sábado, 2 de setembro de 2023

Artur de Azevedo (Coisas de Anselmo)

A cena passa-se na atualidade, no interior de uma taverna. Um bico de gás alumia escassamente um grupo de habitues. Os cérebros e os copos estão cheios de cerveja!

Anselmo, no meio dos rapazes — como Cristo entre os doutores, discute largamente sobre a sua própria individualidade.

Sejamos indiscretos como a lira do poeta, como as lufadas da ventania, como um suspiro apaixonado, e ouçamo-lo:

– Em Paris, para onde fugi das perseguições que me faziam por causa de uma dançarina andaluza que, em Lisboa, teve a fraqueza de se apaixonar por mim, cresceu o número das minhas aventuras amorosas...

– Este Anselmo!

– Vou contar-vos um dos meus menos interessantes bamboches (patuscadas): — Uma noite, aborrecido de tudo: - dos espetáculos, dos bailes e das corridas, eu passeava distraído no boulevard dos italianos e vi uma mão alva e pequena pendida de um parapeito de janela baixa — Uma mão! disse eu comigo, parando maquinalmente e contemplando extasiado aquela partícula anônima de um corpo de mulher! — Uma mão, repeti, que deve por força pertencer à mais linda madame de Paris! — E levando-a maquinalmente aos lábios, beijei-a amorosamente.

– Em Paris, Anselmo, na terra da multidão ninguém te viu praticar semelhan...

– Bem mostras que ainda não saíste do Maranhão, meu amigo. Na grande capital, quem repara nisso? Quem se importa com um beijo?...

– Continua.

– A minha mão que, para que meus lábios se colassem nas veias azuis da mão da moça, havia apertado-lhe os dedos entre os seus, sentiu-se de súbito apertada também! O meu sangue gelou-se nas veias, todo inteiro — ossos — carnes — tremi! Ergui os olhos: a pessoa conservava a mesma misteriosa posição: nada mais via que essa nevada mão que, por tão pouco, soube se apoderar de uma existência…

E eu disse: — Ange ou femme, montre—moi ton visage, regarde—moi.

— É' melhor, interrompeu um do grupo, que nos contes isso em português.

— Anjo ou mulher, traduziu Anselmo, mostra-me o teu rosto, olha-me: vê a impressão que me causou a tua mão... — Não, respondeu-me uma voz argentina e melíflua. — Ouí, redargui — Non, repetiu-se-me. E a mão desapareceu. Eu, vivamente impressionado pela esquisitice romântica da aventura, deixei a janela e prossegui o meu caminho. No hotel não pude conciliar o sono: aquela mão me aparecia por todos os lados; a minha fantasia desenhava-me um rosto angélico e sedutor, que forçosamente havia de ser o da moça do boulevard. No dia seguinte, às mesmas horas, na mesmíssima janela, a mesma mão causou-me as mesmíssimas impressões. Renovou-se diariamente, durante muito tempo, aquela excêntrica entrevista, sem nunca conseguir descobrir o rosto da minha clandestina Dulcinéa; quando afinal — um dia —, transferindo comigo mesmo as horas do meu passeio, encontrei-a debruçada à janela. Era linda como a supunha. Informei-me a seu respeito: soube que se chamava Finette, e era modista. Aproximei-me timidamente, e timidamente entreguei-lhe esta quadra que escrevi às pressas na esquina, em uma das folhas da minha carteira:

Para você, minha querida Finette,
Meu amor é muito forte;
Você se torna minha conquista,
E você é meu único tesouro!…


—Muito bem! E ela? o que te disse ela?...

— Ela, respondeu Anselmo, tomou o papel, leu, releu, refletiu e, pedindo-me o lápis, escreveu por baixo:

Eu não sou sua conquista,
Eu não sou seu tesouro.
Mas você foi estúpido,
Porque você é estúpido de novo!


Os que sabiam francês acolheram com uma gargalhada geral o remate da aventura do nosso Anselmo: este, tirando da algibeira uma caixa de colarinhos de papel, para substituir o que já se havia rasgado no pescoço —
pelo suor, preparou-se, levantou a sessão e sábio entre os seus companheiros, que o debicavam, ao ouvir-lhe as aventuras de amor.

Fonte:
Artur de Azevedo. O Domingo: Semanário crítico e literário. São Luís, MA: Tipografia do Liberal, Ano I. n. 40. 10 nov 1872.
Disponível em Domínio Público
Versado para o Português atual e traduções das quadras do francês para o português por J.Feldman 

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