Senhor Antônio, não contou nada a respeito dos novos negócios à esposa e à filha. Mas suas expressões de preocupação, repentinamente transformaram-se em cantarolados, assobios e até gargalhadas, ao trocar qualquer ideia com os peões. Além disso, andava caseiro e, pelo menos uma vez ao dia, entrava no quarto para saber da mulher.
‘O que deu nele?’ Pensou Isadora.
Os dias foram passando e nada do fazendeiro voltar ao seu estado “normal”. Claro, ainda era grosseiro e cheio de ideias machistas.
- Teu vestido tá muito decotado, “fia” - reclamou ao ver a guria com um vestido de chita, florido, com o tecido em fundo vermelho. Aliás, vermelho não, encarnado. Era assim que ele denominava o tom avermelhado das coisas e afirmava ser essa a cor favorita das “mulheres da vida”.
Com receio de estragar o bom humor do pai, a filha, imediatamente trocou o vestido por um em tom azulado, delicado e sóbrio.
Ainda assim, o velho estava diferente. Não parecia ser a mesma pessoa. Todas as manhãs, sentava na varanda para matear em frente ao fogão à lenha e brincar com o amigável cusco da casa.
Tal mudança acalmava o coração de Isadora, mas não a convencia por completo.
Da janela do seu quarto, perdida em seus pensamentos, por várias noites seguidas se perguntou: - será possível alguém em idade avançada e costumes tão medonhos, mudar da noite para o dia?...
No decorrer desse inusitado período de paz, a moça cuidava dos afazeres domésticos e aplicava-se ao máximo para ver a mãe plena em sua saúde.
- Mãezinha, preparei uma sopa deliciosa para a senhora. - disse ela ao entrar no quarto num dia de extremo frio.
- Teu pai nem parece ser o mesmo homem de antes. Ele está mudado. - disse a esposa, cheia de esperança.
- Espero que essa mudança seja real e venha para o bem de todos, minha mãe.
- Sempre te alertei sobre o lado bom do teu pai.
- A aparente mudança não apaga tudo o que ele fez a senhora sofrer. És uma mulher incrível, merecia um marido mais presente e carinhoso. Mas não vamos discutir sobre isso. Coma. Quero vê-la forte.
- Estou sem fome.
- Ainda sem apetite. Precisas se alimentar.
- Está bem, meu anjo. Tenho que exercitar a minha força de vontade.
- Gostei de ver. É assim que se fala!
Logo após o almoço, enquanto Isadora lavava a louça, dona Ana sentiu enjoos e desmaiou.
Meia hora depois, ao entrar no quarto, Isadora tentou reanimá-la.
- Mãe, acorda, pelo amor de Deus. Socorro! – gritou, desesperada.
Ao entrar, o senhor Antônio deu-se conta do estado lamentável da esposa e, às pressas, correu atrás do Juca.
- Tua patroa tá passando mal. Precisa ser levada para o “hospitar”. - disse o patrão, já quase sem ar com a correria.
Com o peão no comando da direção do jipe da família, eles partiram até a cidade na fé de que dona Ana chegasse ainda com vida ao pronto-socorro.
Após ser internada novamente, o médico confirmou o estado gravíssimo de saúde da mulher.
- O coração dela está muito fraco. Precisamos conduzi-la a São Paulo para que se realize uma cirurgia. Mas vou logo avisando: a operação custará um alto valor financeiro. - explicou o cardiologista sem fazer rodeios.
- Quanto? - indagou o marido, sentindo-se apreensivo.
- Alguns mil cruzeiros.
O senhor Antônio levou as mãos ao peito. E acometido por uma vertigem, foi amparado pelo doutor que verificou a sua pressão.
- Pai. O senhor está se sentindo melhor? - perguntou Isa, minutos depois.
- Parece que me “farta” o ar, “fia”.
- Mas sua pressão está ótima. Respire fundo e tudo ficará bem. Precisamos tratar logo sobre a transferência da mãe.
- Ela não pode ser tratada aqui, doutor?
- Pai. Não ouviste o que o médico disse?
- Sabe o que é minha “fia”, não tenho como pagar essa despesa. É uma operação cara. - disse Antônio, gaguejando.
- Pai, precisamos ter uma conversa em particular.
- Vou deixá-los a sós. Quando decidirem o que devemos fazer, é só chamar. - disse o plantonista.
- Pai, que história é essa de não ter dinheiro para pagar a operação?
- Tô falido.
- O momento é totalmente impróprio para pensar em economizar.
- Tô falido. Sem dinheiro pra comprar um mísero bezerro.
- Mas o senhor é dono de uma grande fazenda e de outras fazendas menores. E, ao que parece, os peões estão com os seus salários em dia. Esclareça o que está acontecendo.
