sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Adriana Falcão (Ramsés Terceiro)

O nome dele era Ramsés Terceiro Gonçalves de Souza, mas quando o povo chamava “Zé”, ele vinha na hora. É que lá em São Miguel dos Milagres não havia quem decorasse nome tão qualificado,”Ramsés de quê, menino?”.

Cresceu subindo no coqueiro e escutando conversa de turista: isso aqui sim é o paraíso. Achava uma grande besteira. Qualquer lugar é o paraíso com essa lourinha ao lado, moço, me desculpe.

Parou de estudar na quinta, ou foi na sexta, mesmo assim ainda lembrava o nome das capitais de cada estado brasileiro, de Mato Grosso do Sul inclusive.

Um belo dia irritou-se, saiu de São Miguel e foi pra Maceió, ele mais seu primo Neílson. Desse, nunca mais ouviu falar, se não morreu, esqueceu-se dele. Vai ver foi isso.

O problema de Maceió é que lá era grande mas era pequeno, portanto veio morar no Rio de Janeiro.

Foi em 1994, não havia de esquecer, no dia em que o Brasil ganhou o título. O italiano lá errou o gol, ele tomou mais uma, comprou a passagem e quando acordou já estava naquele Itapemirim amarelo assim, “Maceió — Rio de Janeiro”.

No que chegou, ligou logo para a mãe, “adivinha onde é que eu tou?”, ela não havia de adivinhar era nunca. “Só não me diga que é no manicômio”, ô mulher pessimista, dona Maria do Socorro.

Arranjou um bico aqui, outro ali, acabou ajudante de pedreiro num prédio enorme de tão grande, emprego certo que durou vários meses. De lá pra cá não parou mais. Foi porteiro, eletricista, camelô, ladrão de carro, motoboy, evangélico e balconista de loja, só não lembra em que ordem exatamente. Mandava dinheiro para casa, quando dava, e ainda conseguiu juntar novecentos e cinquenta.

Quando ia completar vinte e nove anos, tempos atrás, resolveu passar o aniversário em casa. Era saudade da família. Foi pra São Miguel sem avisar, mas quem levou o susto foi ele.

Descobriu que não tinha vinte e nove, tinha trinta e quatro, e que seu aniversário não era aquele dia.

Dona Socorro contou tudinho com a maior sinceridade. Esqueceu de registrar o menino, passaram-se anos, mais cinco nasceram, e ela acabou perdendo a lembrança do dia exato do seu nascimento.

— Acho que foi lá pro fim do mês, só não me lembro de qual mês — disse. — Se não me engano, você é filho de Seu Tabosa da venda, e como eu fiquei com ele por três anos, de 64 a 67, portanto você nasceu em 65.

— Em 70 não era melhor não, mãe? — pelo menos era o ano da Copa, mas como dona Socorro já tinha tomado oito cervejas, não adiantava perguntar mais nada. Conformou-se.

Desde então procura seu horóscopo em todos os signos e aquele que parecer mais, ele acredita. Muitas vezes dá Sagitário, geralmente. No dia que leu “clima propício para o amor”, conheceu uma moreninha na Central-Rodoviária que despertou seu interesse, parece até mentira.

Montaram casa, compraram colchão, mesa, cadeira, e até almoço ela fazia. Era amor pra duzentos anos, ele dizia. Engano seu. Oito meses depois ela foi-se.

Rodou foi tudo procurando a peste, de casa em casa, de bar em bar, não é que ela já estava com outro? Encontrou os dois na parada de ônibus.

Não tinha a intenção de agredir ninguém, o miserável é que veio pra cima dele.

Fugiu com a ideia concentrada apenas em não ficar louco, coisa que se tornava cada vez mais difícil com aquele inferno na lembrança, a cabeça do miserável na pedra, o sangue correndo e uma velha gritando: “Meu Pai, Nosso Senhor!”. Pra que tanta gritaria?

Esse negócio de complexo de culpa é complicado mesmo, realmente. Ela é que arranjou outro, o outro é que partiu pra cima dele, e quem se arrependeu foi ele próprio, vê se pode, porque o tal do miserável ficou um pouco abaixo do juízo depois de todo o acontecido.

Desse dia pra cá não encontrou mais nenhum dos dois, graças a Deus. Parece que depois ela conheceu um gringo e hoje está pros lados da Alemanha, ou coisa parecida, isso é problema lá dela.

Nunca mais ligou pra mãe, nem arrumou emprego certo, nem quis saber de mulher fixa. Em compensação passou a comemorar seu aniversário todos os dias do ano, de segunda a domingo.

Tomava conta de um carro aqui, arranjava uma coisa ali, vendia lá, deixou o cabelo crescer, voltou a fumar e a beber, tinha um batimento cardíaco triste, até que deu pra conversar com cachorro vira-lata, conversa besta. Não é que o infeliz do cachorro era tão sem esperança que chegou a lhe convencer que a vida não prestava?

Atualmente, Zé tem a impressão de que está com trinta e sete anos completos. Desde abril está no manicômio. Toda noite reza pra São Miguel dos Milagres. Está só esperando.

Quando fala que seu nome é Ramsés Terceiro, comentam que ele é doido.

Fonte:
Adriana Falcão. O Doido da garrafa.

Folclore dos Estados Unidos (Lenda Ojibwa: Como o Morcego Veio a Ser o Que É)

Nota:
Os ojibwas foram um povo indígena da América do Norte, igualmente divididos entre os Estados Unidos e o Canadá. Habitavam a região a oeste e em volta do lago Superior.
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Há muito tempo atrás, enquanto o sol se levantava pela manhã, ele chegou perto demais da Terra e ficou preso nos galhos mais altos de uma grande árvore.

Quanto mais o Sol tentava escapar mais ele ficava preso. Então, chegou a noite.

Logo, logo, todos as aves e animais notaram. Alguns acordaram, então voltaram a dormir pensando que tinham se enganado e não era hora de levantar.

Outros animais, que amavam a noite, como a pantera e a coruja, estavam realmente contentes porque permanecia escuro, assim ele podiam continuar a caçar.

Mas após um certo período, tanto tempo havia se passado que as aves e animais souberam que havia algo errado.

Ele se reuniram em Conselho na escuridão.

“O Sol se perdeu,” disse a águia.

“Devemos procurar por ele” disse o urso.

Assim, todos os pássaros e animais foram procurar pelo Sol.

Eles olharam em cavernas e nas profundezas da floresta e no topo das montanhas e nos pântanos.

Mas, o Sol não estava lá. Nenhum dos pássaros ou animais pôde encontrá-lo.

Então, um dos animais, um pequeno esquilo marrom teve uma idéia. “Talvez o Sol esteja preso em uma árvore alta,” ele disse.

