Tão desolado me deixou o triste e vergonhoso desfecho de meu casamento que resolvi, naquele mesmo dia, abandonar para sempre a atraente e luminosa Damasco. Recalcando meu desengano, vendi a torto e a direito pérolas e colares, liquidei de afogadilho os meus negócios e alistei-me em uma poderosa caravana que demandava as férteis e ambicionadas colinas de Haleb.
Encantaram-me nessa cidade, coroada por sete repousantes oásis, os seus khãs (mercados) barulhentos, onde se reúnem, nas horas mais quentes do dia, milhares de mercadores e aventureiros, sendo que estes, a meu ver, são menos perigosos do que aqueles.
De Haleb, onde permanecemos dois sábados seguimos em nossos possantes camelos para Urhai, cujas ruínas históricas ou sagradas me deixaram indiferentes. Três dias depois, paramos em Amida, a célebre fortaleza, mais temerosa pelas febres que a assolam do que pelas tropas que a defendem.
Findo um rápido e intranquilo descanso em Amida, partimos para Mossul, seguindo a esteira sinuosa do Tigre. Decorridas duas semanas e meia, batemos às portas de Mossul, onde fomos recebidos com cativantes manifestações de alegria.
Durante essa longa e fatigante viagem, marchetada de memoráveis acidentes e aventuras, ofereceu-me o Destino oportunidade de salvar a vida do nosso dedicado chamir Ismael Syada. Esse episódio ocorreu durante um conflito perigoso com os fanáticos da tribo dos Iezides.
Ismael Syada, homem leal e generoso, residia, com a família, em Mossul. Ali conquistara incontáveis amizades e dedicações. Quando o procurei para uma palestra nas despedidas, depois de olhar-me longo tempo, disse-me:
- Não posso nem devo afastar-me de ti, meu amigo, sem deixar bem gravada, em teu espírito, a certeza de minha gratidão. Vou, pois, oferecer-te, dentro de poucos dias, em minha casa, uma festa, à qual estarão presentes todos os nossos bons camaradas de Mossul.
Aquela generosa deferência fez vibrar-me as cordas da lisonja.
Decorridas duas semanas, fui pela manhã avisado de que o sarau oferecido pelo chamir teria lugar naquele dia, depois da última prece.
A casa de Ismael Syada erguia-se na outra margem do rio, num recanto pitoresco, entre árvores ramalhudas, muito além de um arruinado caravançará a que os árabes chamavam chistosamente Ra-abak (pescoço).
As sombras da noite punham seus arabescos arroxeados sobre as almenaras de Mossul, quando avistei a acolhedora ezbah (habitação) de Ismael.
O chamir, com uma dezena de amigos, veio radiante.
- Seja bem vindo; duas vezes bem vindo.
À minha chegada, tiveram início os folguedos daquela noite encantadora. Alguns rapazes de Mossul executaram magnífico concerto de tambores. Deleitaram-nos, em seguida, com várias canções do deserto.
Aos alegres convivas da festa eram oferecidos peixe frito, frutas, haleu seca, tâmaras secas e uma deliciosa bebida feita com suco de uva e limão.
Entre os convidados de Syada destacavam-se dois homens, cujos nomes se sublinhavam entre os notáveis de Mossul. Um deles - o velho El-Moi-zze - era astrônomo e matemático de fama; o outro, muito moço ainda, de face rapada, apelidado Dibil, o Sereno, era poeta de invejável popularidade. Enquanto o primeiro calculava distâncias, o outro olhava, em deliciosos poemas, a beleza da terra e os encantos do Amor e da Vida.
Em dado momento o preclaro ulemá El-Moi-zze, havendo-se posto de pé, depois de pedir a atenção de todos os convivas, formulou uma interessante proposta:
- Por Allah! Em homenagem ao valente mercador Abd-el-Salib, a quem deve a vida o nosso dedicado amigo Ismael Syada, vamos todos olhar para um ponto do céu!
Proferidas tais palavras deixou a sala e encaminhou-se, com largas e soleníssimas passadas, para um pátio fronteiro à casa. Todos o acompanharam. Fui, igualmente, levado para ali.
A noite dormia calma e silenciosa. Sobre nossas cabeças se desdobrava o véu do universo. As incontáveis constelações faziam rolar pelos areais da imensidão caravanas de mundos luminosos.
O ulemá ergueu o braço e apontou para um ponto do céu.
- Canopo! Canopo! (uma estrela de primeira grandeza) – bradou. - Consagremos a luz daquela estrela à felicidade do nosso amigo!
Todos permaneceram em silêncio, os olhos fitos no astro que refulgia na amplidão.
