Cumpre-me dizer-vos, o Rei do Tempo! que desse dia em diante, a imagem sedutora de Astir, com seus olhos lânguidos e bondosos, não abandonava o oásis de meu pensamento.
Uma tarde, afinal, sem poder dominar as minhas inclinações sentimentais, atravessei o rio, fui ter à casa de Ismael Syada e disse-lhe, convicto de uma decisão longamente amadurecida:
- Escuta, ó chamir! Cada um de nós tem o seu Destino. Desejo casar com tua talentosa irmã Astir. Peço-te que a consultes sobre esta proposta. Dentro de três dias estarei de volta para saber a resposta.
E assim foi. Decorrido aquele prazo procurei, novamente, o dedicado chamir Syada. A resposta encheu-me de júbilo o coração: a graciosa viúva concordava em ser minha esposa.
Fazia-se mister fixar a data do casamento. Sugeriu Syada que a cerimônia se realizasse em ambiente de grande simplicidade, que o estado de viuvez da noiva aconselhava modéstia e exigia discrição. Nesse ponto não concordei. Não admiti que se tentasse envolver o meu casamento nesse véu de mistério e segredo, como se nele houvesse o que quer que fosse de irregular ou clandestino. Nada disso. Repeli as hesitações de meu futuro cunhado e deliberei que o ato nupcial se revestisse da maior pompa e se realizasse em ambiente de luxo e alegria.
Há dois amigos ilustres - declarei com orgulho, cuja presença não poderei dispensar. Um deles é o astrônomo El-Moi-zze, conhecedor de todas as estrelas do céu; o outro é Dibil, o Sereno, cantor de todas as belezas da terra!
Enfim, recusei as brandas ponderações de Syada; demoli, com energia, os escrúpulos exagerados de Astir. Prevaleceu, afinal, a minha caprichosa resolução. O casamento seria realizado com excepcional aparato.
No dia marcado (rolava nas alturas o sol de quinta-feira) vesti os meus trajes mais ricos, empavonei-me com um turbante bem vistoso e tomei o rumo da casa de minha noiva. Ao chegar à margem do rio avistei dois barqueiros.
Ofereceu-se um deles para conduzir-me em seu barco redondo de couro, que negrejava na estaca. Recusei, receoso de enfrentar a correnteza do Tigre naquela embarcação primitiva, tosca e grosseira. Preferi fazer a travessia, algum tempo depois. sentado na proa de uma velha barcaça de pescadores. Estou hoje convencido de que essa resolução foi a origem de todas as minhas desgraças.
Vou contá-las.
Ao alcançar as poéticas tamareiras que contornavam a casa pitoresca de Astir, avistei o velho El-Moi-zze, o Astrônomo, que já regressava para a cidade. Saudei-o com expressões de amizade e respeito. O ulemá acercou-se de mim e disse-me com desmedido júbilo:-
- O teu casamento, ó generoso El-Hadj! vai realizar-se num dia que a ciência destaca dia notável entre os dias!
Fitei-o curioso. As palavras do sábio enchiam-me de vaidosa satisfação.
- Que tem o dia de hoje de notável? - indaguei, olhando sem interesse para o céu azulado e límpido. Respondeu-me o matemático:
- Dentro de poucas horas um eclipse vai toldar a face incomparável do Sol. As trevas virão pesar sobre a terra e a luz fugirá em pleno dia!
- Teremos hoje o espetáculo de um eclipse! -bradei arrebatado. É maravilhoso! O primeiro da minha vida! Vou aproveitar-me dessa coincidência para surpreender os nossos convidados!
Sem perda de tempo fui ter com meu futuro cunhado Ismael Syada e fiz-lhe saber que era meu desejo aguardar o eclipse previsto e calculado pelo astrônomo.
- Faça-se logo esse casamento! - discordou Syada. - Esses cálculos podem enganar o astrônomo e o eclipse falhar!
O argumento pueril do bom chamir fez-me rir. Os astrônomos não erram - disse-lhe. As trevas virão provar. O casamento será realizado depois do eclipse.
Prevaleceu, ainda uma vez, a minha caprichosa e estúpida vontade. Todos os convidados, que enxameavam nas salas, foram informados de que a cerimônia presidida pelo cádi aguardaria que a "grande sombra" descesse sobre a terra.