Então, o pequeno esquilo marrom começou a pular de árvore em árvore, indo cada vez mais para o leste. Enfim, no topo de uma árvore muito alta, ele viu um raio de luz.

Ele escalou e viu que era o Sol. A luz do Sol estava pálida e ele parecia fraco.

“Ajude-me Pequeno Irmão!,” disse o Sol.

O pequeno esquilo marrom chegou mais perto e começou a mastigar os ramos que prendiam o Sol. Quanto mais perto ele chegava, mais quente ficava. Quanto mais galhos ele mastigava, mais brilhante o Sol se tornava.

“Eu tenho de parar agora!” disse o pequeno esquilo marrom. “Meu pelo está queimando. Ele estava ficando todo preto!”

“Ajude-me!,” implorou o Sol. “Não pare agora”

O pequeno esquilo continuou o trabalho, mas o calor do Sol estava muito quente e ele estava muito mais brilhante. “Minha cauda está se queimando!” disse o pequeno esquilo marrom. “Não posso fazer mais que isso!”

“Ajude-me!,” disse o Sol. “Logo eu vou estar livre!”

Assim, o pequeno esquilo marrom continuou a mastigar. Mas a luz do Sol estava brilhante demais agora.

“Estou ficando cego!,” disse o esquilinho. “Preciso parar!”

“Só um pouquinho mais!,” disse o Sol. “Eu estou quase livre!”

Finalmente, o pequeno esquilo marrom soltou o último dos ramos.

Logo que ele fez isso, o Sol se libertou e subiu para o céu.

A escuridão desapareceu sobre a Terra e era dia novamente. Por todo o mundo pássaros e animais ficaram felizes.

Mas, o pequeno esquilo marrom não estava feliz. Ele foi cegado pela claridade do Sol. Sua longa cauda tinha sido queimada até o fim e o que ele tinha de pêlo agora estava preto.

Sua pele tinha se esticado por causa do calor e ele estava suspenso no topo da árvore, incapaz de se mover…

Lá em cima no céu, o Sol olhou e sentiu pena do pequeno esquilo marrom. Ele tinha sofrido muito para salvá-lo.

“Pequeno Irmão,” disse o Sol. “Você me ajudou. Agora, eu vou de dar algo. Há algo que você sempre tenha desejado?”

“Eu sempre quis voar,” disse o pequeno esquilo. “Mas eu estou cego agora, e minha cauda se queimou.”

O Sol sorriu “Pequeno Irmão,” ele disse, “de agora em diante você voará melhor que as aves. Porque você veio tão perto de mim, minha luz sempre estará brilhando para você, e além disso você enxergará no escuro e ouvirá tudo ao seu redor enquanto voa.

“De agora em diante, você dormirá quando eu levantar nos céus e quando eu disser adeus para o mundo, você acordará.”

Então o pequeno animal que uma vez foi um esquilo caiu do galho, esticou suas asas de pele e começou a voar.

Ele não mais sentiu falta de sua cauda e de seu pêlo marrom e ele sabia que quando a noite chegasse novamente, seria sua hora. Ele não mais poderia olhar para o Sol, mas ele reteve a alegria do Sol dentro de seu pequeno coração.

E assim foi, há muito tempo atrás, o Sol mostrou sua gratidão para o pequeno esquilo marrom, que  não era mais um esquilo, mas o primeiro de todos os morcegos.

fonte:
http://www.firstpeople.us/FP-Html-Legends/HowTheBatCameToBe-Ojibwa.html
Texto em português http://casadecha.wordpress.com

Simone Borba Pinheiro (Ciranda da Amazonia) Parte 1

SIMONE BORBA PINHEIRO
Vamos salvar a Amazônia


No coração do mundo,
 nas profundezas do centro da terra,
 emerge o mais precioso dos tesouros:
 Uma Floresta Encantada!...

 Os espíritos da floresta, à noite,
 entoam hinos de louvor á sua existência.
 A mata verdejante e misteriosa,
 derrama lágrimas peroladas quando ceifada.

 Aves assustadas tingem o céu de negro.
 Jacarés e vitórias-régias formam lindos tapetes aquáticos.
 E o povo que ali habita, pede socorro,
 bordando anéis de fumaça no céu da mata.

 Pois a floresta, aos poucos, vai desencantando,
 perdendo o brilho, a cor, a vida...
 O homem mau abriu caminho floresta adentro
 empunhando nas mãos a mortal arma
 de lâminas frias e afiadas,
 matando a vida na Floresta Encantada.

 Os seres da floresta pedem socorro.
 Vamos salvar a Amazônia
 da derrubada indiscriminada da mata,
 da matança descabida e gananciosa
 dos animais que ali habitam,
 das doenças do povo da floresta
 que indefesos tombam sem auxílio.

 Rios e igarapés choram lágrimas poluídas.
 É a morte chegando lentamente
 ao coração verde do planeta...
 Uni-vos com braços fortes,
 em brados retumbantes...
 Vamos salvar a Amazônia,
 a Floresta Encantada.
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O Grito da Amazônia
ALBERTO PEYRANO


 Amazônia, mãe amada!
 Grito vital da terra
 Que clama sua grande dor.
 Hoje a onça agonizante
 O rosto do índio lambeu
 E se abraçaram as árvores
 Chorando por teu martírio.
 De Manaus a Porto Velho,
 De Macapá ao Xacurí
 Surge uma voz entre sombras
 Que alerta a Humanidade:
 "Filho, estou dolorida"!
 "Filho meu, cuida de mim"!
 Só a metade consciente
 Dos teus filhos, escutou.
 Só a metade que sente
 Tua tristeza e teu penar.
 A outra metade, arrasa
 Tua riqueza natural.
 A outra metade só escuta
 A música material.
 A noite traz a Lua
 O rio se põe a dormir,
 A selva vela em silêncio
 Esperando o que há por vir...
 Enquanto o índio e a onça,
 Irmãos no sofrer,
 Secam suas lágrimas vãs,
 Abrindo as veias da alma
 E regam teu velho solo
 Com dor, sangue e amor.
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O Sabiá Chorou
ANTONIO CÍCERO DA SILVA


 O sábia tristemente chorou
 A árvore com o seu ninho caiu
 O homem a árvore cerrou
 E contente ainda sorriu.

 O sabiá se entristeceu
 No ninho estavam seus filhos
 Da região se locomoveu
 Emudeceu-se, perdeu seu brilho.

 Lá longe triste a cantar
 Queixava-se muito do homem
 Que a natureza veio a danificar
 Ao que não é dele, o humano consome.

 O sabiá clamava por ajuda
 À mãe natureza
 Que também sofria, quase desnuda
 Ela também, o homem perseguia.

 O sabiá da natureza era membro
 E não prejudicavas a ninguém
 Viviam alegres a contento
 Até serem prejudicadas por alguém...
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Amazônia
ANTÓNIO ZUMAIA


 Um Paraíso verde na terra…
 De múltiplas cores é destino
 e Deus sabe a riqueza que encerra;
 Loucura dos homens… é desatino.

