sábado, 2 de dezembro de 2017

Marlene Rangel Sardenberg (Fim da Jornada)


Arnaldo Jabor (O mistério do gambá gigante)

Há seis anos escrevi um artigo que repito, em parte, pois lembro emocionado que dali saiu o desejo profundo de fazer o filme “A suprema Felicidade”, que estou finalizando agora.

Era um artigo em que meu filho, então com 4 anos, perguntava sobre meu passado. Lembro que pensei: "Acho que vou filmar coisas que vi e vivi na adolescência; acho que talvez haja nisso uma verdade maior do que buscar teses ou certezas sobre a vida hoje"... Não é um filme biográfico, nem de "época". Ao contrário, é um filme que tenta captar o que há de permanente no curso dos anos que passaram. Como disse o Fellini, "a única objetividade que conheço é a subjetividade".

Hoje, só há um enorme presente e um passado que nos parece uma decadência em preto e branco. Perdemos a pista do que éramos ou até mesmo do que pensávamos ser.

O artigo era mais ou menos assim: "Antigamente, quando eu era pequenininho...", com essa frase mágica eu cortava qualquer choro de meu filhinho, qualquer bagunça em curso e ele subia em meu colo de olhos abertos, lágrima secando, largando a geleca trêmula no chão, para ouvir as estórias de meu passado.

Papai, antigamente não tinha DVD? Não. Não tinha televisão? TV estava começando, tinha mais rádio. Tinha Homem-Aranha? Acho que não; mas, tinha o Tocha Humana, tinha o Homem de Borracha tinha Super-Homem, mas só apareciam no gibi.

O que é "gibi"? “Revista de quadrinhos - respondo, mas tinha Príncipe Submarino, que hoje não tem mais, um super-herói que lutava no fundo do mar contra os polvos malvados e as lulas venenosas”. “E ele não morria afogado?” “Não, meu filho, porque ele era meio "peixe" também. “E pescavam ele?” “É... tinha uns homens malvados que queriam pescar ele, mas ele era craque”.

“E tinha você, antigamente?” “Eu?” “É... você, com seu papai e sua mamãe?” “É, filho, tinha... tinha eu... mas eu era pequenininho também... olha aqui no retrato”. “Por que você está chorando no colo do seu avô? Não sei; eu acho que já era vocação, ha! ha!”

“Quem eram seus amigos?” “Bem... tinha o Bertoldo, o Bertoldinho e o Cacasseno (personagens de um livro de estórias) e também o meu amigo Albertinho Fortuna... (não sei por que transformei esse cantor popular dos anos 50 num "amigo de infância"... Sempre achei graça nesse nome: "Albertinho Fortuna"...).

“E vocês caçavam o gambá gigante?” “Sim; a gente ia lá na floresta, cada um com um pau na mão e subíamos até a caverna do gambá gigante, que ficava no alto do Corcovado”. “Lá onde tem o "Quisto Redentor"?” “Isso, filhinho; a gente ia subindo a pé porque antigamente não tinha o trenzinho e, quando chegávamos perto da casa do gambá gigante, a gente sentia o cheiro ...argghhhh... era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele; a gente gritava de fora, tapando o nariz: "Gambá gigante! Sai daí!!" Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente, o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tacava nele e aí o gambá gigante ficava cheirozinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí, todo mundo ia dormir, feito você, agora..."

E aí, enquanto meu filhinho começava a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu pensei em sua pergunta profunda: "Pai, tinha você, antigamente?"

Bem? - respondo para mim mesmo - antigamente, tinha eu, outro "eu", diferente deste casca-grossa de hoje ...tinha nossa casinha de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira e, fora de casa, tinha minha curta paisagem de menino: rua, poste, fogueira no capinzal, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças com a lua tremendo na água, balões coloridos no céu, trêmulos de lanterninhas, balões-tangerina, balões-charuto. De dia, tinha o sol que era meu, a chuva que era minha, tinha as nuvens-girafa, as nuvens-camelo, que eu olhava deitado no chão onde as formigas eram minhas, com meus caramujos nas folhas deslizando em sua gosminha madre-pérola...

Uma vez, houve um grande eclipse, e eu fiquei olhando minha família olhando o sol negro, através de cacos de vidro escuros e, eu me lembro, tive a sensação dolorida de que a casa, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, como o sol, tudo indo para longe, como os urubus, mais longe, quase no infinito, na bruma.

Nas ruas, tinha uma luz mortiça nas janelas das casas, com o som do rádio com as novelas deprimentes e o seriado do "Capitão Atlas", tinha os amores impossíveis, os suicídios com guaraná e formicida, as luas de mel fracassadas, as TVs em preto e branco, tinha um Brasil mais micha, cambaio, mas bem mais brasileiro que hoje, em seu caminho que o Golpe de 64 interrompeu e que, agora, essa mania vertiginosa de "primeiro mundo global" acabou matando a tapa. Hoje, essa pobreza é disfarçada pela falsa exuberância de um progresso que fabrica ratos verdes com genes de "águas-vivas", mas não consegue diminuir a miséria e a destruição da natureza.

E eu penso: "Antigamente, filho, não tinha esse povo arrebentado, dividido, tonto. Era uma pobreza mais pobre, mas menos - como direi? - menos insolúvel. Tinha uma nacionalidade ilusória, sim, com o povo apinhado nos bondes, mais burro que hoje, sem defesas, mas ainda havia formas possíveis de consertar, apesar de acharmos que bastava o grito das massas e a vontade de justiça para que um novo país se realizasse." Em 63, não sabíamos ainda que a democracia custaria tanto. Havia um "vazio" no Brasil; mas era um vazio que dava ideia de que ia surgir uma sociedade nova, mesmo num futuro cheio de urubus.

