Disse-me um dia um velho amigo:
— Há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia.
Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas leituras parecerão fastidiosas; mas devemos crer que as mães, empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinquenta anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores. Há tempos enviei um livro à minha filha: L'Education nouvelle, de Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "A escola deve desenvolver tanto na criança a amplitude da inteligência quanto a amplitude do peito."
Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios com proveito, graças à instrução que recebeu... Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos de história natural. Um deles frequenta uma oficina de carpintaria, o outro uma de ferreiro... A mãe preside às suas leituras, livros escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música. O pai dá-lhes uma hora de matemática e geografia e contrataram um professor francês para a língua francesa e um inglês para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não têm as mãos acetinadas, está claro... Imagine um ferreiro! Um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática, mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum desembaraço...
Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à vontade num salão como em uma oficina... Em uma das suas cartas diz-me a mãe:
"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência de homens!"
E em outra carta:
"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta, à minha ordem. As quintas e sábados vem um homem guia-os nesse serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão lindas rosas nem tão magníficos repolhos."
Ainda noutra carta:
"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem, e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."
Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem, porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências naturais e línguas vivas. Ela sabe que um dia pode transmitir, e os seus filhos são assim duplamente — suas criaturas.
Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras. Aqui estão palavras de um romance russo:
"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! Que submissão, que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó! É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."
Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.
No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante, com uma expressão de bondade sonhadora...
Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado. Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?
Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores...
Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza, com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras, que nascem da alma e definem com clareza uma ideia ou um sentimento.
Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro. Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental, para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno, mas agora como um cão batido, magro, morta de fome, coberta de humilhações. Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.
Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne martirizada e submissa... O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família, exclama radiante:
— "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"
E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação. A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de sentimento feminino!
E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão alta significação moral... O lenço desempenha na vida um papel bem variado!
Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente de enxugar lágrimas e disfarçar ironias. Quando pertença a uma senhora, — que o do homem é obrigado a um exercício ativo — o lenço branco, de meio metro quadrado, paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado em quatro entre sachês ou raízes de capim cheiroso.
No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também têm disso), eles sentirão a satisfação do dever cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro e da sua abnegação.
Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço; não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz, mas sim o recato que poetisa o seio.
De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas, que despertam a ideia de campos de papoulas, onde bata o sol.
Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo vão entre aspas:
"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica, abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração: triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições, ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando não possamos com a palavra repelir a má intenção de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele é então o salvador da nossa dignidade. É ainda o lenço que, compartilhando da expressão do nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou na saudade de uma despedida. Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se no ar como uma asa na agonia."
Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:
Este teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio
Que hei de um dia mandar-te, pois roubei-o
E foi meu crime em breve descoberto"
(Versos de um simples — Guimarães Passos)
Se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando "Pando, enfunado, côncavo de beijos!"
Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações, que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços, guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa: a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não verem a morte!
“Você não viu algumas vezes um lenço
Avistado com morangos na mão da sua esposa?”
Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua! Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou no seu senhor o monstro de olhos verdes, o enegrecido ciúme, que fez morrer a pálida Desdêmona.
Na ação como na intriga os lenços representam muitas vezes no teatro extraordinárias ficções! São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida, ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem paixões nem enxuguem o suor da agonia, é ainda um magnífico pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia da inércia.
Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva da toalete, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas caras. Rendas...
Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e tão finas que se nos afigura impossíveis terem sido tecidas por gente inculta, sem noção de desenho. Quando se lê o apreço que em certos países dão, e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres, fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os apanhem para continuar a tarefa interrompida...
Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta. Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição. Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica, que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado. A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou entre uivos: — Foi o cock... foi carvão de cock que me matou!
As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no mesmo estribilho recriminativo: — Foi o carvão de cock que me matou!
Veio gente de dentro. Levaram-na em braços. Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável...
Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa, como diz o mestre:
Que não é dia claro e é já alvorecer
Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher .
(Falenas — Machado de Assis)
E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.
Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente; e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou, e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo...
O artifício do pó de arroz é o véu benévolo para os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e sobretudo na sua simplicidade...
Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la. A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.
Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde a rapaziada de uma aldeia próxima passava para a escola. A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.
Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se balançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho? Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois... Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!
Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?
Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola. Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela co-discípula de rosto franzido e cabelo nevado.
No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.
As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente... De vez em quando noticiam os jornais: "... Perdeu-se uma criança... Achou-se uma criança..."
E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir essas confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada, de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas de soluços: — mamãe! Querem a mamãe, cuja mão deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas, sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados para todas as janelas.
Estas cenas, aliás frequentes, sempre enternecem, e a cada pergunta que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre criaturinha, ouve sempre a mesma resposta — mamãe!...
— Em que rua mora? — Mamãe!
— Para onde ia? — Mamãe!...
— Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!
Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra, sai trêmula, — que o não pise um carro! — e, enquanto alucinada sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos, segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.
E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas: "... Perdeu-se uma criança..."
Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele: “Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um lado e vão com ela a rastros do outro, descrevendo uma linha diagonal, como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma, varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar: outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda sem distrações nem indiscrições, deixando apenas entrever o que se deve não mostrar.”
Eu já atinei com a arte. A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as senhoras do meu tempo...
Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse e me visse os tacões, ou a saia de esguelha...
Os homens são terríveis!
