Ouçamos a surpreendente aventura do valente caravaneiro!
Há quinze anos passados, o meu intransitivo amor às viagens e aventuras levou-me a conduzir uma caravana de mercadores xiitas até a perigosa cidade de Ispahã.
No decurso dessa jornada, tormentosa e áspera, conheci um jovem que se chamava Ozaibe Nássara. Profunda amizade nos ligou desde logo. Raro era o dia em que ele não vinha à minha tenda, onde nos deixávamos ficar longas horas a discretear. Ozaibe era muito pobre, muito fantasioso e original. Os parcos recursos com que vivia, ganhara-os vigiando e cuidando dos camelos de um rico mercador persa.
Confessou-me, certa vez, que o seu grande sonho seria tentar a vida na Índia dos rajás. Nesse país prodigioso, onde os príncipes vivem em palácios deslumbrantes e os templos são adornados com gemas preciosas, ali é fácil conquistar riquezas. Faltavam-lhe, porém, recursos para a viagem. Ofereci-me para auxiliá-lo. Ozaibe aceitou minha proposta sob uma condição. Seríamos como dois sócios numa empresa. Se a viagem fosse bem sucedida e a sorte o favorecesse, repartiríamos irmãmente os lucros; no caso contrário, a dívida desapareceria e eu nada poderia reclamar. Apostado em ser-lhe agradável, concordei com o fantasioso plano e entreguei-lhe todas as minhas economias que, a esse tempo, orçavam em trezentos dinares-ouro.
Partiu Ozaibe para a Índia e dele nunca mais tive notícias. Os anos amontoaram-se no passado e o tempo foi desfiando o seu rosário interminável de sucessos. De quando em vez a lembrança de Ozaibe vinha martelar, como o peso da saudade, em meu pensamento. Pobre amigo! A ambição o levara a um país de idólatras, onde as feras têm menos arreganhos que os homens. Os que ouviam falar no caso riam-se de minha ingenuidade. Só um louco (proclamavam) entrega todos os seus haveres a um aventureiro que parte, sem rumo, pelos caminhos incertos do mundo! Do que fiz por Ozaibe respondia eu aos incréus - não me arrependo. Foi por amizade; está acabado!
Há três dias passados tive uma das grandes surpresas da minha vida. Ao sair do gum em companhia de dois amigos, acercou-se de mim um estrangeiro com ar misterioso.
- És tu o chamir Ismael Syada? - perguntou-me olhando muito firme para mim.
Sim - confirmei um pouco desconfiado. - Que deseja o senhor?
Respondeu o desconhecido com mesuras:
- Venho da Índia e trago-te uma encomenda de teu amigo Ozaide Nássara, o rico senhor de Sirampur. – E entregou-me um embrulho de pano e uma carta.
Aquela mensagem, que eu recebi inesperadamente do peregrino, encheu-me de alegria. Era a primeira notícia do amigo que eu julgava perdido na voragem fanática do Ganges.
A curiosidade estugou-me os passos. Entrando em casa abri o embrulho.
Ó tristíssima desilusão! Ozaibe, que o mensageiro hindu dissera ser o "rico senhor de Sirampur", envia-me, como presente, uma roupa velha, já meio apodrecida e cheia de remendos!
"Em nome de Allah, o Único! De Ozaibe Nássara, de Sirampur, para o seu amigo Ismael Syada, chamir em Mossul. Aqui estou, meu velho amigo, junto ao castelo do rajá de Bradbarad, meu chefe e protetor. Remeto-te, como lembrança, e de acordo com o nosso contrato feito em Ispahã, a primeira roupa que vesti no país dos hindus. Repara que ela tem dez remendos; remendos em toda a parte; são remendos mal feitos; remendos grosseiros; mas esses remendos não me envergonham; são remendos do meu passado. O grande valor da roupa está nos remendos, aquele que vê bem os remendos vê tudo e pode até, pelos remendos, descobrir a vida e o segredo de uma pessoa. Que Allah derrame sobre o meu amigo todas as bênçãos. Uassalã".
Fiquei estarrecido. Já pensava em livrar-me dos sórdidos andrajos atirando-os ao rio, quando surgiu minha irmã Astir.
Astir é viúva e mora comigo. Ouço, frequentemente, os seus conselhos, pois ela é muito sensata e inteligente.
Minha irmã leu e releu atentamente a carta e disse-me, por fim:
- Há grande mistério nisto. O teu amigo, nesta carta, repete nove vezes a palavra "remendo" e afirma que os trapos contêm dez remendos. Ora, quem de dez tira nove fica com um! Há, portanto, na roupa velha, um remendo de sobejo.