 Mas destruir o que Deus plantou,
 é pecado contra a humanidade;
 As cores lindas que ELE pintou.
 Devastar assim é crueldade.

 Brasil de pérolas carregado;
 Mil cores e amores é tua terra.
 Por isso és dos teus filhos amado,
 na alegria que teu povo encerra.

 O povo que é maravilha a cantar;
 Alegre e corajoso vai lutar.
 Amazônia terra para sonhar,
 foi uma prenda, que Deus lhe quis dar.

 É por isso que o povo Brasileiro,
 o sonho de encantar… Vai preservar!
 Porque o Paraíso, é do mundo inteiro
 e o Brasil… cioso o vai guardar.

 Paraíso de mil ilhas… Encanto!
 São mil caminhos de água a percorrer.
 Contraste de cores, que são o espanto,
 dos felizes… que o podem conhecer.
 Povos que o habitam são felicidade,
 porque a natureza… é a VERDADE.
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Chamas
ARLETE PIEDADE


 Línguas de fogo serpenteantes e gigantescas.
 sobem lambendo copas de árvores impotentes,
 rastejantes se insinuam, titânicas e dantescas,
 consumindo vorazmente, em todas as frentes.

 O descuido criminoso do homem pelo ambiente,
 cruel ganância de ganhos, imediatos e lucrativos,
 o desprezo pelas gerações futuras, são somente,
 alguns dos evidentes e mais falados dos motivos!

 Mas não esqueçam esses covardes incendiários,
 que ainda, mesmo neste mundo, são necessários,
 tempo, oportunidade e do castigo não escaparão...

 pois que se a justiça dos homens é ineficaz e lenta,
 da de Deus, não se livrarão, e na sua alma a tormenta,
 diáriamente, lhe fará desejar a morte, como expiação!

Fonte:
http://www.familiaborbapinheiro.com/ciranda_amazonia.htm

Stanislaw Ponte Preta (Conto de mistério)

Com a gola do paletó levantada e a aba do chapéu abaixada, caminhando pelos cantos escuros, era quase impossível a qualquer pessoa que cruzasse com ele ver seu rosto. No local combinado, parou e fez o sinal que tinham já estipulado à guisa de senha. Parou debaixo do poste, acendeu um cigarro e soltou a fumaça em três baforadas compassadas. Imediatamente um sujeito mal-encarado, que se encontrava no café em frente, ajeitou a gravata e cuspiu de banda.

Era aquele. Atravessou cautelosamente a rua, entrou no café e pediu um guaraná. O outro sorriu e se aproximou:

Siga-me! - foi a ordem dada com voz cava. Deu apenas um gole no guaraná e saiu. O outro entrou num beco úmido e mal-iluminado e ele - a uma distância de uns dez a doze passos - entrou também.

Ali parecia não haver ninguém. O silêncio era sepulcral. Mas o homem que ia na frente olhou em volta, certificou-se de que não havia ninguém de tocaia e bateu numa janela. Logo uma dobradiça gemeu e a porta abriu-se discretamente.

Entraram os dois e deram numa sala pequena e enfumaçada onde, no centro, via-se uma mesa cheia de pequenos pacotes. Por trás dela um sujeito de barba crescida, roupas humildes e ar de agricultor parecia ter medo do que ia fazer. Não hesitou - porém - quando o homem que entrara na frente apontou para o que entrara em seguida e disse: "É este".

O que estava por trás da mesa pegou um dos pacotes e entregou ao que falara. Este passou o pacote para o outro e perguntou se trouxera o dinheiro. Um aceno de cabeça foi a resposta. Enfiou a mão no bolso, tirou um bolo de notas e entregou ao parceiro. Depois virou-se para sair. O que entrara com ele disse que ficaria ali.

Saiu então sozinho, caminhando rente às paredes do beco. Quando alcançou uma rua mais clara, assoviou para um táxi que passava e mandou tocar a toda pressa para determinado endereço. O motorista obedeceu e, meia hora depois, entrava em casa a berrar para a mulher:

- Julieta! Ó Julieta... consegui.

A mulher veio lá de dentro euxugando as mãos em um avental, a sorrir de felicidade. O marido colocou o pacote sobre a mesa, num ar triunfal. Ela abriu o pacote e verificou que o marido conseguira mesmo. Ali estava: um quilo de feijão.

Nilto Maciel (Passeio)

Se a escada parasse de súbito, eu rolava e levava de roldão todo o mundo. Talvez fosse mais engraçado do que la­mentável. Não, não posso cair nem machucar essa gatinha. É mesmo um amor de garota. E por que chamar as mocinhas de gatinhas? E nós de gatos, gatinhos, gatões? Eu, um gato? Qual nada! Sou antes um macaco, um bicho qualquer. Vou me olhar direito. Mas aqui não tem espelho. A não ser os vidros das vitrines. É isso mesmo. Faço de conta que estou olhando os calçados, os preços, como um possível comprador. Que tal uns sapatos pretos? Ou marrons? Uma ruguinha aqui, uns pés de galinha. Que sapato mais gaiato! E caro.

— Diga, freguês.

— Estou só olhando.

Sujeito mais chato! Então não se pode mais olhar uma vitrine? Ui! Quase atropelo o menininho. Ele e a mãe. Deve ser a mãe, apesar de ser ainda muito nova. Ou então irmã. Até que se parecem. Bem parecidos, sim. Ela então é uma gatinha. De novo o assunto dos bichos. Não importa, é uma fofura. No mínimo, come bem, dorme bem, vive bem. Se passasse fome, morasse nos buracos da Ceilândia, do Gama, do Paranoá, eu nem reparava nela. Eu e ninguém. Mudava de vista. Mas deve morar aqui mesmo. Nas quadras mais nobres. Quem sabe, no Lago. Numa daquelas mansões. Não, madame do Lago não deve andar pelo Conjunto Nacional. Ainda mais arrastando um filho pelo braço. Cansando, suando à toa. Podia estar em casa, na beira da piscina, tomando suco. Deve estar com sede. Não sei. Eu estou. Que tal um chopinho? Ali adian­te tem uma pizzaria. Um chope e só. Nada de ficar sentado por muito tempo. Já basta o serviço. É bom passear, andar, olhar as pessoas. Quem sabe, encontro um conhecido, um velho amigo, um conterrâneo. Então a gente toma dois chopes. Ou quatro. Enquanto conversa. Assuntos variados: futebol, mulher, política, trabalho. “E Brasília, você gosta daqui, doutor Lima?” “Não; mas para que isso de doutor? Aqui eu sou apenas o Lima. Deixe de cerimônias”.

— Um chope, por favor.