Impunha-se, aos nossos hóspedes, uma espera que poderia entediar os mais irrequietos. Fui ter com o poeta Dibil e pedi-lhe que distraísse com alguns versos os seus incontáveis admiradores. Figuravam, entre os presentes, vários homens de uma caravana de Basra, que não conheciam Dibil. Esses beduínos ficaram deslumbrados com o talento do jovem. Lembro-me, ainda, de uma pequena poesia, que muito agradou a todos:
As fontes vão para o mar / Os rios vão para o mar /
E os meus desejos sombrios / Para o céu de teu olhar! /
Entanto, as fontes e os rios / Se mudam chegando ao mar /
E os meus desejos sombrios / Desejos hão de ficar!
Súbito, um mossulense que se achava na estrada, correu para a porta, gritando:
- A sombra! A sombra no sol!
Percebia-se, realmente, sobreposta ao disco fulgurante que remontava o firmamento, o recorte negro de uma sombra.
Ia ter início o eclipse. Um rumor surdo rolou como onda que partisse do rio para a majestade do deserto. Os camelos estonteados blateravam: o trissar forte das andorinhas cortou o céu. Estrugiam gritos lancinantes.
Dois ou três beduínos atiraram-se, de bruços, ao chão, e puseram-se a orar fervorosamente:
- Louvado seja Allah, Clemente e Misericordioso! Nós te adoramos, Senhor, e imploramos tua divina assistência...
Cada vez mais intensa e mais pesada descia a sombra, envolvendo o rio, as casas e as montanhas. Ouvia-se o chorar convulsivo dos escravos.
O kheddin encarregado das lâmpadas, numa desesperada ansiedade, corria como um demente de um lado para outro, em busca de isqueiros. Segurei-o pelo braço e disse-lhe golpeado de impaciência:
- Deixa a luz! Não te preocupes com os isqueiros! Essa escuridão passa logo!
Decorridos alguns instantes, o sol voltou a brilhar novamente e as sombras fugiram do céu.
Os caravaneiros bradavam cheios de alegria:
- Iallah! Iallah!
Entrementes corri em busca de meu amigo Syada e disse-lhe:
- Agora, sim! Chama o cádi. Façamos o casamento!
Ao ver a escrava negra de Astir junto à porta, disse-lhe apressado com voz abafada:
- Avisa tua ama! Chegou a hora da cerimônia!
A núbia ocultou o rosto entre as mãos e pôs-se a chorar. Interpelei-a, aflito: Que houve? Que sucedeu com minha arusa?
Com a voz entrecortada pelos soluços, contou-me que Astir, durante o eclipse, havia fugido com o poeta Dibil, o Sereno! Apaixonara-se por ele, ao ouvir- lhe os versos, e não quisera saber mais de mim!
Mais uma vez vinha a fatalidade navalhar-me impiedosamente o coração!
Senti-me aniquilado. A irmã de meu amigo - aquela em que eu tanto confiava - esquecida de seus compromissos e deveres, traíra-me pouco antes do casamento!
Ó raiva! Ó desespero!
Tive ímpeto de espancar o cádi, os convidados e o astrônomo imprudente, que anunciara o eclipse fatal. E tudo por minha culpa! O poeta miserável, que me roubara a noiva e comparecera ao casamento unicamente porque eu fizera empenho em vê-lo entre os convidados!
Rolei esbraseado como um louco pelo chão; arranquei o turbante e rasguei a seda de minha roupa. Cheguei até a perder os sentidos.
Quando despertei daquele abalo tremendo, a casa já estava vazia. Apenas Ismael Syada, o chamir, ficara solidário comigo naquele vexame, naquela imensa desventura...
E o peroleiro Salib, deixando pender desoladamente os braços, concluiu, num desalento:
- Foi assim, ó Príncipe dos Crentes! que transcorreu a minha segunda tentativa de casamento. Da infiel Astir nunca mais tive notícia, mas asseguro que será quase impossível esquecê-la e arrancá-la de meu coração!
Fonte:
TAHAN, Malba. Aventuras do Rei Baribê.
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