— Há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia.
Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas leituras parecerão fastidiosas; mas devemos crer que as mães, empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinquenta anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores. Há tempos enviei um livro à minha filha: L'Education nouvelle, de Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "A escola deve desenvolver tanto na criança a amplitude da inteligência quanto a amplitude do peito."
Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios com proveito, graças à instrução que recebeu... Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos de história natural. Um deles frequenta uma oficina de carpintaria, o outro uma de ferreiro... A mãe preside às suas leituras, livros escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música. O pai dá-lhes uma hora de matemática e geografia e contrataram um professor francês para a língua francesa e um inglês para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não têm as mãos acetinadas, está claro... Imagine um ferreiro! Um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática, mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum desembaraço...
Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à vontade num salão como em uma oficina... Em uma das suas cartas diz-me a mãe:
"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência de homens!"
E em outra carta:
"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta, à minha ordem. As quintas e sábados vem um homem guia-os nesse serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão lindas rosas nem tão magníficos repolhos."
Ainda noutra carta:
"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem, e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."
Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem, porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências naturais e línguas vivas. Ela sabe que um dia pode transmitir, e os seus filhos são assim duplamente — suas criaturas.
Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras. Aqui estão palavras de um romance russo:
"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! Que submissão, que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó! É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."
Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.
No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante, com uma expressão de bondade sonhadora...
Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado. Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?
Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores...
Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza, com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras, que nascem da alma e definem com clareza uma ideia ou um sentimento.
Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro. Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental, para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno, mas agora como um cão batido, magro, morta de fome, coberta de humilhações. Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.
Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne martirizada e submissa... O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família, exclama radiante:
— "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"
E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação. A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de sentimento feminino!
E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão alta significação moral... O lenço desempenha na vida um papel bem variado!
Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente de enxugar lágrimas e disfarçar ironias. Quando pertença a uma senhora, — que o do homem é obrigado a um exercício ativo — o lenço branco, de meio metro quadrado, paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado em quatro entre sachês ou raízes de capim cheiroso.
No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também têm disso), eles sentirão a satisfação do dever cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro e da sua abnegação.
Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço; não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz, mas sim o recato que poetisa o seio.
De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas, que despertam a ideia de campos de papoulas, onde bata o sol.
Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo vão entre aspas:
"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica, abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração: triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições, ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando não possamos com a palavra repelir a má intenção de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele é então o salvador da nossa dignidade. É ainda o lenço que, compartilhando da expressão do nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou na saudade de uma despedida. Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se no ar como uma asa na agonia."
Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:
Este teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio
Que hei de um dia mandar-te, pois roubei-o
E foi meu crime em breve descoberto"
(Versos de um simples — Guimarães Passos)
Se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando "Pando, enfunado, côncavo de beijos!"
Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações, que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços, guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa: a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não verem a morte!
“Você não viu algumas vezes um lenço
Avistado com morangos na mão da sua esposa?”
Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua! Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou no seu senhor o monstro de olhos verdes, o enegrecido ciúme, que fez morrer a pálida Desdêmona.
Na ação como na intriga os lenços representam muitas vezes no teatro extraordinárias ficções! São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida, ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem paixões nem enxuguem o suor da agonia, é ainda um magnífico pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia da inércia.
Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva da toalete, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas caras. Rendas...
Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e tão finas que se nos afigura impossíveis terem sido tecidas por gente inculta, sem noção de desenho. Quando se lê o apreço que em certos países dão, e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres, fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os apanhem para continuar a tarefa interrompida...
Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta. Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição. Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica, que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado. A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou entre uivos: — Foi o cock... foi carvão de cock que me matou!
As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no mesmo estribilho recriminativo: — Foi o carvão de cock que me matou!
Veio gente de dentro. Levaram-na em braços. Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável...
Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa, como diz o mestre:
Que não é dia claro e é já alvorecer
Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher .
(Falenas — Machado de Assis)
E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.
Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente; e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou, e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo...
O artifício do pó de arroz é o véu benévolo para os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e sobretudo na sua simplicidade...
Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la. A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.
Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde a rapaziada de uma aldeia próxima passava para a escola. A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.
Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se balançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho? Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois... Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!
Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?
Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola. Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela co-discípula de rosto franzido e cabelo nevado.
No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.
As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente... De vez em quando noticiam os jornais: "... Perdeu-se uma criança... Achou-se uma criança..."
E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir essas confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada, de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas de soluços: — mamãe! Querem a mamãe, cuja mão deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas, sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados para todas as janelas.
Estas cenas, aliás frequentes, sempre enternecem, e a cada pergunta que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre criaturinha, ouve sempre a mesma resposta — mamãe!...
— Em que rua mora? — Mamãe!
— Para onde ia? — Mamãe!...
— Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!
Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra, sai trêmula, — que o não pise um carro! — e, enquanto alucinada sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos, segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.
E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas: "... Perdeu-se uma criança..."
Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele: “Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um lado e vão com ela a rastros do outro, descrevendo uma linha diagonal, como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma, varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar: outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda sem distrações nem indiscrições, deixando apenas entrever o que se deve não mostrar.”
Eu já atinei com a arte. A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as senhoras do meu tempo...
Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse e me visse os tacões, ou a saia de esguelha...
Os homens são terríveis!
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906
Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906
Disponível em Domínio Público.
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