domingo, 10 de setembro de 2023

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 8 -


Cristóvam Pavia
(Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho)
(Lisboa/Portugal, 1933 – 1968)

AO MEU CÃO

Deixei-te só , à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação 
De tudo… e apesar disso, sem o pedir,
tentando Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia,
a debater-te
Com a morte.

E deixei-te só , à beira da agonia, 
tão aflito, 
tão só e
sossegado.
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Daniel (Damásio Ascensão) Filipe
(Cabo Verde/Portugal, 1925 – 1964, Lisboa/Portugal)

MORNA

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta.)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– sutil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
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Fernando Echevarría (Ferreira)
(Cabezón de la Sala/Espanha, 1929 – 2021, Porto/Portugal)

QUALQUER COISA DE PAZ

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruina
a luz da fronte onde a atenção domina.
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Fernando (António Nogueira) Pessoa
(Lisboa/Portugal, 1888 – 1935)

TUDO QUANTO SONHEI

Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.

Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.

A ti talvez, que não te têm dado,
Darão enfim…
A mim… Sei eu que duro e inato fado
Me espera de mim?
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Manuel António Pina
(Sabugal/Portugal, 1943 – 2012, Porto/Portugal)

AMOR COMO EM CASA

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. 
Faço de conta que não é nada comigo. 
Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. 
Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, 
e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar à tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
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Natália (de Oliveira) Correia
(São Miguel/Portugal, 1923 – 1993, Lisboa/Portugal)

MÃE ILHA

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que pra mim sonhaste,
Ó mãe completa da manhã ao ocaso,
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti pras Índias do meu estranho caso
—ó danos que dos versos sois o engate!—
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou no canto dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e à onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul de mãe esperando.
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