E aí, eu me perguntei, vendo meu filhinho dormir: "Como fazer, meu filho, para restaurar aquela ideia de Brasil, sem fugir das regras implacáveis da vertigem global?" Eu não sabia e não sei ainda. Nem ele - sonhando com o gambá gigante, sob a voz melodiosa de Albertinho Fortuna, cantando por cima do tempo.



sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Maria Nascimento Santos Carvalho (Fantasia)


Monteiro Lobato (Cidades Mortas)

A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas minas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.

A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital — e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.

Em São Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do chamado Norte.

Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.

Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes. Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de há muito, em matéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante símbolo do viver colonial — o carro de boi. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões que lembram ossaturas de megatérios, donde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram.

Vivem dentro, mesquinhamente, vergônteas mortiças, de famílias fidalgas, de boa prosápia, entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem da pátina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras. Paira o  bafio da morte. Há nas paredes quadros antigas, "crayons", figurando efígies de capitães-mores de barba em colar. Ha sobre os aparadores Luiz XV brônzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas., nem se guardam,  os nomes dos enquadrados. — e por tudo se apruma, o bolor rancido da velhice.

São os palácios, mortos da cidade morta.

Avultam em numero, nas ruas centrais, casas sem janelas, só portas, três e quatro: antigos armazéns hoje fechados, porque o comércio desertou também, Em certa, praça vazia, vestígios vagos de "monumento" de vulto: o antigo teatro — um teatro onde já ressoou a voz da Rosina Stolze, da Candiani...

Não ha na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram-se estes remendões; aqueles, meros demolidores, tanto vai da última construção. A tarefa deles se lhes resume em especar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remendá-las mal e mal. Um dia metem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil réis o milheiro — e fica à inclemência do tempo o encargo de aluir o resto.

Os ricos são dois ou três forretas, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no Rio; e os sinecuras acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegados. O resto é a "mob": velhos mestiços de miserável descendência, roídos de opilação e álcool; famílias decaídas a viverem misteriosamente umas, outras à custa do parco auxílio enviado de fora por um filho mais audacioso que emigrou. "Boa, gente", que vive de aparas.

Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só ficam as moças - sempre fincadas de cotovelos à janela, negaceando um marido que é um mito em terra assim, donde os casadouros fogem. Pescam, ás vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu delegadozinho de carreira — e o caso vira prodigioso acontecimento histórico, criador de lendas.

Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio - magro estafeta bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postais à garupa, murchas como figos secos.

Até o ar é próprio; não vibraram nele fonfons de auto; nem cometas de bicicletas, nem campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem tem-tens de sorveteiros, nem plás-plás de mascates sírios. Só os velhos sons coloniais - o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em bando rumoroso cruzam e recruzam o céu.

Isso, nas cidades. No campo não, é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados - o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados.

À mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas.

Raro é o casebre de palha que fumega e entremostra em redor o quartelzinho de cana, a rocinha de mandioca. Na mor parte os escassíssimos existentes, descolorados pelas ventanias, esburaquentos, afestoam-se do melão de São Caetano — a hera rústica das nossas ruínas.

As fazendas são escoriais de soberbo aspecto vistas de longe, entristecedoras quando se lhes chega ao pé. Ladeando a Casa Grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com viçosas guanxumas nos interstícios. O dono está ausente. Mora no Rio, em São Paulo, na Europa. Cafezais extintos. Agregados dispersos. Subsistem unicamente, como lagartixas na pedra, um pupilo de caboclos opilados, de esclerótica biliosa, inermes, incapazes de fecundar a terra, incapazes de abandonar a querência, verdadeiros vegetais de carne que não florescem nem frutificam — a fauna cadavérica de ultima fase a roer os derradeiros capões de café escondidos nos grotões.

— Aqui foi o Breves. Colhia oitenta mil arrobas!...

A gente olha assombrada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada mais!... A mesma morraria nua, a mesma saúva, o mesmo sapé de sempre. De banda a banda, o deserto — o tremendo deserto que o Atila Café criou.

Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pousada no topo dum espeque. Aproxima-se de vagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida; permanece imóvel. Chega-se inda mais, franze a testa, apura a vista. Não é ave, é um objeto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo Oeste, esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando mudamente uma grandeza morta, até que decorram os muitos decênios necessários para que a ruína consuma o rijo poste de "candeia" ao qual o amarraram um dia - no tempo feliz em que Ribeirão Preto era ali...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Cidades Mortas. 

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Luiz Poeta (Luz e Sombra)


Malba Tahan (O Eclipse do Sol)

Cumpre-me dizer-vos, o Rei do Tempo! que desse dia em diante, a imagem sedutora de Astir, com seus olhos lânguidos e bondosos, não abandonava o oásis de meu pensamento.

Uma tarde, afinal, sem poder dominar as minhas inclinações sentimentais, atravessei o rio, fui ter à casa de Ismael Syada e disse-lhe, convicto de uma decisão longamente amadurecida:

- Escuta, ó chamir! Cada um de nós tem o seu Destino. Desejo casar com tua talentosa irmã Astir. Peço-te que a consultes sobre esta proposta. Dentro de três dias estarei de volta para saber a resposta.

E assim foi. Decorrido aquele prazo procurei, novamente, o dedicado chamir Syada. A resposta encheu-me de júbilo o coração: a graciosa viúva concordava em ser minha esposa.

Fazia-se mister fixar a data do casamento. Sugeriu Syada que a cerimônia se realizasse em ambiente de grande simplicidade, que o estado de viuvez da noiva aconselhava modéstia e exigia discrição. Nesse ponto não concordei. Não admiti que se tentasse envolver o meu casamento nesse véu de mistério e segredo, como se nele houvesse o que quer que fosse de irregular ou clandestino. Nada disso. Repeli as hesitações de meu futuro cunhado e deliberei que o ato nupcial se revestisse da maior pompa e se realizasse em ambiente de luxo e alegria.