— Sim, senhor.

Acho que estive aqui um dia desses. Sim, no mês passado. Não, foi noutro lugar. Mas aqui mesmo no Conjunto Nacional. Havia um desenhista bebendo e retratando os fregueses. Um velho, meio desarrumado, com cara de quem vive bêbado. Na parede, uns retratos expostos. Tudo feito a lápis ou coisa parecida. Desenho é uma coisa, pintura outra, não é? Pintura é aquilo dos quadros da Torre. Ruelas do interior, casarões, paisagens. Tudo colorido, pintado, artístico. Obras de arte finalizadas. Está geladinho. Para matar a sede e passar o tempo. Depois peço outro. Não, eu disse que ia tomar só um. Olhe, conheço aquele sujeito. Pelo menos tem a mesma cara, as mes­mas feições do... Quem é mesmo? Deixe ver. Do Ministério da Justiça. É ou não é? Não, é só parecido. Uma vez, no Beirute, aconteceu um caso assim. Eu pensava que era a Martinha, cheguei a falar com a pessoa e tive a maior decepção. A garota devia estar cheia de maconha. E a Martinha nem de chope gostava. Essa juventude de hoje só quer saber disso. Filhinhos-de­-papai, de deputados, ministros, juízes. Eu, não, fico no meu chopinho e não tem perigo de nada. É legal e ajuda. Embora seja droga também.

— Garçom, por favor.

Esse parece que não comeu nada hoje.

— Fique com o troco.

Fique com o troco ou fique com o troço? Troçar é bom. Quem acha ruim é quem é troçado. “Olhando para mim, bele­za? Não quer me conhecer? Que tal tomarmos um chopinho? Com pizza. Pago com o maior prazer. Quer não, é? Orgulhosa! Não importa, tem muitas por aí”. Aqui deve estar circulando agora umas duas mil pessoas. E eu talvez não conheça nenhuma. Todo mundo vivendo sua vidinha, comprando, pagando, passeando. Será que há alguém como eu? Não, todos têm um rumo certo, horário de voltar para casa, família, tudo. Mais hora, menos hora, pegam o carro ou o ônibus e voltam para os seus. A mãe para o filho, o marido para a mulher, a mocinha para os pais. Deixa esse povo para lá. Que tal subir outra escada? Pode ser que em cima encon­tre algum conhecido. Ou conheça alguém. Aquela deve ser excelente garota. Bonita é. Mas nem olha para mim. E os fil­mes de hoje? Como sempre, mulheres e homens nus. A maior sacanagem do mundo. Talvez fosse bom assistir. Passar o tempo. Não, é melhor passear, olhar as pessoas. Tantas mulheres sós. E todas lindas. Muito mais do que as do filme. Aquela ali então nem se compara com aquelas depravadas. E olhou para mim. “Que tal irmos agora para o meu apartamento? Fica na Asa Norte. Garanto que você vai gostar. Você e eu. Quem sabe até a gente leva adiante essa aventura. Casamento, filhos, um lar. Ou só uma união mais ou menos passageira. Todo dia a gente vem passear pelo Conjunto Nacional. Ou então viaja para o litoral, de férias. Lua-de-mel em Guara­pari. Ou aqui mesmo no Hotel Nacional”.

— Como é seu nome, gatinha?

Fez que nem ouviu, a cadela. Deve se julgar intocável. Ih! está falando com o guarda. Mas eu não sou um peão qualquer. Além do mais, estou só passeando comigo mesmo. Pacificamente.

Fonte:
Nilto Maciel. As Insolentes patas do Cão.

Ialmar Pio Schneider (Mensagem ao Poeta)

Vai em frente, segue a estrada
sem muito esperar da glória;
vida simples, devotada...
Se alguém ouvir tua estória,
nostálgica e merencória,
canta sempre, até por nada !...

Faze como o passarinho
que saúda a natureza,
enquanto busca um raminho,
com afã e singeleza,
p’ra construir o seu ninho:
- maior prova de beleza.

Sejam teus versos cantigas
que a gente escuta na rua;
pobres canções, mas amigas
como as estrelas e a lua;
pois a terra será tua,
longe de dor e fadigas...

Não temas crítica austera
e nem te afastes do tema,
sempre alcança quem espera...
Prosseguir ! seja o teu lema
e verás a primavera
cingir-te com seu diadema !...

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 8 – No dia seguinte

No dia seguinte pularam da cama muito cedo e retomaram a obra de reforma da Natureza. Tudo era examinado e reformado no que à elas parecia torto. A Rãzinha continuava com as ideias mais absurdas, de verdadeira maluca.

A reforma do Quindim, por exemplo, que a Rã fez sozinha, era a coisa mais esquisita que se possa imaginar. Em vez do famoso chifre sobre o nariz, que é característico de todos os rinocerontes, a Rã botou uma flecha de Cupido com um coração assado na ponta. Assado, imaginem! E ornamentou os cascos de Quindim com pinturas: Branca de Neve com todos os seus anões. E trocou as quatro pernas do rinoceronte por quatro pernas diferentes - uma de veado, outra de ganso, outra de jacaré, outra de pau. E substituiu aquele couro duríssimo por um revestimento muito bem trançado de palhinha de cadeira. Cauda, botou duas; depois três, depois dez, depois cem; deixou-o com um verdadeiro varal de caudas dando volta inteira em redor do pobre animal.

A reforma do Quindim saiu um tal disparate que nem andar ele podia - uma perninha não acompanhava a outra, e havia a tremenda atrapalhação de tantas caudas, todas diferentes, umas com bolas na ponta, outras com espinhos de ouriço, outras com campainhas.

Quando Emília foi ver a "obra", não pôde deixar de rir se. Aquilo era o "bissurdo dos bissurdos." Quindim estava transformado num verdadeiro destampatório.

- Isso não é reformar, Rãzinha! - disse ela. - Isso é escangalhar com uma pobre criatura. Ele já não é rinoceronte, nem nenhum bicho possível. Virou quarto de badulaques, baú de mascate. Que judiação!...

- E você deixa que ele fique assim? - implorou a Rã, com medo que Emília desmanchasse aquela obra-prima do disparate humano.

- Deixo por enquanto - respondeu Emília - como castigo da preguiça, da velhice e neurastenia que ele anda mostrando duns tempos para cá. No dia do plebiscito sobre o tamanho Quindim me traiu – recusou-se a votar. A falta desse voto deu vitória ao Tamanho e eu saí lograda. Agora que aguente. Mais tarde vou reformá-lo de novo, mas com critério científico ...

A Rã ou era mesmo maluca ou estava "sabotando" a obra reformatória da Emília. Todas as ideia s que apresentava eram tontas, como aquela da mudança dos morros. A Rã tomou um lápis e traçou um desenho assim:

- Que é isso? - perguntou Emília.