- Nesse mês os “peão” não vão receber nada.
Isadora, sem saber o que fazer, levou as mãos à cabeça, girou em torno de si e, chorando, desabafou.
- Gastou todo o dinheiro da família com mulheres e jogos.
- Nenhum “fio” ou “fia” tem o direito de acusar pai e mãe.
- Tem, sim. E eu estou lhe acusando de torrar o dinheiro da família na rua, enquanto a sua esposa ficava em casa, limpando, cozinhando e fazendo doces para vender. Trabalhou tanto que perdeu o seu maior bem: a saúde. Aliás, o trabalho é apenas uma parte do problema. A sua ausência, a sua falta de amor para com ela, a vinha matando aos poucos desde sempre.
- Cala a boca, guria. Senão o “reio” (relho) te acha!
- Fica o senhor sabendo que não sinto medo das suas ameaças.
- Eu ergui aquela fazenda. Ela é minha.
- Sendo assim, por que batizou as terras prestando homenagem a mim?
- Porque tu também é minha! - bradou o pai, cheio de ira.
- Se a mãe morrer a culpa é sua.
- Mas se ela se “sarvar”, a “curpa” é todinha tua.
- O que queres dizer?
- Caso aceite uma proposta, tua mãe sai dessa, viva.
- Que proposta?
- O “fio” do xiru Pafúncio tá querendo casar contigo.
- Casar comigo? Mal me conhece.
- Tá enfeitiçado por tua beleza. A “famía” é muito rica. Pode “sarvá” tua mãe e a fazenda.
- Agora estou entendendo ... Eu já estava envolvida entre os negócios de vocês ... Por isso o senhor estava diferente, cantarolando pela casa. Estava sentindo-se desapertado por teres encontrado uma forma de salvar a fazenda, me sacrificando.
- Agora tá tudo entregue nas tuas mãos.
- Covarde. O senhor é um covarde! - gritou Isadora, chorando copiosamente.
- Gente, estamos dentro de um hospital. Que gritaria é essa? -perguntou o médico ao passar pelo corredor.
- Tô fa...
- Pode preparar a transferência. A mãe será operada. - disse a filha, interrompendo a fala do pai que já se preparava para contar da sua falência financeira ao médico.
Ao ouvir as palavras de Isadora, o senhor Antônio sorriu e suspirou aliviado.
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Nota de ropdapé:
Relho: Chicote feito com couro; fita de couro cru usada para chicotear animais.
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continua…
‘O que deu nele?’ Pensou Isadora.
Os dias foram passando e nada do fazendeiro voltar ao seu estado “normal”. Claro, ainda era grosseiro e cheio de ideias machistas.
- Teu vestido tá muito decotado, “fia” - reclamou ao ver a guria com um vestido de chita, florido, com o tecido em fundo vermelho. Aliás, vermelho não, encarnado. Era assim que ele denominava o tom avermelhado das coisas e afirmava ser essa a cor favorita das “mulheres da vida”.
Com receio de estragar o bom humor do pai, a filha, imediatamente trocou o vestido por um em tom azulado, delicado e sóbrio.
Ainda assim, o velho estava diferente. Não parecia ser a mesma pessoa. Todas as manhãs, sentava na varanda para matear em frente ao fogão à lenha e brincar com o amigável cusco da casa.
Tal mudança acalmava o coração de Isadora, mas não a convencia por completo.
Da janela do seu quarto, perdida em seus pensamentos, por várias noites seguidas se perguntou: - será possível alguém em idade avançada e costumes tão medonhos, mudar da noite para o dia?...
No decorrer desse inusitado período de paz, a moça cuidava dos afazeres domésticos e aplicava-se ao máximo para ver a mãe plena em sua saúde.
- Mãezinha, preparei uma sopa deliciosa para a senhora. - disse ela ao entrar no quarto num dia de extremo frio.
- Teu pai nem parece ser o mesmo homem de antes. Ele está mudado. - disse a esposa, cheia de esperança.
- Espero que essa mudança seja real e venha para o bem de todos, minha mãe.
- Sempre te alertei sobre o lado bom do teu pai.
- A aparente mudança não apaga tudo o que ele fez a senhora sofrer. És uma mulher incrível, merecia um marido mais presente e carinhoso. Mas não vamos discutir sobre isso. Coma. Quero vê-la forte.
- Estou sem fome.
- Ainda sem apetite. Precisas se alimentar.
- Está bem, meu anjo. Tenho que exercitar a minha força de vontade.
- Gostei de ver. É assim que se fala!
Logo após o almoço, enquanto Isadora lavava a louça, dona Ana sentiu enjoos e desmaiou.