Há dois amigos ilustres - declarei com orgulho, cuja presença não poderei dispensar. Um deles é o astrônomo El-Moi-zze, conhecedor de todas as estrelas do céu; o outro é Dibil, o Sereno, cantor de todas as belezas da terra!

Enfim, recusei as brandas ponderações de Syada; demoli, com energia, os escrúpulos exagerados de Astir. Prevaleceu, afinal, a minha caprichosa resolução. O casamento seria realizado com excepcional aparato.

No dia marcado (rolava nas alturas o sol de quinta-feira) vesti os meus trajes mais ricos, empavonei-me com um turbante bem vistoso e tomei o rumo da casa de minha noiva. Ao chegar à margem do rio avistei dois barqueiros.

Ofereceu-se um deles para conduzir-me em seu barco redondo de couro, que negrejava na estaca. Recusei, receoso de enfrentar a correnteza do Tigre naquela embarcação primitiva, tosca e grosseira. Preferi fazer a travessia, algum tempo depois. sentado na proa de uma velha barcaça de pescadores. Estou hoje convencido de que essa resolução foi a origem de todas as minhas desgraças.

Vou contá-las.

Ao alcançar as poéticas tamareiras que contornavam a casa pitoresca de Astir, avistei o velho El-Moi-zze, o Astrônomo, que já regressava para a cidade. Saudei-o com expressões de amizade e respeito. O ulemá acercou-se de mim e disse-me com desmedido júbilo:-

 - O teu casamento, ó generoso El-Hadj! vai realizar-se num dia que a ciência destaca dia notável entre os dias!

Fitei-o curioso. As palavras do sábio enchiam-me de vaidosa satisfação.

- Que tem o dia de hoje de notável? - indaguei, olhando sem interesse para o céu azulado e límpido. Respondeu-me o matemático:

- Dentro de poucas horas um eclipse vai toldar a face incomparável do Sol. As trevas virão pesar sobre a terra e a luz fugirá em pleno dia!

- Teremos hoje o espetáculo de um eclipse! -bradei arrebatado. É maravilhoso! O primeiro da minha vida! Vou aproveitar-me dessa coincidência para surpreender os nossos convidados!

Sem perda de tempo fui ter com meu futuro cunhado Ismael Syada e fiz-lhe saber que era meu desejo aguardar o eclipse previsto e calculado pelo astrônomo.

- Faça-se logo esse casamento! - discordou Syada. - Esses cálculos podem enganar o astrônomo e o eclipse falhar!

O argumento pueril do bom chamir fez-me rir. Os astrônomos não erram - disse-lhe. As trevas virão provar. O casamento será realizado depois do eclipse.

Prevaleceu, ainda uma vez, a minha caprichosa e estúpida vontade. Todos os convidados, que enxameavam nas salas, foram informados de que a cerimônia presidida pelo cádi aguardaria que a "grande sombra" descesse sobre a terra.

Impunha-se, aos nossos hóspedes, uma espera que poderia entediar os mais irrequietos. Fui ter com o poeta Dibil e pedi-lhe que distraísse com alguns versos os seus incontáveis admiradores. Figuravam, entre os presentes, vários homens de uma caravana de Basra, que não conheciam Dibil. Esses beduínos ficaram deslumbrados com o talento do jovem. Lembro-me, ainda, de uma pequena poesia, que muito agradou a todos:

As fontes vão para o mar / Os rios vão para o mar /
E os meus desejos sombrios / Para o céu de teu olhar! /
Entanto, as fontes e os rios / Se mudam chegando ao mar /
E os meus desejos sombrios / Desejos hão de ficar!

Súbito, um mossulense que se achava na estrada, correu para a porta, gritando:

- A sombra! A sombra no sol!

Percebia-se, realmente, sobreposta ao disco fulgurante que remontava o firmamento, o recorte negro de uma sombra.

Ia ter início o eclipse. Um rumor surdo rolou como onda que partisse do rio para a majestade do deserto. Os camelos estonteados blateravam: o trissar forte das andorinhas cortou o céu. Estrugiam gritos lancinantes.

Dois ou três beduínos atiraram-se, de bruços, ao chão, e puseram-se a orar fervorosamente:

- Louvado seja Allah, Clemente e Misericordioso! Nós te adoramos, Senhor, e imploramos tua divina assistência...

Cada vez mais intensa e mais pesada descia a sombra, envolvendo o rio, as casas e as montanhas. Ouvia-se o chorar convulsivo dos escravos.

O kheddin encarregado das lâmpadas, numa desesperada ansiedade, corria como um demente de um lado para outro, em busca de isqueiros. Segurei-o pelo braço e disse-lhe golpeado de impaciência:

- Deixa a luz! Não te preocupes com os isqueiros! Essa escuridão passa logo!

Decorridos alguns instantes, o sol voltou a brilhar novamente e as sombras fugiram do céu.

Os caravaneiros bradavam cheios de alegria:

- Iallah! Iallah!

Entrementes corri em busca de meu amigo Syada e disse-lhe:

- Agora, sim! Chama o cádi. Façamos o casamento!

Ao ver a escrava negra de Astir junto à porta, disse-lhe apressado com voz abafada:

- Avisa tua ama! Chegou a hora da cerimônia!

A núbia ocultou o rosto entre as mãos e pôs-se a chorar. Interpelei-a, aflito: Que houve? Que sucedeu com minha arusa?

Com a voz entrecortada pelos soluços, contou-me que Astir, durante o eclipse, havia fugido com o poeta Dibil, o Sereno! Apaixonara-se por ele, ao ouvir- lhe os versos, e não quisera saber mais de mim!

Mais uma vez vinha a fatalidade navalhar-me impiedosamente o coração!

Senti-me aniquilado. A irmã de meu amigo - aquela em que eu tanto confiava - esquecida de seus compromissos e deveres, traíra-me pouco antes do casamento!

Ó raiva! Ó desespero!