Encantou-me a delicada e original homenagem. Daquele momento em diante, para todos os muçulmanos ali presentes, o meu nome ficaria eternamente no céu profundo, preso à luz de Canopo!
Decorridos alguns instantes, o astrônomo El-Moi-zze pediu ao poeta Dibil, o Sereno, que declamasse alguns versos.
Sentamo-nos em roda, no chão. Dibil, proferidas as palavras do ritual, começou uma cantiga meio alegre e meio plangente.
Meu coração é moinho / De vento, mas singular / Que anda presto, ou mansinho, / conforme a vida lhe andar.
Mói de noite, mói de dia, / mói e remói sem cessar; / mói às pressas, na alegria; / na tristeza, devagar.
Estava eu distraído a ouvir os versos do jovem Dibil, quando me tocaram, de leve, no ombro. Voltei-me, rápido. Era o chamir Syada. Inclinou-se e disse-me quase em segredo:
- Levanta-te daí! Vem comigo! Preciso de ti para esclarecer uma dúvida.
Levou-me o bom chamir para uma saleta cheia de luz, isolada no fundo da casa. Ali, já se achavam o astrônomo El-Moi-zze e um homem magro, nervoso, mal-encarado, cujo nome arrevesado não consegui decorar. Em sua cara ulcerada de vícios, avultava uma cicatriz escura que, partindo do meio da testa, vinha-lhe, em curva, até a ponta do nariz hebraizante.
Quando entrei, o matemático sustinha na palma da mão uma pequenina pedra e examinava-a com vivo empenho.
- Aprecia esta beleza! - disse com entusiasmo o chamir recebendo a gema do astrônomo e depositando-a na minha mão. Sei que és grande conhecedor de preciosidades! Quanto vale este rubi?
E apontando para o magricela da cicatriz, acrescentou risonho:
- Este nosso amigo, joalheiro de Mossul, oferece por ele cento e quarenta dinares! Não concordei com o preço e quero ouvir a tua avaliação.
Era uma pedra vermelha do tamanho de uma sementinha. Revirei-a, lentamente, entre os dedos. O chamir olhava interrogativamente para mim, seguindo muito atento todos os meus gestos. Disse-lhe, por fim, muito sério:
- Julgo que estás iludido, meu amigo. Esta pedra, como rubi, não vale nem cinco dinares!
O joalheiro expediu uma risadinha triunfante. Syada, muito pálido, mostrou, nos olhos arregalados, um espanto inconcebível.
Em matéria de pedras preciosas tinha o chamir a minha autoridade em conta de infalível. A baixa avaliação (reduzida a menos de cinco dinares) de uma pedra para a qual já haviam oferecido cento e quarenta, representava para ele um golpe tremendo.
- Nem cinco dinares? - inquiriu sucumbido. E insistiu, aflito, desolado:
- Examina bem! Vê como é bonita!
- Espera, ó chamir! - retorqui. - Disse-te que esta pedra, "como rubi", não vale nem cinco dinares.
E repeti, sublinhando bem as palavras:
- Como rubi! Ouviste?
E para livrá-lo da aflição que o torturava, ajuntei com absoluta segurança:
- É simples a razão do meu dito. Esta pedra não é rubi. É um diamante vermelho, que valerá, no mínimo, oito mil dinares!
- É mentira! - grunhiu subitamente enfurecido o homem da cicatriz. E com revoltante estouvamento empurrou-me num repelão, e retirou-se da sala pisando forte como um elefante.
Fez o chamir o gesto de sair em perseguição do desaforado joalheiro para puni-lo severamente. Contive-o.
- Deixa-o em paz - aconselhei. - A perda inesperada de um bom negócio alucina o ambicioso sem escrúpulos. Queria comprar por meio dinar a joia que sabia valer mais de cem! Dize-me ó chamir! Como te veio às mãos esta pedra tão rara?
Respondeu-me Syada, com expressão de orgulho: - Foi minha irmã Astir quem a descobriu pelo cálculo, em dez remendos de uma roupa velha!
Encarei-o com assombro.
O velho astrônomo, a meu lado, esboçou um riso de incredulidade. Quem realmente poderia aceitar, como verdadeira, aquela informação do chamir? Como seria possível descobrir, com o socorro dos números, um precioso diamante vermelho perdido nos remendos de um fato velho?
- A origem desta pedra — esclareceu Syada rindo astutamente - está ligada a um dos episódios memoráveis de minha vida.
E contou-me um caso tão impressionante, que bem pudera figurar entre as lendas prodigiosas do País dos Árabes.
continua...
Fonte:
TAHAN, Malba. Aventuras do Rei Baribê.
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