domingo, 24 de setembro de 2023

Artur de Azevedo (Por um fio!)


(Conto-Monólogo*)


És casado também?... tua esposa é ciumenta
E tem — para empregar uma expressão usada —
Cabelinho na venta?
Pois vou dar-te um conselho e não te peço nada:
Evita entrar no bonde. Acaso necessitas
De ir á Copacabana? Á Fabrica das Chitas?
À Vila Guarany?
À Muda da Tijuca? Ao Rocha? A Catumby?
Toma um carro de praça! E, se não tens dinheiro
Que afronte a proverbial ganância do cocheiro,
Enche-te de valor e vai a pé de calcantes (sapatos).
Assim se andava dantes
Por toda esta cidade,
E havia mais saúde e mais atividade.
Mas, se evitar não podes
O bonde, e um negro fado exige que tu rodes.

Dentro desse veículo
Que um pobre diabo expõe a parecer ridículo,
Nunca o banco da frente escolhas! Eu te digo
O caso excepcional que se passou comigo...
Ah! Ia-me esquecendo: eu abro uma exceção
Para o elétrico... Oh, sim! Porque essa condução
Dispensa o burro... O burro!... Ainda o sangue me ferve!
Ainda não estou em mim!... — Mas vamos ao que serve:

Eu sou casado e nunca atraiçoei Biloca
(Minha mulher assim se chama): não provoca
Os meus desejos nem mesmo a Vênus de Milo!
Se eu a visse passar, ficaria tranquilo,
Não lhe ofereceria o braço! Que mulheres
Me fariam fugir aos conjugais deveres?
Um dia, ali, na Lapa,
Eu fiz como José: deixei ficar a capa!
Por sinal, que a perdi... Que boa capa aquela!...
Vi, três dias depois, o Potifar com ela,
E assentava-lhe bem! — Mas imaginem que ontem
(Esta desgraça a toda a humanidade contém!),
Como houvesse luar e a noite convidasse,
Quis um bonde tomar que longe me levasse
Das vendas, dos cafés, dos chopes e dos quiosques,
Para aspirar a brisa balsâmica dos bosques.
Fui à Gavea. Um passeio esplêndido, bem sabem;
Mas, se passeios há que nunca mais acabem,
Esse é um deles. À volta, adormeci no bonde.

Acordei de repente e, para saber onde
Me achava, olhei ao longe e vi o mar, e logo
Pensei comigo: — Bom! Já estou em Botafogo. —
Adormeci de novo, e quatro sacalões
Fizeram-me acordar... no largo dos Leões!
Sim, senhor, foi bem boa:
O que me parecera o mar, era a lagoa
De Rodrigo de Freitas!
O marido que eu sou — um marido às direitas —
Na alcova conjugal entrou às onze e meia!
Agora vejam lá qual foi a minha ceia:
Minha mulher, de pé, as faces incendidas,
Nos olhos o sinal das lágrimas vertidas,
Quer saber de onde e como aquelas horas venho,
E me acusa, a gritar, de culpas que não tenho!
— Onde esteve o senhor metido até esta hora? —
— Biloca, ouve, meu bem: a causa da demora... —
— Não diga, que não creio! — Ó Biloquinha,
Não grites, para não despertar os pequenos! —
Enfim, passo por alto os longos pormenores
Do conflito, — eu vestido, ela em trajes menores;
Eu calmo, ela furiosa, e num ciúme absurdo
Um barulho a fazer de ensurdecer um surdo!
Às cinco da manhã dormíamos serenos,
Biloca, eu e os pequenos.

Mulher que por ciumenta o marido não poupa,
Tem o hábito mal de examinar-lhe a roupa,
Esperando encontrar um corpo de delito
Que o confunda, que o ponha atônito, contrito.
— Biloca despertou-me aos berros! Tinha achado
Um cabelo agarrado
À gola do meu fraque! Era um cabelo louro,
Um cabelo gentil, misto de seda e ouro.
Parecia, por Deus, cabelo de senhora
Que viesse de fora,
Inglesa ou alemã! — era um fio comprido:
Tinha seguramente um metro bem medido!
Um minuto depois de refletir profunda
E sossegadamente (O céu que me confunda
Se a verdade não digo!) achei que o tal cabelo
— Não cabelo, mas pelo —
Da cabeça não foi de uma mulher bonita,
Mas da cauda de um burro!
E Biloca inda grita!
Dá-lhe o mundo razão... e vão lá convence-lo
Que é pelo e não cabelo!

Toda a minha ventura eu trago por um fio!
Biloca diz que vai para casa do tio
(Já não tem pai, nem mãe) e quer judicialmente
Separar-se de mim!... Ai, o banco da frente!...

Mais uma vez repito o meu conselho: evita
Andar de bonde, e quando acaso, por desdita,
Não puderes fazer outra coisa, não vás
Para o banco da frente e sim para o de trás.
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Nota do autor
 * Se o leitor algum merecimento encontrar neste conto, não será, certamente, pelo assunto, que nada vale. Entretanto, acusaram-me de o haver furtado. Escrevi esses versos a pedido do distinto ator Mattos, aproveitando o fato contado por ele como sucedido a um amigo. É possivel que exista outro conto, monologo ou coisa que o valha, com o mesmo assunto, mas nunca o vi, nem o ouvi. — A. A.


Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

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