Tive ímpeto de espancar o cádi, os convidados e o astrônomo imprudente, que anunciara o eclipse fatal. E tudo por minha culpa! O poeta miserável, que me roubara a noiva e comparecera ao casamento unicamente porque eu fizera empenho em vê-lo entre os convidados!

Rolei esbraseado como um louco pelo chão; arranquei o turbante e rasguei a seda de minha roupa. Cheguei até a perder os sentidos.

Quando despertei daquele abalo tremendo, a casa já estava vazia. Apenas Ismael Syada, o chamir, ficara solidário comigo naquele vexame, naquela imensa desventura...

E o peroleiro Salib, deixando pender desoladamente os braços, concluiu, num desalento:

- Foi assim, ó Príncipe dos Crentes! que transcorreu a minha segunda tentativa de casamento. Da infiel Astir nunca mais tive notícia, mas asseguro que será quase impossível esquecê-la e arrancá-la de meu coração!

Fonte:
TAHAN, Malba. Aventuras do Rei Baribê.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A. A. de Assis (Por um beijo)


Malba Tahan (A roupa esfarrapada)

Ouçamos a surpreendente aventura do valente caravaneiro!

Há quinze anos passados, o meu intransitivo amor às viagens e aventuras levou-me a conduzir uma caravana de mercadores xiitas até a perigosa cidade de Ispahã.

No decurso dessa jornada, tormentosa e áspera, conheci um jovem que se chamava Ozaibe Nássara. Profunda amizade nos ligou desde logo. Raro era o dia em que ele não vinha à minha tenda, onde nos deixávamos ficar longas horas a discretear. Ozaibe era muito pobre, muito fantasioso e original. Os parcos recursos com que vivia, ganhara-os vigiando e cuidando dos camelos de um rico mercador persa.

Confessou-me, certa vez, que o seu grande sonho seria tentar a vida na Índia dos rajás. Nesse país prodigioso, onde os príncipes vivem em palácios deslumbrantes e os templos são adornados com gemas preciosas, ali é fácil conquistar riquezas. Faltavam-lhe, porém, recursos para a viagem. Ofereci-me para auxiliá-lo. Ozaibe aceitou minha proposta sob uma condição. Seríamos como dois sócios numa empresa. Se a viagem fosse bem sucedida e a sorte o favorecesse, repartiríamos irmãmente os lucros; no caso contrário, a dívida desapareceria e eu nada poderia reclamar. Apostado em ser-lhe agradável, concordei com o fantasioso plano e entreguei-lhe todas as minhas economias que, a esse tempo, orçavam em trezentos dinares-ouro.

Partiu Ozaibe para a Índia e dele nunca mais tive notícias. Os anos amontoaram-se no passado e o tempo foi desfiando o seu rosário interminável de sucessos. De quando em vez a lembrança de Ozaibe vinha martelar, como o peso da saudade, em meu pensamento. Pobre amigo! A ambição o levara a um país de idólatras, onde as feras têm menos arreganhos que os homens. Os que ouviam falar no caso riam-se de minha ingenuidade. Só um louco (proclamavam) entrega todos os seus haveres a um aventureiro que parte, sem rumo, pelos caminhos incertos do mundo! Do que fiz por Ozaibe respondia eu aos incréus - não me arrependo. Foi por amizade; está acabado!

Há três dias passados tive uma das grandes surpresas da minha vida. Ao sair do gum em companhia de dois amigos, acercou-se de mim um estrangeiro com ar misterioso.

- És tu o chamir Ismael Syada? - perguntou-me olhando muito firme para mim.

Sim - confirmei um pouco desconfiado. - Que deseja o senhor?

Respondeu o desconhecido com mesuras:

- Venho da Índia e trago-te uma encomenda de teu amigo Ozaide Nássara, o rico senhor de Sirampur. – E entregou-me um embrulho de pano e uma carta.

Aquela mensagem, que eu recebi inesperadamente do peregrino, encheu-me de alegria. Era a primeira notícia do amigo que eu julgava perdido na voragem fanática do Ganges.

A curiosidade estugou-me os passos. Entrando em casa abri o embrulho.

Ó tristíssima desilusão! Ozaibe, que o mensageiro hindu dissera ser o "rico senhor de Sirampur", envia-me, como presente, uma roupa velha, já meio apodrecida e cheia de remendos!

"Em nome de Allah, o Único! De Ozaibe Nássara, de Sirampur, para o seu amigo Ismael Syada, chamir em Mossul. Aqui estou, meu velho amigo, junto ao castelo do rajá de Bradbarad, meu chefe e protetor. Remeto-te, como lembrança, e de acordo com o nosso contrato feito em Ispahã, a primeira roupa que vesti no país dos hindus. Repara que ela tem dez remendos; remendos em toda a parte; são remendos mal feitos; remendos grosseiros; mas esses remendos não me envergonham; são remendos do meu passado. O grande valor da roupa está nos remendos, aquele que vê bem os remendos vê tudo e pode até, pelos remendos, descobrir a vida e o segredo de uma pessoa. Que Allah derrame sobre o meu amigo todas as bênçãos. Uassalã".

Fiquei estarrecido. Já pensava em livrar-me dos sórdidos andrajos atirando-os ao rio, quando surgiu minha irmã Astir.

Astir é viúva e mora comigo. Ouço, frequentemente, os seus conselhos, pois ela é muito sensata e inteligente.

Minha irmã leu e releu atentamente a carta e disse-me, por fim:

- Há grande mistério nisto. O teu amigo, nesta carta, repete nove vezes a palavra "remendo" e afirma que os trapos contêm dez remendos. Ora, quem de dez tira nove fica com um! Há, portanto, na roupa velha, um remendo de sobejo.

O raciocínio de Astir pareceu-me engenhoso. De dez tirando nove fica um! O cálculo estava certo, e o exame minucioso a que procedemos nos trapos de Ozaibe veio provar que as previsões de Astir estavam tão certas como aquela conta! Com efeito. Entre as dobras sujíssimas do pano, bem oculta no meio de um remendo grosseiro, encontramos essa pedrinha vermelha!