- Ah, isto é uma das reformas que acho mais necessárias: as reformas dos morros. Sempre que tenho de subir um morro, fico cansada e sem fôlego. E então imaginei uma coisa assim: os picos serão para baixo, em vez de serem para cima, de modo que quando a gente tem de ir ao pico dum morro, desce, em vez de subir...

Emília ficou a olhar, ora para a Rã ora para o desenho. Era uma reforma que deixava tudo na mesma.

Quando alguém que descesse ao pico do morro tivesse de voltar, teria de subir para o vale...

- Não. Essa ideia está boba. Muito melhor fazermos os morros bem baixinhos, de modo que não canse a gente; ou então deixarmos os morros em paz. Para que subir morro?
––––––––––-
continua…

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) XII

foi mantida a grafia original.
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O ÚLTIMO D. JUAN

Daquele de quem falo, as sossegadas lousas
Podiam-vos contar as violações brutais!
A gula com que morde as mais sagradas cousas
De horror faz recuar os trémulos chacais.

Não descanta à viola, à noite, os seus enleios:
Ele vive na sombra e eu sei também que vós,
Gentis belezas de hoje, á astros dos Passeios,
Lhe não lançais, a furto, a escada de retrós.

Mas sede muito embora as virgens sem desejos,
As monjas virginais, uns pudicos dragões;
Fechai o níveo colo aos vendavais dos beijos,
E às noites de luar os vossos corações;

Um dia há de chegar em que ele, informe, tosco,
Sem garbo, sem pudor, grotesco, infame, vil;
Nas grandes solidões irá dormir convosco,
Mordendo em cada seio o lírio mais gentil!

E o que ele adora muito ó virgens romanescas
Não é o que abrigais de etéreo e virginal:
Adora os corpos nus; as belas carnes frescas;
Deixando o resto a vós danados do ideal!

Não vive como nós de cândidas mentiras:
Não comunga do amor esse ilusório pão:
Devora com fervor as pálidas Elviras
E em muitos seios bons dá pasto ao coração!

Tem palácios na sombra e fazem-lhe um tesouro
Maior do que o dos reis; adora as solidões:
Não usa de espadim; não traz esporas de ouro;
Mas vive como os reis das grandes corrupções!

Flores sentimentais! Treinei do paladino,
Do velho D. Juan, feroz conquistador,
A quem da vossa boca um hálito divino,
Em vida, faz fugir talvez cheio de horror;

Mas que um dia virá, na cândida epiderme,
Na sagrada nudez dos colos virginais,
Em hinos de triunfo — o grande César-Verme! -
Colher o que ficou de tantos ideais!

Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas
A aérea multidão de fadas quebradiças,
Gentis aparições dos bailes e das missas,
Desliza no fulgor das pompas sedutoras.

No arfar da casimira há frases tentadoras
E maciezas tais nas lânguidas peliças,
Que as tristes comoções, decrépitas, mortiças,
Ressurgem do letargo á pálidas senhoras!

E muitos hão de ter uns êxtases divinos
Ouvindo soluçar, à noite, aos violinos,
A vaga introdução duma balada aérea;

Enquanto, do futuro, ao toque da alvorada,
Se escuta, a martelar na sua barricada,
Sinistra, rota e fria, a lívida Miséria.
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ANTIGO TEMA

Passai larvas gentis na rua da cidade
Aonde se atropela a turba folgazã;
A noite é um tanto agreste e cheia de humidade
Mas o tédio mortal precisa a claridade
Que em vosso olhar trazeis, visões do macadame!

Estátuas sem calor! Vós sois das grandes vasas
Dum corrompido mar as Deusas menos vis!
Se à noite abandonais, voando, as pobres casas,
E vindes pela rua enlamear as asas,
Quem sabe a fome oculta, as sedes que sentis!

A pálida Miséria em seu triste cortejo
Precisa as contrações de muitos ombros nus:
E vós ides sorrindo ao lúbrico desejo,
Do carro da desgraça arremessando um beijo
Que apenas é de lama em vez de ser de luz!

Embora! Caminhai deixando um grande rastro
De estranhas emoções, de aromas sensuais:
E ao pobre que mendiga a palidez dum astro;
Ao que sonha visões e arcanjos de alabastro
Fazei por despenhar nos longos tremedais!

Do velho idílio, a musa, há muito já que dorme,
E o arroio em vão suspira e chora a nossos pés!
A grande multidão — a vaga, a onda enorme,
Que oscila sem cessar, e gira multiforme
Às corridas, ao circo, ao templo e aos cafés,

Talvez ao pressentir que tudo, enfim, declina,
Adore a imensa luz, em vós, constelações,
Que não baixais do céu; que vindes duma esquina,
Vagando no rumor da aérea musselina,
Em plena bacanal fingindo de visões?

Oh, sois do nosso tempo! A lânguida existência
De tédios se consome e sente febres más!
Aspira ao que é bizarro: a uma esquisita essência
Que exala aquela flor que vem na decadência
E quando a toda a luz sucede a luz do gás!

Do século a voz rude apenas diz — trabalha! -
Ao poste vil amarra o lúbrico ideal
Que expira, enfim, talhando a fúnebre mortalha
Na vossa trança gasta, ó musas da canalha
Que apenas revoais do olimpo ao hospital!

Eça de Queirós (No moinho)

D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. O velho Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:

A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria.

Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre.

Andava-se nas pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor rumor; havia sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital.

Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.

Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar a outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insônias do marido não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distração era à tarde sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda aninhada no chão, brincando tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: embaixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva.

Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata; todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel do seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar toda uma humanidade pronta. Além disso, nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam à devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo daqueles inválidos, tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que administrava agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigira, uma solicitude de mãe pró-vida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimônia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a não ser a do Dr. Abílio — que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:

É uma fada! É uma fada!...

Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido da Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.

D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma profanação. Foi por isso um alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se:
tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cômoda, e queria-o todo para si, o primo, o homem célebre, o grande autor...

Adrião porém recusou:
Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... o que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um moinho e uma represa que são um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?

Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um  sujeito extremamente simples, – muito menos complicado, menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abominàvelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... o que ele desejava era vendê-la.

Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!... Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!...

Mas que superioridade, prima! — exclamou Adrião maravilhado. — Um anjo que entende de cifras!

Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...

No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, Acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contato daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido - e a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença.

Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida diversa daquele abafamento de alcova... Ela também assim o julgava: mas quê! o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama... Ele então lamentou-a. decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido... Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença...

Que hei-de eu desejar mais? — disse ela.

Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria — que falou da paisagem...

Já viu o moinho? — perguntou-lhe ela.

Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima. Hoje é tarde.

Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila. Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã punha entre eles como que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, dum respeito tocante, uma atração que a seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor - a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que ele se tornava assim depositário das suas tristezas.

Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interessado por aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de ano gótico entre fisionomias da mesa redonda. Tudo nela concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...

Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntariamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava.

O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios  de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era dum alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno duma cena de romance, ou, melhor, da morada duma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil, um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, duma linha tão pura, sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado, mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os - e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.

Ficar aqui? Para quê? — perguntou ela, sorrindo.

Para quê? Para isto, para estar sempre ao pé de si...

Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo:

Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...

Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.

E eu venho ajudá-lo, primo! - disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado.

Vem? — exclamou ele. — Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar esses melros!

Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira da água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus negros de verão...

E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, dum só beijo profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:

É malfeito... É malfeito...

Ele mesmo estava tão perturbado - que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele
pensou:

Fui um tolo!

Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi à casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malva as feridas que ele tinha na perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe...

A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência: encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela escondendo a face dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica; e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios. Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da natureza que atravessava, sùbitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, duma ternura varonil e forte, para a cativar... Esse amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta idéia, esta visão: – Se ele fosse meu marido! Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se na sua força... Depois ele deu–lhe aquele beijo no moinho.

E partira!

Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela - a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua costura - lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha desses abatimentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:

Quando se acabará isto?

Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e morrera dum abandono. Essas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas.

Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...

O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir - dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.

Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...

E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.

A Santa tornava-se Vênus.

E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: – e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.

Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.

FIM

Fonte:
http:\\www.nead.unama.com.br

Eça de Queirós (Análise Crítica do Conto “No Moinho”)

(Análise por Miriã Lira, em 30/08/2012)

O conto “No Moinho” de Eça de Queirós traz como personagem principal, Maria da Piedade que “era considerada em toda a vila como uma senhora modelo” que dava orgulho à vila por “sua beleza delicada e tocante; era loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros”, enfim, era considerada “uma fada”. Essa descrição denota a opinião da sociedade sobre a personagem e todas as características reforçam o ideal romântico de mulher apresentado logo no início da narrativa.

De família modesta, mãe “desagradável” e pai bêbado, Maria da Piedade vê como única saída casar-se com João Coutinho, um homem doente, mas rico, com quem teve três filhos, duas meninas e um menino que por herança genética todos nasceram doentes. Assim, restava-lhe viver como enfermeira, cuidando das doenças do marido e dos filhos. Como consequência sua vida é sombria, pois está sempre “vestida de preto” e sua casa parece “lúgubre”.

Então, João Coutinho recebe uma carta de quem tinha orgulho, seu primo Adrião, romancista de Lisboa, anunciando sua chegada para a venda de uma propriedade rural. Imediatamente João manda providenciar estadia para o primo e isso deixa Maria da Piedade apavorada por ter em casa um estranho que quebraria a rotina da residência, porém o primo chega e deseja ficar na estalagem de Tio André para não perturbar a ordem da casa de Coutinho.

Adrião desejava vendar uma fazenda, mas não encontrava comprador, então, João Coutinho ofereceu Maria Piedade para ir com ele à fazenda, pois era boa conselheira e entendia dessas coisas. O primo, então, comentou: um anjo que entende de cifras. E, pela primeira vez, Maria Piedade se sentiu valorizada com o dizer de um homem, pois “corou” com as palavras de Adrião. É nesse momento que ela começa a enxergar o primo com os olhos da alma.

No dia seguinte, encaminharam-se à fazenda e o narrador descreve o dia como “fresco e claro”, características que traduzem tranquilidade e metaforiza o paraíso que antes era inexistente, por ser lúgubre e cheio de trevas.

Decidiram, posteriormente, ir ao moinho para que Adrião conhecesse. “Já viu o moinho? – perguntou-lhe ela. Tenho vontade de o ver, se mo quiser mostrar, prima.” Essa parte do diálogo mostra que os dois já se sentiam atraídos e pouco faltava para que essa atração os unisse. Nesse dia, Adrião vai para a estalagem e percebe que está “interessado por aquela criatura tão triste e doce”, diferente das demais mulheres que ele conhecera, já que era um homem desejado por todas.

Ao descrever a mulher desejada, Adrião demonstra o conhecimento que tem da alma feminina, adquirido com seu último livro, Madalena, pois a obra exigiu “um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil” que o consagrou como mestre na análise da mulher. Após observar aquela que ele chamava de anjo, pôde concluir que ela era presa àquele lugar, à tradição e “bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade”. Nesse trecho é possível perceber o que Adrião já planejava acontecer nos próximos dias.

Como combinado, foram ao moinho e cansada da caminhada, Maria da Piedade senta-se numa pedra e Adrião começa a comparar o moinho com o paraíso e a imaginar como seria se eles para sempre ficassem ali. Então, ela fica corada e ri. Mas, de repente, ele a abraça e a beija profundo e interminavelmente, colocando-a contra seu peito, “branca, como morta”. A palavra morta nesse trecho é usada de maneira dicotômica, representando a morte e a vida, pois até esse momento Maria da Piedade não vive para si e não é feliz, pois vive apenas para o marido e os filhos. Assim, Adrião com um beijo a desperta, como se fosse a Bela Adormecida, para a vida. Após beijá-la, ele fica contente com sua “generosidade” como se ele soubesse as possíveis consequências do beijo na prima, que se evidenciam no trecho onde ele afirma que “de resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe...”.

Maria da Piedade ao sentir e visualizar outras possibilidades para sua existência, além de ser enfermeira do marido e dos filhos, reflete sobre a vida que tem e começa a achar os seus “fardos injustos”, então, compreendemos que quando não se conhece outros “sabores”, resta o contentamento com o que se tem. A partir dessa conclusão a personagem começa a pensar em apressar a morte do marido e a deixar os filhos sujos e sem comida.

Injustiçada, restava-lhe o amor que sentia por Adrião e “refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa”, portanto, ela passara a sonhar, a imaginar aquele homem forte, extraordinário, belo como sendo a razão de sua vida, pois antes de conhecê-lo estava morta ao lado de um homem fraco e doente que era João Coutinho. Inclusive, é possível fazer uma comparação semântica entre o nome de Adrião que reflete expansividade, força, enquanto o de João Coutinho com o diminutivo o faz pequeno e fraco.

Amando Adrião, Maria da Piedade queria tudo “que era ou vinha dele”, por isso “leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara e morrera dum abandono”, nesse momento ela se identifica com Madalena, pois amara e também fora abandonada por Adrião. E lendo, se acalmava e revidava a vida que vivia, pois pegava emprestado essa vivência quando chorava “as dores das heroínas de romance”, logo, “parecia sentir alívio às suas”.

Ela passou a sentir necessidade de ler romances constantemente, assim “criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado”. É nesse momento que a personagem começa a idealizar, coisa que não fazia antes, também começam aparecer revoltas, ocasionadas pelas interrupções à suas leituras românticas.