Meia hora depois, ao entrar no quarto, Isadora tentou reanimá-la.
- Mãe, acorda, pelo amor de Deus. Socorro! – gritou, desesperada.
Ao entrar, o senhor Antônio deu-se conta do estado lamentável da esposa e, às pressas, correu atrás do Juca.
- Tua patroa tá passando mal. Precisa ser levada para o “hospitar”. - disse o patrão, já quase sem ar com a correria.
Com o peão no comando da direção do jipe da família, eles partiram até a cidade na fé de que dona Ana chegasse ainda com vida ao pronto-socorro.
Após ser internada novamente, o médico confirmou o estado gravíssimo de saúde da mulher.
- O coração dela está muito fraco. Precisamos conduzi-la a São Paulo para que se realize uma cirurgia. Mas vou logo avisando: a operação custará um alto valor financeiro. - explicou o cardiologista sem fazer rodeios.
- Quanto? - indagou o marido, sentindo-se apreensivo.
- Alguns mil cruzeiros.
O senhor Antônio levou as mãos ao peito. E acometido por uma vertigem, foi amparado pelo doutor que verificou a sua pressão.
- Pai. O senhor está se sentindo melhor? - perguntou Isa, minutos depois.
- Parece que me “farta” o ar, “fia”.
- Mas sua pressão está ótima. Respire fundo e tudo ficará bem. Precisamos tratar logo sobre a transferência da mãe.
- Ela não pode ser tratada aqui, doutor?
- Pai. Não ouviste o que o médico disse?
- Sabe o que é minha “fia”, não tenho como pagar essa despesa. É uma operação cara. - disse Antônio, gaguejando.
- Pai, precisamos ter uma conversa em particular.
- Vou deixá-los a sós. Quando decidirem o que devemos fazer, é só chamar. - disse o plantonista.
- Pai, que história é essa de não ter dinheiro para pagar a operação?
- Tô falido.
- O momento é totalmente impróprio para pensar em economizar.
- Tô falido. Sem dinheiro pra comprar um mísero bezerro.
- Mas o senhor é dono de uma grande fazenda e de outras fazendas menores. E, ao que parece, os peões estão com os seus salários em dia. Esclareça o que está acontecendo.
- Nesse mês os “peão” não vão receber nada.
Isadora, sem saber o que fazer, levou as mãos à cabeça, girou em torno de si e, chorando, desabafou.
- Gastou todo o dinheiro da família com mulheres e jogos.
- Nenhum “fio” ou “fia” tem o direito de acusar pai e mãe.
- Tem, sim. E eu estou lhe acusando de torrar o dinheiro da família na rua, enquanto a sua esposa ficava em casa, limpando, cozinhando e fazendo doces para vender. Trabalhou tanto que perdeu o seu maior bem: a saúde. Aliás, o trabalho é apenas uma parte do problema. A sua ausência, a sua falta de amor para com ela, a vinha matando aos poucos desde sempre.
- Cala a boca, guria. Senão o “reio” (relho) te acha!
- Fica o senhor sabendo que não sinto medo das suas ameaças.
- Eu ergui aquela fazenda. Ela é minha.
- Sendo assim, por que batizou as terras prestando homenagem a mim?
- Porque tu também é minha! - bradou o pai, cheio de ira.
- Se a mãe morrer a culpa é sua.
- Mas se ela se “sarvar”, a “curpa” é todinha tua.
- O que queres dizer?
- Caso aceite uma proposta, tua mãe sai dessa, viva.
- Que proposta?
- O “fio” do xiru Pafúncio tá querendo casar contigo.
- Casar comigo? Mal me conhece.
- Tá enfeitiçado por tua beleza. A “famía” é muito rica. Pode “sarvá” tua mãe e a fazenda.
- Agora estou entendendo ... Eu já estava envolvida entre os negócios de vocês ... Por isso o senhor estava diferente, cantarolando pela casa. Estava sentindo-se desapertado por teres encontrado uma forma de salvar a fazenda, me sacrificando.
- Agora tá tudo entregue nas tuas mãos.
- Covarde. O senhor é um covarde! - gritou Isadora, chorando copiosamente.
- Gente, estamos dentro de um hospital. Que gritaria é essa? -perguntou o médico ao passar pelo corredor.
- Tô fa...
- Pode preparar a transferência. A mãe será operada. - disse a filha, interrompendo a fala do pai que já se preparava para contar da sua falência financeira ao médico.
Ao ouvir as palavras de Isadora, o senhor Antônio sorriu e suspirou aliviado.
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Nota de ropdapé:
Relho: Chicote feito com couro; fita de couro cru usada para chicotear animais.
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continua…
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Enviado pela autora
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