Aquela gema era o presente que o dedicado e fiel Ozaibe fazia chegar às minhas mãos.

Resolvi desfazer-me da pedra. Qual seria o seu valor? Ignorava-o por completo.

Aquele joalheiro magro, de cicatriz na testa, é o mais rico de Mossul. Trouxe-o aqui para examinar a pedrinha indiana.

Virou, olhou, calculou e disse-me por fim em tom depreciativo:-

- É um rubi comum da Índia. Pago por ele trinta dinares!

Fui consultar Astir. Escondida no vão de uma porta, ela estivera observando todas as atitudes do joalheiro.

- Não vendas por esse preço - declarou. - O rubi deve valer mais!

- Valer mais, por quê? - indaguei irrefletidamente.

Explicou-me Astir, sorridente e maliciosa:

Vi o mercador limpar três vezes os dedo no turbante!

Voltei à sala e declarei ao joalheiro que não faria a transação. O homem, depois de meditar algum tempo, aumentou a oferta.

- Pago pela pedra cinquenta e dois dinares!

Mais uma vez fui ouvir a opinião de Astir.

- Não vendas - retorquiu minha irmã. - A pedra deve valer mais! Observei que o homem fazia cálculos até com os dedos da mão esquerda!

Aquela razão calou-me no espírito. Recusei a nova proposta e o joalheiro retirou-se contrariado, dando a entender que não pagaria pelo rubi quantia mais elevada.

No dia seguinte, porém, voltou e propôs pagar-me setenta dinares.

Fui, ainda uma vez, ouvir o parecer de Astir.

- Não vendas, ó Ismael - declarou minha irmã. - O teu rubi deve valer muito mais! O joalheiro atravessou o rio num barco de couro! Essa temeridade ele não a praticaria se a pedra não fosse de grande valor!

Achei razoável a observação e recusei, decidido, a nova proposta.

Hoje, finalmente, pouco antes de iniciar a festa, o joalheiro voltou a insistir. Oferecia cento e quarenta dinares pelo rubi indiano.

Corri a Astir e disse-lhe entusiasmado:

- Agora, sim! O homem já está mais generoso. Presumo que deveríamos fechar o negócio!

- Não vendas! - acudiu logo minha irmã... - Pois não reparaste que ele passou de setenta para cento e quarenta! Dobrou a oferta! Quando o comprador dobra a oferta, a mercadoria na certa vale muito mais!

- Ó Astir! - exclamei - os motivos em que baseias as tuas opiniões são mais incertos que o rumo de uma folha levada pelo vento. Na marcha em que vamos, ó Astir, jamais conseguirei fechar negócio com esse rubi!

Astir atalhou aquela observação sorrindo:

- Se julgas que estou exagerando, consulta o teu amigo Salib, o peroleiro!

- Para atender a essa sugestão de Astir, resolvi ouvir a tua opinião. Eu fui por ti, ó Salib! informado de que esta pedrinha (que o joalheiro avalia em cento e poucos dinares) é um diamante vermelho de alto valor!

Quando Ismael Syada concluiu sua curiosa narrativa, o erudito El-Moizze, o astrônomo, que tudo ouvira com religiosa atenção, disse, muito sério:

- A tua irmã, ó chamir! deve ser dotada de um talento excepcional! Por Allah! Gostaria de consultá-la, agora, acerca de um interessante problema!

Respondeu Syada:

- Vou chamá-la. Ela, decerto, não se recusará a vir cá. Ambos são meus amigos e Astir sabe ser reconhecida a quem me auxilia!

Nesse momento abriu-se a porta e vimos surgir uma jovem risonha e encantadora, que se dirigiu para nós com o rosto inteiramente descoberto.

Era Astir, a viúva, irmã do chamir Syada. Seu perfil era fino, sua face branda; os cabelos escuros caiam-lhe sobre os ombros. Os seus olhos formosamente negros, perturbadores, envolveram-me numa onda de luz.

- Louvado seja o Onipotente, que tanta beleza criou para encanto de nossa vida!

Senti, naquele momento, que a caravana da minha existência ia tomar novo rumo pelos caminhos de Allah!

O encontro da inteligente viuvinha com o sábio astrônomo foi o episódio dos mais curiosos a que tenho assistido em minha vida. Não posso narrá-lo para não alongar demais esta narrativa.

Ao romper do “koddar” (o nascer do sol), deixei a casa de meu amigo Ismael Syada.

Era a hora da primeira prece.

continua...

Fonte:
TAHAN, Malba. Aventuras do Rei Baribê.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Andrezza Rangel Sardenberg (Imagem Perdida)


Malba Tahan (O rubi sem valor)

Tão desolado me deixou o triste e vergonhoso desfecho de meu casamento que resolvi, naquele mesmo dia, abandonar para sempre a atraente e luminosa Damasco. Recalcando meu desengano, vendi a torto e a direito pérolas e colares, liquidei de afogadilho os meus negócios e alistei-me em uma poderosa caravana que demandava as férteis e ambicionadas colinas de Haleb.

Encantaram-me nessa cidade, coroada por sete repousantes oásis, os seus khãs (mercados) barulhentos, onde se reúnem, nas horas mais quentes do dia, milhares de mercadores e aventureiros, sendo que estes, a meu ver, são menos perigosos do que aqueles.

De Haleb, onde permanecemos dois sábados seguimos em nossos possantes camelos para Urhai, cujas ruínas históricas ou sagradas me deixaram indiferentes. Três dias depois, paramos em Amida, a célebre fortaleza, mais temerosa pelas febres que a assolam do que pelas tropas que a defendem.

Findo um rápido e intranquilo descanso em Amida, partimos para Mossul, seguindo a esteira sinuosa do Tigre. Decorridas duas semanas e meia, batemos às portas de Mossul, onde fomos recebidos com cativantes manifestações de alegria.