“O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se a um ser vago que era feito de tudo que a encantara nos heróis de novela”, Maria da Piedade queria ser amada, importante como mulher e possuída pelos homens aos moldes dos romances que lia, pois assim ela preencheria seu vazio com seus amantes que, em geral, eram fortes, o oposto da figura raquítica de seu marido.

“À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.” O momento noturno propiciava reflexão e solidão à Maria da Piedade que mesmo rodeada de amantes, terminava solitária e chorosa à noite. Então, no moinho, a figura de Santa se transforma em Vênus, deusa do amor responsável pelo prazer, pelo sexo e pela satisfação de maneira inconsequente, sendo na Odisseia aquela que também trai.

É preciso reconhecer que Maria da Piedade desejou ser outra antes da sua transformação em Vênus, pois tinha “momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença...”, portanto, não se muda uma pessoa, apenas lhe mostra o caminho, as escolhas e Adrião lhe mostrou um mundo novo, cheio de opções além das enfermidades, a fez livre e por se tornar livre, acabou escandalizando “toda a vila” que tinha princípios morais opostos aos adotados por Vênus.

A traição ocorrida em “No moinho” tem uma mera semelhança com o romance, do mesmo autor, “O Primo Basílio”. No conto, Maria da Piedade mesmo tendo um marido, não tem um companheiro, pois este vive enfermo, assim como Luísa no romance, que tem um marido ausente. Ambas sofrem por essa condição e com a chegada dos primos Adrião e Basílio, respectivamente, a situação é intensificada, culminando no adultério. As duas mulheres, antes vistas como anjos, caem em traição e viram “Vênus”, sendo malvistas pela sociedade a que pertencem.

Ao abordar esse tema (adultério), Eça de Queirós pretende criticar a influência dos romances nas traições matrimoniais, fato bastante evidenciado no conto, onde o narrador afirma que “o romantismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços”. Devido a essa crítica ao idealismo romântico o conto se encaixa na perspectiva naturalista, pois o instinto prevalece à razão, por meio do espaço corrompido moralmente pela traição, assim, provando que o meio é capaz de influenciar o homem.

Fonte
http://www.coladaweb.com/resumos/no-moinho-analise-do-conto-de-eca-de-queiros

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

José Feldman (Francisco Pessoa: “Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso”)

Esta semana recebi o livro de um brilhante escritor brasileiro, que devorei (metaforicamente falando… o livro) até hoje. Talvez eu seja meio suspeito por tal afirmação, pela amizade que vimos desenvolvendo no decorrer do tempo, desde que tivemos contato há poucos anos, atualmente irmãos de glicose.

O poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935) dizia: "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem.  Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."

Eu, como grande parte da população daqui do Paraná, sempre pelo pouco que estudamos e lemos, acreditamos que os grandes escritores além dos paranaenses, estivessem no eixo Rio-São Paulo, mas o Brasil é tão vasto, e nossa crença em nosso conhecimento ser enorme, é ledo engano. Vai muito além, e confesso que em minha ignorância de sulista, tomei conhecimento que o nordeste do Brasil possuía grandes escritores, no caso que especifico agora, os cearenses. Romancistas, contistas, cronistas, poetas, trovadores, uma lista de nomes que mostra que a literatura não é somente uma estrela, mas uma constelação enorme de pessoas que enobrecem as páginas da cultura brasileira. O fato é que simplesmente por falta de acesso, por falta de divulgação, enfim por diversos fatores que nos obstruem a ampliação de nossa consciência, ou em palavras mais tecnológicas, não são inseridos dados no HD de nosso cérebro.

Fernando Pessoa foi um grande poeta português que é do conhecimento de boa parte da população brasileira, mas sem querer desmerecer o nome deste poeta que sempre fez parte de minha biblioteca particular, também possuímos o nosso Pessoa. No caso, Francisco Pessoa, um cearense que no livro que lançou recentemente “Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso”, coloca-nos seja em trovas, poesias, décimas, cordéis, crônica e contos a sua arte, que divide conosco.

Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, nos diz: Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. / Põe quanto és no mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive.

Nosso Pessoa segue este poema, e se mostra grande no que faz, e faz com que o brilho do lago, seu reflexo se estenda muito além de si mesmo, de sua cidade (Fortaleza) e ilumine quem quiser ser iluminado.

Francisco, Chico para os amigos, nos diz : Meus sonhos por si navegam/ levando-me ao transcendente, / por mil estradas enxergam /bem mais do que enxerga a gente.

Nos mostra como na trova acima, que buscamos novos caminhos, mas tão enraizados que estamos em nossas visões, não vemos todos os caminhos que podemos seguir. Este é Chico, mostrando a sua arte de versejar, percorrendo o caminho entre o lírico/filosófico e o humorístico: Feliz da vida se logra/O Zeca exibe o caneco/que ele trocou pela sogra/  na feira do cacareco.

Sempre temos a visão do médico, aquela pessoa que de certo modo acredita ser Deus, arrogantes, contudo existem exceções. Chico é uma delas. Médico oftalmologista, uma pessoa simples, calma, alegre e sempre pronta a amizades, que com seu falar eloquente parece querer abraçar o mundo.

Segundo Alberto Caeiro (outro heterônimo de Fernando Pessoa): Sejamos simples e calmos, / Como os regatos e as árvores, / E Deus amar-nos-á fazendo de nós / Belos como as árvores e os regatos, / E dar-nos-á verdor na sua primavera, / E um rio aonde ir ter quando acabemos!…

Somos o que somos, mas nem sempre o demonstramos para as pessoas que nos rodeiam. Muitas vezes usamos máscaras para disfarçar o que nos vêm no íntimo. E a cada situação, uma nova máscara, um novo eu, que não mostra a sua verdadeira face. Em seu livro, Chico em uma décima nos diz em “O Palhaço”: A vida se nos faz meros palhaços…/Sorriso solto num choro prendido, / Querer que é dado nunca agradecido / Saltar ao vento sem pisar os passos. / Tragar o fumo dos prazeres baços / Embebedar-se tanto pra esquecer, / Sentir-se ser alguém, mesmo sem ser, / No picadeiro, o aplauso, a falsa glória, / Imagem tão real quanto ilusória / Pranto da morte rindo pra viver!

Mais uma do Fernando Pessoa: “Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

Mas Chico vai além, ele vive e cria. Cria a vida e vive a criação, este é o ideal do verdadeiro artista. Faz que “Não há placa de chegada/na minha estrada da vida…/faço de cada parada/ novo ponto de partida.

