco à bebida, no meu caso, ao vinho. Depois é partir para o abraço e comemorar.
— Pela última vez, desista.
— Nem morta!
— Parta pra outra.
— Já estou em outra. Só pretendo lavar minha honra.
— Deixa o rapaz viver a vida dele. Você é nova, não faltarão pretendentes.

— Nem te conto, Eugênia. Estou de olho no Mario do Almoxarifado. Um gato!
— Bufônio conhece o sujeito?
— Praticamente trabalham lado a lado.
— Olha, pela milésima vez. Manda o Bufônio pra casa do chapéu com aba e tudo, passa uma borracha em cima dessa sua ideia maluca. Deixa o desmiolado viver a vida dele como bem quiser.
— Sua maluca, ele vai continuar vivendo. Nada mudará.
— Tudo tomará outro rumo. Bufônio bufará eternamente nos seus ouvidos...
— Você acha que não pensei nisso? Deixa a criatura bufar...  

— Como sua amiga, numa derradeira tentativa, devo avisar que cadeia, polícia e justiça, não combinam com gente do seu tipo.
— Amiga, não vou pra cadeia. Tampouco tenho em mente me envolver com polícia ou justiça.
— Acaso pretende ser tragada pela terra? Acha que ficará invisível?
— Nem uma coisa, nem outra.

— Bem, eu tentei, Rosana. A vida é sua. Seu futuro, segundo me parece, está para correr entre seus dedos. Estou de consciência tranquila. Fiz o que pude.
— Desculpe. Obrigada pelas tentativas...
Horas depois, Rosana se encaminha, de carro, com o marido, para o motel. Ocupam a suíte presidencial, que, anteriormente deixara reservada. Pede o prato preferido dele. O vinho que mais gosta. Jantam, bebem, abraçados como dois pombinhos. Em seguida, assistem um pouco de televisão.

Na sequência da noite criança, trocam juras de eterno amor. Se amam, como nunca. Falam, e depois, de problemas os mais triviais. Bufônio não cabe em si, tamanho o contentamento que aquela recepção da amada lhe está causando. Afinal, recorda, ela nunca esquecera do dia da comemoração do seu natalício. Ao contrário dele, deixava a data transcorrer à revelia. Rosana nessas datas preparava um bolinho, reunia as crianças, e, à noite, acabava com os abraços e os parabéns dos amigos da empresa onde trabalhavam. Um ponto a favor da infeliz com quem, há vinte anos, se casara, o que lhe valera duas lindas e maravilhosas meninas, Rayane e Rayssa, respectivamente com quinze e dezenove anos.

Não seria, pois, correto, esquecer do aniversário da sua outra metade. Mas Bufônio não ligava para pequenas coisas e pouco se importava que corresse à solta. Enquanto remoía essas conjecturas, pediu à esposa que voltasse a completar os canecos. Nessa hora Rosana decidiu que se fizera chegado o momento. Dirigiu-se, então, a um painel eletrônico e acionou um botão que abria no teto, um espaço que permitia ver o céu infinito e as estrelas em todo o seu esplendor. Enquanto o mecanismo se movimentava, ela seguiu até uma pequena geladeira, renovou as duas taças e, na do marido, acrescentou o produto que a amiga lhe indicara, faria o pobre infeliz viajar na maionese. Bufônio bebeu aos goles poucos. Sorveu cada bicada lentamente, numa inocência pagã, como se saboreasse o futuro.

Ah, o futuro! Por falar nele, veio à sua mente, assim do nada, a figura da nova amante, a Lurdinha, secretária recém contratada do patrão.  Nossa, ela era o bicho, na cama! Rosana até que tentava, mas não. Em nenhum instante se comparava a Lurdinha. Lurdinha, a fogosa magnífica, a perdição endiabrada em figura de inventar estripulias. De repente, um sono profundo passou a atormentar seus olhos. Lurdinha virou figura difusa em sua cabeça. Rosana, idem. Ele não sentiu as pernas. Não conseguiu mesmo trilhar, abrir os olhos. O quarto rodou. Rosana girou. Ele, inteiro, mergulhou numa espécie de poço com luzes as mais diversificadas cores e a sensação de estar caindo preso aos travesseiros e ao lençol que baseava o colchão da alcova.

Dois homenzinhos vestidos com roupas estranhas nas cores abóbora e tomate, no mesmo instante, desceram pela abertura que dava para ver as estrelas de dentro do aposento.  As figuras em questão, menores que os anões da Branca de Neve. Traziam nas mãos uma espécie de maca. Bufônio foi colocado sobre ela e a luz o elevou para uma espécie de aeronave pousada logo acima da cobertura do motel. Num intempestivo impulso de medo e terror, desmaiou, langoroso, a sua afoiteza e, sem ter para onde correr, se acovardou completamente "submissado".

Apesar do sono profundo, gritos abafados de terror escaparam da sua garganta. Na verdade, Bufônio bufou ridículo e anedótico, aparentemente imobilizado pela letargia modorrenta da bebida em excesso e da visão dos franzinos. Seus berros lancinantes (que ele acreditava estivessem soltos boca afora), se espalharam e sacudiram o silêncio que reinava por todos os cantos do ambiente. Tudo, em seguida, para ele, virou uma tremenda escuridão. Quando acordou, foi levada a presença de uma nanica (que aliás, parecia ser a chefe suprema daquele paraíso desconhecido.

A jovem lembrava muito a Lurdinha. A donzela apareceu montada elegantemente a bordo de uma espécie de lambreta que flutuava. Sorrindo insinuante e numa voz docemente envolvente, a senhorita comunicou que ele, Bufônio, havia sido abduzido.  E, com o tal e para sempre, permaneceria aprisionado aos cuidados dela. Ele seria, dali para frente, o seu escravo. O pobre coitado se tornaria cativo num planeta ainda desconhecido em toda a galáxia. O astro luminoso tinha o esquisito nome de Oinôfub.  

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Texto enviado pelo autor

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