Durante essa longa e fatigante viagem, marchetada de memoráveis acidentes e aventuras, ofereceu-me o Destino oportunidade de salvar a vida do nosso dedicado chamir Ismael Syada. Esse episódio ocorreu durante um conflito perigoso com os fanáticos da tribo dos Iezides.

Ismael Syada, homem leal e generoso, residia, com a família, em Mossul. Ali conquistara incontáveis amizades e dedicações. Quando o procurei para uma palestra nas despedidas, depois de olhar-me longo tempo, disse-me:

- Não posso nem devo afastar-me de ti, meu amigo, sem deixar bem gravada, em teu espírito, a certeza de minha gratidão. Vou, pois, oferecer-te, dentro de poucos dias, em minha casa, uma festa, à qual estarão presentes todos os nossos bons camaradas de Mossul.

Aquela generosa deferência fez vibrar-me as cordas da lisonja.

Decorridas duas semanas, fui pela manhã avisado de que o sarau oferecido pelo chamir teria lugar naquele dia, depois da última prece.

A casa de Ismael Syada erguia-se na outra margem do rio, num recanto pitoresco, entre árvores ramalhudas, muito além de um arruinado caravançará a que os árabes chamavam chistosamente Ra-abak (pescoço).

As sombras da noite punham seus arabescos arroxeados sobre as almenaras de Mossul, quando avistei a acolhedora ezbah (habitação) de Ismael.

O chamir, com uma dezena de amigos, veio radiante.

- Seja bem vindo; duas vezes bem vindo.

À minha chegada, tiveram início os folguedos daquela noite encantadora. Alguns rapazes de Mossul executaram magnífico concerto de tambores. Deleitaram-nos, em seguida, com várias canções do deserto.

Aos alegres convivas da festa eram oferecidos peixe frito, frutas, haleu seca, tâmaras secas e uma deliciosa bebida feita com suco de uva e limão.

Entre os convidados de Syada destacavam-se dois homens, cujos nomes se sublinhavam entre os notáveis de Mossul. Um deles - o velho El-Moi-zze - era astrônomo e matemático de fama; o outro, muito moço ainda, de face rapada, apelidado Dibil, o Sereno, era poeta de invejável popularidade. Enquanto o primeiro calculava distâncias, o outro olhava, em deliciosos poemas, a beleza da terra e os encantos do Amor e da Vida.

Em dado momento o preclaro ulemá El-Moi-zze, havendo-se posto de pé, depois de pedir a atenção de todos os convivas, formulou uma interessante proposta:

- Por Allah! Em homenagem ao valente mercador Abd-el-Salib, a quem deve a vida o nosso dedicado amigo Ismael Syada, vamos todos olhar para um ponto do céu!

Proferidas tais palavras deixou a sala e encaminhou-se, com largas e soleníssimas passadas, para um pátio fronteiro à casa. Todos o acompanharam. Fui, igualmente, levado para ali.

A noite dormia calma e silenciosa. Sobre nossas cabeças se desdobrava o véu do universo. As incontáveis constelações faziam rolar pelos areais da imensidão caravanas de mundos luminosos.

O ulemá ergueu o braço e apontou para um ponto do céu.

- Canopo! Canopo! (uma estrela de primeira grandeza) – bradou. - Consagremos a luz daquela estrela à felicidade do nosso amigo!

Todos permaneceram em silêncio, os olhos fitos no astro que refulgia na amplidão.

Encantou-me a delicada e original homenagem. Daquele momento em diante, para todos os muçulmanos ali presentes, o meu nome ficaria eternamente no céu profundo, preso à luz de Canopo!

Decorridos alguns instantes, o astrônomo El-Moi-zze pediu ao poeta Dibil, o Sereno, que declamasse alguns versos.

Sentamo-nos em roda, no chão. Dibil, proferidas as palavras do ritual, começou uma cantiga meio alegre e meio plangente.

Meu coração é moinho / De vento, mas singular / Que anda presto, ou mansinho, / conforme a vida lhe andar.
Mói de noite, mói de dia, / mói e remói sem cessar; / mói às pressas, na alegria; / na tristeza, devagar.

Estava eu distraído a ouvir os versos do jovem Dibil, quando me tocaram, de leve, no ombro. Voltei-me, rápido. Era o chamir Syada. Inclinou-se e disse-me quase em segredo:

- Levanta-te daí! Vem comigo! Preciso de ti para esclarecer uma dúvida.

Levou-me o bom chamir para uma saleta cheia de luz, isolada no fundo da casa. Ali, já se achavam o astrônomo El-Moi-zze e um homem magro, nervoso, mal-encarado, cujo nome arrevesado não consegui decorar. Em sua cara ulcerada de vícios, avultava uma cicatriz escura que, partindo do meio da testa, vinha-lhe, em curva, até a ponta do nariz hebraizante.

Quando entrei, o matemático sustinha na palma da mão uma pequenina pedra e examinava-a com vivo empenho.

- Aprecia esta beleza! - disse com entusiasmo o chamir recebendo a gema do astrônomo e depositando-a na minha mão. Sei que és grande conhecedor de preciosidades! Quanto vale este rubi?

E apontando para o magricela da cicatriz, acrescentou risonho:

- Este nosso amigo, joalheiro de Mossul, oferece por ele cento e quarenta dinares! Não concordei com o preço e quero ouvir a tua avaliação.

Era uma pedra vermelha do tamanho de uma sementinha. Revirei-a, lentamente, entre os dedos. O chamir olhava interrogativamente para mim, seguindo muito atento todos os meus gestos. Disse-lhe, por fim, muito sério:

- Julgo que estás iludido, meu amigo. Esta pedra, como rubi, não vale nem cinco dinares!

O joalheiro expediu uma risadinha triunfante. Syada, muito pálido, mostrou, nos olhos arregalados, um espanto inconcebível.