O raciocínio de Astir pareceu-me engenhoso. De dez tirando nove fica um! O cálculo estava certo, e o exame minucioso a que procedemos nos trapos de Ozaibe veio provar que as previsões de Astir estavam tão certas como aquela conta! Com efeito. Entre as dobras sujíssimas do pano, bem oculta no meio de um remendo grosseiro, encontramos essa pedrinha vermelha!
Aquela gema era o presente que o dedicado e fiel Ozaibe fazia chegar às minhas mãos.
Resolvi desfazer-me da pedra. Qual seria o seu valor? Ignorava-o por completo.
Aquele joalheiro magro, de cicatriz na testa, é o mais rico de Mossul. Trouxe-o aqui para examinar a pedrinha indiana.
Virou, olhou, calculou e disse-me por fim em tom depreciativo:-
- É um rubi comum da Índia. Pago por ele trinta dinares!
Fui consultar Astir. Escondida no vão de uma porta, ela estivera observando todas as atitudes do joalheiro.
- Não vendas por esse preço - declarou. - O rubi deve valer mais!
- Valer mais, por quê? - indaguei irrefletidamente.
Explicou-me Astir, sorridente e maliciosa:
Vi o mercador limpar três vezes os dedo no turbante!
Voltei à sala e declarei ao joalheiro que não faria a transação. O homem, depois de meditar algum tempo, aumentou a oferta.
- Pago pela pedra cinquenta e dois dinares!
Mais uma vez fui ouvir a opinião de Astir.
- Não vendas - retorquiu minha irmã. - A pedra deve valer mais! Observei que o homem fazia cálculos até com os dedos da mão esquerda!
Aquela razão calou-me no espírito. Recusei a nova proposta e o joalheiro retirou-se contrariado, dando a entender que não pagaria pelo rubi quantia mais elevada.
No dia seguinte, porém, voltou e propôs pagar-me setenta dinares.
Fui, ainda uma vez, ouvir o parecer de Astir.
- Não vendas, ó Ismael - declarou minha irmã. - O teu rubi deve valer muito mais! O joalheiro atravessou o rio num barco de couro! Essa temeridade ele não a praticaria se a pedra não fosse de grande valor!
Achei razoável a observação e recusei, decidido, a nova proposta.
Hoje, finalmente, pouco antes de iniciar a festa, o joalheiro voltou a insistir. Oferecia cento e quarenta dinares pelo rubi indiano.
Corri a Astir e disse-lhe entusiasmado:
- Agora, sim! O homem já está mais generoso. Presumo que deveríamos fechar o negócio!
- Não vendas! - acudiu logo minha irmã... - Pois não reparaste que ele passou de setenta para cento e quarenta! Dobrou a oferta! Quando o comprador dobra a oferta, a mercadoria na certa vale muito mais!
- Ó Astir! - exclamei - os motivos em que baseias as tuas opiniões são mais incertos que o rumo de uma folha levada pelo vento. Na marcha em que vamos, ó Astir, jamais conseguirei fechar negócio com esse rubi!
Astir atalhou aquela observação sorrindo:
- Se julgas que estou exagerando, consulta o teu amigo Salib, o peroleiro!
- Para atender a essa sugestão de Astir, resolvi ouvir a tua opinião. Eu fui por ti, ó Salib! informado de que esta pedrinha (que o joalheiro avalia em cento e poucos dinares) é um diamante vermelho de alto valor!
Quando Ismael Syada concluiu sua curiosa narrativa, o erudito El-Moizze, o astrônomo, que tudo ouvira com religiosa atenção, disse, muito sério:
- A tua irmã, ó chamir! deve ser dotada de um talento excepcional! Por Allah! Gostaria de consultá-la, agora, acerca de um interessante problema!
Respondeu Syada:
- Vou chamá-la. Ela, decerto, não se recusará a vir cá. Ambos são meus amigos e Astir sabe ser reconhecida a quem me auxilia!
Nesse momento abriu-se a porta e vimos surgir uma jovem risonha e encantadora, que se dirigiu para nós com o rosto inteiramente descoberto.
Era Astir, a viúva, irmã do chamir Syada. Seu perfil era fino, sua face branda; os cabelos escuros caiam-lhe sobre os ombros. Os seus olhos formosamente negros, perturbadores, envolveram-me numa onda de luz.
- Louvado seja o Onipotente, que tanta beleza criou para encanto de nossa vida!
Senti, naquele momento, que a caravana da minha existência ia tomar novo rumo pelos caminhos de Allah!
O encontro da inteligente viuvinha com o sábio astrônomo foi o episódio dos mais curiosos a que tenho assistido em minha vida. Não posso narrá-lo para não alongar demais esta narrativa.
Ao romper do “koddar” (o nascer do sol), deixei a casa de meu amigo Ismael Syada.
Era a hora da primeira prece.
continua...
Fonte:
TAHAN, Malba. Aventuras do Rei Baribê.
Nenhum comentário:
Postar um comentário