Nélida Pinõn, em seu livro “Uma furtiva lágrima”.
HOUVE UM TEMPO, houve um tempo, houve... em que eu passava na porta de um bar, ou de uma padaria, queria entrar, sentar, tomar um copo de café com leite e comer um pãozinho com manteiga, mas não tinha condições. O bolso estava furado. Literalmente! A carteira sem um centavo para fazer um cego cantar, ou um mendigo de rua sorrir à minha aproximação.
Houve um tempo em que me perdi espiando, de boca aberta, os olhos arregalados para dentro de uma dessas lojas de eletrodomésticos, onde uma porção de televisores de tela plana ligados em canais diferentes prendiam a atenção de uma multidão, bem como aparelhos de som e sofisticados DVDs, mas, infelizmente, eu continuava não dispondo de meios de sobrevivência, ao menos para entrar e bater um papo com a moça esbelta e de sorriso bonito.
Houve um tempo em que precisava urgentemente trocar o par de meias e os sapatos furados. Lembro que fiquei namorando algumas vitrinas masculinas, mas esse namoro não prosperou. Também houve um tempo em que me detive por longo período na porta de uma lojinha em liquidação de queima de estoque e, como das vezes anteriores, não tinha fundos na carteira para levar para casa uma calça jeans, uma camisa de malhas, ou umas bermudinhas simples, de cores variadas, visando substituir as tranqueiras surradas que usava o ano inteiro.
Houve um tempo em que sentava nos bancos da estação rodoviária e ali ficava horas e horas apreciando o movimento do ir e vir das pessoas que embarcavam cheias de malas e cuias, criaturas apressadas, cada uma delas com um sorriso largo estampado nos lábios, e a imensidão do caminho a ser seguido fazendo cócegas na aflição desenfreada para que o ônibus partisse sem mais delongas.
Nesse corre-corre incessante, nesse afogo onde o agito e o nervosismo eram a tônica, topei com gente se despedindo, crianças chorando e idosos impacientes. Presenciei abraços sendo trocados com efusão, carinhos permutados com ímpetos de veemência, juras de amor saciadas com intensidade à flor da pele, enquanto o motorista conferia passagens e documentos de embarque.
Vi choros, lágrimas e tristezas, como também esperanças, saudades, carinhos e probabilidades de volta. Vi ideias e pensamentos que se misturavam numa impetuosidade única e, no instante seguinte, se rejuvenesciam e se renovavam, como se uma palpitação mágica saída do nada trouxesse coisa alguma escondida, ou meros desejos eternos.
Houve um tempo em que levantava a cabeça para o infinito e topava com um avião solitário cortando o espaço lá em cima. De repente essa aeronave sumia na poeira do céu sem deixar rastro da sua presença. Houve um tempo –, houve um tempo em que o tempo se desfazia em sequelas de escuridão e eu, eu me sentia só e desamparado, perdido, isolado das coisas mais corriqueiras, o peito vazio, despojado de sentimentos nobres, o meu “eu interior” completamente dilacerado.
Não só dilacerado ou enxovalhado. Igualmente mortificado e ferido, rasgado, torturado, e pior, os pensamentos embaralhando tudo em minha volta e transformando a minha gota de esperança numa vasta extensão de desgostos e incertezas sem fim. Houve um tempo em que sorri de um modo triste e melancólico ao topar comigo mesmo em meio a uma dilatada e avultada multidão.
Por um breve instante, me recordo, nesse dia, em meio desse tempo irmanado a robusta multidão, sonhei que a felicidade caminhava ao meu lado, de braços dados, e, a tiracolo, um novo porvir que prometia nascer sem máculas. Houve um tempo, meu Deus, houve um tempo de espera muito longo, um tempo em que as horas paravam como se estivessem emperradas.
O sol, num piscar, sumiu. O vento deixou de soprar. As flores perderam o viço. O azul do firmamento se mesclou de nuvens carregadas e de pesados silêncios. Houve um tempo em que pensei dar fim à vida. Acabar com a minha história. Antecipar o meu destino. Cortar, por derradeiro, o ar que me mantinha vivo.
Então veio um tempo diferente. Um tempo mágico em que a vida me sorriu de forma plena. O vento soprou meus cabelos, o sol se pôs alegre e saltitante e os pássaros voltaram a cantar. Veio um outro tempo melhor. Um tempo em que a solidão se fez amena, a tristeza fugiu, o mar agitado de desgostos se transformou em ondas de bonanças.
No mesmo trilhar desse tempo –, houve um tempo ainda mais novo. Um período de alegrias e contentamentos. Dentro dele, a escuridão se viu invadida por um foco de luz muito forte e de intensa claridade. Então me olhei no espelho. Ao me refletir, percebi que meu rosto se abria em desenhos coloridos da mais pura empolgação e beatitude.
Os olhos, sem o revérbero da paz, brilharam com uma intensidade descomedida. O coração, de repente, bateu acelerado. Fustigou, assim como se quisesse saltar peito à fora. Me lembro que saí correndo. Estava meio louco, meio pirado. Na verdade, apavorado, ou atordoado, sei lá.
Creio, as duas coisas me espremendo e me empurrando contra os leões que sempre nos esperam do lado de fora, quando saímos de casa em busca de algo desconhecido. Eu recebera um telefonema da maternidade. Um telefonema. Minha mulher acabava de entrar na sala de parto. Meu Deus, ela estava dando à luz. Meu Pai Eterno. EU IA SER PAI... EU IA SER PAI PELA PRIMEIRA VEZ!
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Texto enviado pelo autor.
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