Em matéria de pedras preciosas tinha o chamir a minha autoridade em conta de infalível. A baixa avaliação (reduzida a menos de cinco dinares) de uma pedra para a qual já haviam oferecido cento e quarenta, representava para ele um golpe tremendo.

- Nem cinco dinares? - inquiriu sucumbido. E insistiu, aflito, desolado:

- Examina bem! Vê como é bonita!

- Espera, ó chamir! - retorqui. - Disse-te que esta pedra, "como rubi", não vale nem cinco dinares.

E repeti, sublinhando bem as palavras:

-  Como rubi! Ouviste?

E para livrá-lo da aflição que o torturava, ajuntei com absoluta segurança:

- É simples a razão do meu dito. Esta pedra não é rubi. É um diamante vermelho, que valerá, no mínimo, oito mil dinares!

- É mentira! - grunhiu subitamente enfurecido o homem da cicatriz. E com revoltante estouvamento empurrou-me num repelão, e retirou-se da sala pisando forte como um elefante.

Fez o chamir o gesto de sair em perseguição do desaforado joalheiro para puni-lo severamente. Contive-o.

- Deixa-o em paz - aconselhei. - A perda inesperada de um bom negócio alucina o ambicioso sem escrúpulos. Queria comprar por meio dinar a joia que sabia valer mais de cem! Dize-me    ó chamir! Como te veio às mãos esta pedra tão rara?

Respondeu-me Syada, com expressão de orgulho: - Foi minha irmã Astir quem a descobriu pelo cálculo, em dez remendos de uma roupa velha!

Encarei-o com assombro.

O velho astrônomo, a meu lado, esboçou um riso de incredulidade. Quem realmente poderia aceitar, como verdadeira, aquela informação do chamir? Como seria possível descobrir, com o socorro dos números, um precioso diamante vermelho perdido nos remendos de um fato velho?

- A origem desta pedra — esclareceu Syada rindo astutamente - está ligada a um dos episódios memoráveis de minha vida.

E contou-me um caso tão impressionante, que bem pudera figurar entre as lendas prodigiosas do País dos Árabes.

continua...

Fonte:
TAHAN, Malba. Aventuras do Rei Baribê.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Amilton Maciel Monteiro (Íntimas Indagações)


Alexandre Herculano (O profeta)

O Guadamelato é uma Ribeira que, descendo das solidões mais distantes da Serra Morena, vem, através de um território montanhoso e selvático, desaguar no Guadalquivir, pela margem direita, pouco acima de Córdova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma densa população: foi nas eras do domínio sarraceno em Espanha. Desde o governo do amir Abul-Khatar o distrito de Córdova fora distribuído às tribos árabes do Iemem e da Síria, as mais nobres e mais numerosas entre todas as raças da África e da Ásia que tinham vindo residir na Península por ocasião da conquista ou depois dela. Às famílias que se estabeleceram naquelas encostas meridionais das longas serranias chamadas pelos antigos Montes Marianos conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos povos pastores. Assim, no meado do décimo século, posto que esse distrito fosse assaz povoado, o seu aspecto assemelhava-se ao de um deserto; porque nem se descortinavam por aqueles cabeços e vales vestígios alguns de cultura, nem alvejava uni único edifício no meio das colinas rasgadas irregularmente pelos algares das torrentes ou cobertas de selvas bravias e escuras. Apenas, um ou outro dia, se enxergava na extrema de algum almargem virente a tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria ali, se, porventura, se buscasse.

Havia, contudo, povoações fixas naqueles ermos; havia habitações humanas, porém não de vivos. Os árabes colocavam os cemitérios nos lugares mais saudosos dessas solidões, nos pendores meridionais dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se, estirasse de soslaio os seus últimos raios pelas lájeas lisas das campas, por entre os raminhos floridos das sarças açoitadas do vento. Era ali que, depois do vaguear incessante de muitos anos, eles vinham deitar-se mansamente uns ao pé dos outros, para dormirem o longo sono sacudido sobre as suas pálpebras das asas do anjo Asrael.

A raça árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família humana, gostava de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos suntuosos, do cativeiro e da imobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independência ilimitada durante a vida.

No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do Guadamelato para o Nordeste, estava assentado um desses cemitérios pertencentes à tribo Iemenita dos Benu-Homair. Subindo pelo rio viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas, como vasto estendal, e três únicas palmeiras, plantadas na coroa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemitério Al-tamarah. Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da natureza, que nem sempre a ciência sabe explicar; era um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter sido posto ali pelos esforços de centenares de homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta espécie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horizontes.

Era um dia à tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras principiavam do lado do Leste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular, um árabe dos Benu-Homair, armado da sua comprida lança, volvia olhos atentos, ora para o lado do Norte, ora para o de Oeste: depois, sacudia a cabeça com um sinal negativo, inclinando-se para o lado oposto da grande pedra.

Quatro sarracenos estavam ali, também, assentados em diversas posturas e em silêncio, o qual só era interrompido por algumas palavras rápidas, dirigidas ao da lança, a que ele respondia sempre do mesmo modo com o seu menear de cabeça.

"Al-barr”, - disse, por fim, um dos sarracenos, cujo trajo e gesto indicavam uma grande superioridade sobre os outros – “parece que o caide de Chantaryn esqueceu a sua injúria, como o wali de Zarkosta a sua ambição de independência. Até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos por meu pai, não podem acreditar que Abdallah realize as promessas que me induziste a fazer-lhes."

"Amir Al-melek - replicou Al-barr - ainda não é tarde: os mensageiros podem ter sido retidos por algum sucesso imprevisto. Não creias que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente no coração humano. Dize, Al-athar, não te juraram eles pela santa Kaaba que os enviados com a notícia da sua rebelião e da entrada dos cristãos chegariam hoje a este lugar aprazado, antes de anoitecer?”

