quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Poetas Africanos III

Fotos dos poetas deste número
Não foi encontrada foto de Orlando Mendes

AGOSTINHO NETO
Angola

  Com os olhos secos

Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inanimados dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos

Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdamos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
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ARMANDO ARTUR
Moçambique

    Pelo dever

    de resistir e caminhar
    pelos destroços da nossa utopia,
    eis-nos aqui de novo, acocorados,
    aqui onde o tempo para
    e as coisas mudam.

    E para que o nosso sonho renasça

    com a levitação do vento e do grão,
    eis-nos aqui de novo,
    passivos como os espelhos,
    no tear da nossa existência.

    Este sempre será

    O nosso amanhecer.
    E a nossa perseverança
    é como a da erva daninha
    que lentamente desponta na pedra nua."
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DAVID MESTRE
Angola
  
Espera

 Existo acento de palavra, carapinha
 recordação áspera de monandengue,
 mapa de conversas na visitação da lua,
 grávida luena sentada no verso da fome.

 aqui esqueço África, permaneço
 rente ao tiroteio dialeto das mulheres
 negras, pasmadas na superfície do medo
 que bate oblíquo no quimbo quebrado.

 num gabinete da Europa, dois geógrafos
 vão assinalar a estranha posição
 dum poeta cruzado na esperança morosa
 das palavras africanas aguardarem acento.
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TOMAZ VIEIRA DA CRUZ
Angola

Fruta

Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.

Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quintandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Ó agridoce quitanda
da fruta verde!...
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ORLANDO MENDES 
Moçambique

História
        
Diz a História que descendo
De celtas, mouros e visigodos.
Descendo e deles herdei todos
Os caracteres fundamentais
E talvez herdasse alguns mais
    Da mestiçagem de outras raças
    Que fizeram guerras, combatendo
    Conquistaram e perderam praças.
    Diz a História e não tenho
    Do contrario uma prova séria
    Em testamento que a revele.
    E admito pois que o tamanho,
    O rosto, o sangue, a cor da pele,
    A fria razão e o instinto,
    Adquiri em séculos de Ibéria
    Para ser o que penso e sinto
    O que mostro e o que oculto,
    Excitável carne e uma voz
    Memória de um país adulto
    Que se não cala por não trair-me
    No idioma de meus avós,
    Para ser a mão direita firme
    Que enche de palavras o papel,
    Perpétuo aprendiz que sou eu
    De velho ofício sem licença.
    Admito. E as datas festejo
    E retomo lutas que não venço
    E amo nas horas do desejo
    Com o mesmo requinte que deu
    Origem de mim à Criação
    E bebo o vinho e como o pão
    Da minha sede e da minha fome.
    Admito. E por isso, deponho.
    Contudo, nada herdei que dome
    A grandeza nova que transmito,
    Não apenas sede, fome e sonho
    De vinho, de pão ou de infinito,
    Desejo, posse e fecundidade
    Coragem forjada no segredo
    Medo que se chore ou se brade
    Guerra de amigo ou de inimigo,
    Não propriamente o enredo
    Mas esta seiva elementar
    De África nos versos que digo
    E os homens a saibam cantar.
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NELSON SAUTE 
Moçambique

    A ignorância do poeta

    O poeta contempla o mar
    no agoniado tédio da tarde.
    Caminha ao som de seus passos
    ombros recurvos mãos nos bolsos
    perseguindo a sua sombra.
    O cão que lhe roça a solidão
    não tolhe o verso escrito da memória.
    Os namorados não o fitam.
    De esguelha admira a inocência
    dos gestos amorosos.
    À sombra de jacarandás
    percorre o trajeto
    sobre as folhas silenciadas.

    O poeta ignora, mas a direção
    leva-o ao coração dos homens.

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