"Juraram - respondeu Al-athar - mas que fé merecem homens que não duvidam de quebrar as promessas solenes feitas ao califa e, além disso, de abrir o caminho aos infiéis para derramar o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem as esperanças que pões nos teus ocultos aliados. Oxalá não tivesse de tingir o sangue as ruas de Kórthoba, e não houvera de ser o supedâneo do trono que ambicionas o túmulo de teu irmão!"

Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quisesse esconder a sua amargura. Abdallah parecia comovido por duas paixões opostas. Depois de se conservar algum tempo em silêncio, exclamou:

"Se os mensageiros dos levantados não chegarem até o anoitecer, não falemos mais nisso. Meu irmão Al-hakem acaba de ser reconhecido sucessor do califado: eu próprio o aceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter convosco. Se o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassidéh e que não soubeste acabar, como aquela que debalde tentaste repetir na presença dos embaixadores do Frandjat, e que foi causa de caíres no desagrado de meu pai e de Al-hakem e de conceberes esse ódio que alimentas contra eles, o mais terrível ódio deste mundo, o do amor-próprio ofendido."

Ahmed Al-athar e o outro árabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os olhos, porém, de Al-barr faiscaram de cólera.

"Pagas mal, Abdallah - disse ele com a voz presa na garganta – os riscos que tenho corrido para te obter a herança do mais belo e poderoso Império do Islão. Pagas com alusões afrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te pôr na tua uma coroa. És filho de teu pai!... Não importa. Só te direi que é já tarde para o arrependimento. Pensas, acaso, que uma conspiração sabida de tantos ficará oculta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que hás de encontrar o abismo!”

No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se advertia o príncipe da arriscada empresa de disputar a coroa a seu irmão Alhakem.

Um grito, porém, do atalaia o interrompeu. Ligeiro como relâmpago, um vulto saíra do cemitério, galgara o cabeço e se aproximara sem ser sentido: vinha envolto num albornoz escuro, cujo capuz quase lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo e arrancaram as espadas.

Ao ver aquele movimento, o que chegara não fez mais do que estender para eles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as espadas baixaram-se, como se corrente elétrica tivesse adormecido os braços dos quatro sarracenos. Albarr exclamara:

 -"Al-muulin o profeta ! Al-muulin o santo!..."

"Al-muulin o pecador - interrompeu o novo personagem -; Almuulin, o pobre fakih penitente e quase cego de chorar as próprias culpas e as culpas dos homens, mas a quem Deus, por isso, ilumina, às vezes, os olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo dos corações. Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O Senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e a teu irmão Al-hakem. Ele foi achado mais leve. A ti o trono; a ele o sepulcro. Está escrito. Vai; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kórthoba. Entra no teu palácio Merwan; é o palácio dos califas da tua dinastia. Não foi sem mistério que teu pai to deu por morada. Sobe ao sótão da torre. Ali acharás cartas do caide de Chantaryn e delas verás que nem ele, nem o wali de Zarkosta nem os Benu-Hafsun faltam ao que te juraram!"

"Santo fakih - replicou Abdallah, crédulo, como todos os muçulmanos daqueles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado - creio o que dizes, porque nada para ti é oculto. O passado, o presente, o futuro, os dominas com a tua inteligência sublime. Asseguras-me o triunfo; mas o perdão do crime podes tu assegurá-lo?"

"Verme, que te crês livre! - atalhou com voz solene o fakih. - Verme, cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frágeis instrumentos nas mãos do destino, e que te crês autor de um crime! Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o guerreiro, pede ela, acaso, a Deus perdão do seu pecado? Átomo varrido pela cólera de cima contra outro átomo, que vais aniquilar, pergunta, antes, se nos tesouros do Misericordioso há perdão para o orgulho insensato!"

Fez então uma pausa. A noite descia rápida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que apontava para as bandas de Córdova. Nesta postura, a figura do fakih fascinava. Coando pelos lábios as sílabas, ele repetiu três vezes:

"Para Merwan!"

Abdallah abaixou a cabeça e partiu vagarosamente, sem olhar para trás. Os outros sarracenos seguiram-no. Al-muulin ficou só.

Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Córdova; se vivêsseis, porém, naquela época e o perguntásseis nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, ninguém vo-lo saberia dizer. Era um mistério a sua pátria, a sua raça, donde viera. Passava a vida pelos cemitérios ou nas mesquitas. Para ele o ardor da canícula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que não fosse lavado em lágrimas. Fugia das mulheres, como de um objeto de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado ou, antes, temido, era o dom de profecia, o qual ninguém lhe disputava. Mas era um profeta terrível, porque as suas predições recaíam unicamente sobre futuros males. No mesmo dia em que nas fronteiras do império os cristãos faziam alguma correria ou destruíam alguma povoação, ele anunciava publicamente o sucesso nas praças de Córdova.

Qualquer membro da família numerosa dos Benu-Umeyyas caía debaixo do punhal de um assassino desconhecido, na mais remota província do império, ainda das do Moghreb ou Mauritânia, na mesma hora, no mesmo instante, às vezes, ele o pranteava, redobrando os seus choros habituais. O terror que inspirava era tal, que, no meio de um tumulto popular, a sua presença bastava para fazer cair tudo em mortal silêncio. A imaginação exaltada do povo tinha feito dele um santo, santo como o islamismo os concebia; isto é, como um homem cujas palavras e cujo aspecto gelavam de terror.

Ao passar por ele, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quase imperceptível:

"Salvaste-me!"

O fakih deixou-o afastar e, fazendo um gesto de profundo desprezo, murmurou:

"Eu?! Eu, teu cúmplice, miserável?!"

Depois, levantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os dedos rapidamente e, rindo com um rir sem vontade, exclamou:

"Pobres títeres!"

Quando se fartou de representar com os dedos a ideia de escárnio que lhe sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemitério, também para as bandas de Córdova, mas por diverso atalho.

Fonte: 
HERCULANO, Alexandre. O Alcaide de Santarém. excerto