Ele segue adiante, cria, sonha, deseja:
“Se eu fosse…
Um Malba Tahan, calcularia cm segundos as horas de alegria que a vida nos dá./ Um Einstein, criaria um antídoto para entibiar a bomba que certo dia flamejou o céu de Hiroshima./ Um Alexandre, o grande, teria conquistado o coração do incrédulo, fazendo-o crer no Grande Arquiteto./ Um Ataúlfo Alves, no meu arrependimento, diria como ele disse: aquilo sim, é que era mulher,/ Um Graham Bell, teria inventado um telefone que, pudesse eu, sentir o odor dos teus lábios, e que minhas frases ouvisse maviosas./ Um Braille, transportaria os dedos para uma zona do cérebro./ Um Barnard, só transplantaria coração de um homem bom para um homem de bem./ Um Bill Gates, tornaria virtual a violência que envolve os povos.
(…) Um Salomão, eu seria um sábio e teria trezentas mulheres?., acorda, Pessoinha!!!”


Um outro amigo, o poeta potiguar Ademar Macedo (1951 – 2013) : “De todos os sonhos meus,/ realizei o mais fecundo: /ser um Poeta de Deus / e mandar versos pra o mundo!

Isto é que faz nosso Pessoa, pinta a aquarela das palavras com sua magia.

Chico em “De Pessoa pra Pessoa”
Poesia é um sonho e, se sonhado,/ Sobre nuvens volutas, pictóricas,/ Rédeas soltas sem bridas, metafóricas,/ Faz do poeta um ser místico e alado./ Quem o lê, leia certo ou leia errado, / Sempre os versos encontram seu intento…/ Lamentar cada um com seu lamento, / E sorrir cada um com seu sorriso, / Coração de poeta é sem juízo/ E a razão de fingir é seu talento!

Aproveitando o se falar em Pessoas, Clevane Pessoa, de MG nos diz neste trecho de seu poema Pensares: Meus pensamentos são mares/ De muita profundidade, / Mas que rasantes nas areias / Lambem o calor que encintram, / Ajudam a esfriar as orlas / Com suas ondas agitadas... / Às vezes fazem redemoinhos / Em caldeirão perigoso ... / Podem chegar a maremotos, / Em fenômenos encadeados, / Mas a maré esperada / Somente depende dos ciclos / Caprichosos das faces de dona lua...

Chico mostra através de suas trovas o caminho que escolhemos seguir. Cada qual faz o seu destino. "Toda colheita contém/ uma lição de moral:/ quem planta o bem colhe o bem/ quem planta o mal colhe o mal"

Outro grande amigo meu, já falecido há muitos anos, Artur da Távola (1936 – 2008) dizia: “A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os pouco capazes de os sentir e entender. E....nessas moradas estão tesouros da ternura humana. De que só os diferentes são CAPAZES.”

Sem mais delongas, a pessoa que está na pessoa de Pessoa, FRANCISCO JOSÉ PESSOA DE ANDRADE REIS.

Quirino dos Santos (O Saci)

"Que tens tu, oh, Mariquinhas,
Por que é essa palidez?
Tristeza que nunca tinhas
Te pousa na linda tez.

Ainda há pouco no terreiro
Saltavas a traquinar;
Nesse teu rosto trigueiro
Não se via um só pesar;

Sorrias sempre contente,
já hoje não sorris;
Cozias tão diligente
Cantando sempre feliz.

Já hoje tua cantiga
É toda cheia de dor,
E Aninhas, tua amiga
Não buscas mais com amor.

No quintal as tuas flores
Todas pendem a morrer;
Do sol os quentes ardores
Não lhes vais arrefecer.

Que tens tu, oh, Mariquinhas,
Por que é essa palidez?
Tristeza que nunca tinhas
Te pousa na linda tez!

Mariquinhas, minha neta,
A causa toda já sei,
De andares tão inquieta;
Agora já adivinhei!

Aquela vasta silveira
Além dos campos ali,
É assombrada a noite inteira
Por um medonho Saci.

É ele que vem horrendo
Montar nos bons animais;
A noite toda correndo
Ai! quanto susto nos faz!

Foi ali ele que tu o viste,
Que a tua face beijou...
Depois disso é que assim triste
A minha neta ficou.

Mariquinhas, minha neta,
Neta do meu coração,
Não quero te ver inquieta,
Inquieta mais assim, não!

Vai contrita e humilhada
Te prostrar aos pés de Deus;
Expiar, jura, emendada
Os graves pecados teus.

Que hás de ter infinito
Prazer imenso a fruir,
E o Sererê maldito
Para longe há de fugir.

Eia pois, oh Mariquinhas,
Finda a tua palidez;
Tristeza que nunca tinhas
Não tenhas mais desta vez!"

Assim falou a velhinha
No seu sisudo falar;
Aconselhou a netinha
E logo pôs-se a rezar!

Mariquinhas magoada
Não responde à velha, não!
Ai! pobre, de envergonhada
Ficou a olhar para o chão.

Mas de noite a janelinha
Do seu quarto se entreabriu,
E houve quem visse asinha
Que um vulto a ela assumiu!

Como ela deixa a desora
Um vulto junto de si?!
Venham cá dizer-me agora
Que não seria o Saci!…

Fonte:
A Casa do Bruxo

Stanislaw Ponte Preta (A charneca)

Então, na esperança vã de me livrar do tormento de amar-te, adormeci um pouco. E se digo vã, amor, é porque logo fiquei a sonhar contigo, a te dizer quanto vai em mim de amor, doce, terno, perdido amor às vezes; candente, nervoso, incontido amor, tantas vezes.

Oh os sonhos de amor, querida! Nele eras tão outra, tão Julieta, tão Isolda, tão Marília. E eu tão o Romeu do segundo ato, tão o Tristão da primeira ária, tão o Dirceu de antes do desterro!

Vinhas lentamente para os meus braços ansiosos, terna e eterna, simples e definitiva, como o barco que parte para o naufrágio. Tu, mulher que já caminhavas para mim, antes mesmo do dia em que te conheci. Para mim, que vivia na certeza de que de algum lugar virias, imponderável, como soem ser os destinos do amor.

No sonho, sorríamos, no sonho éramos nós dois para sempre e um dia. Tu, esquecida de tantas ingratidões, eras o mais puro dos pecados. Eu, vivendo o momento em que o homem prova a si mesmo ter um pouco de eternidade, olvidava antigos dissabores, as noites sofridas, as lágrimas caídas, a dor.

E tão glorioso fiquei, que em mim couberam todas as glórias, abateram-se sobre minha cabeça todos os hinos, e se Beethoven eu fosse, passaria, num átimo, da "Patética" à "Heróica". Que incontida alegria! Desprendí-me de ti e saí a correr pela charneca.

Na verdade eu nem sei o que é charneca, mas isto fica bacana pra burro, em romance inglês.

Ciranda da Primavera (Seleção por Simone Borba Pinheiro) Parte final

THAIS S FRANCISO
-
Adeus, Inverno!..

-
O Inverno já se despede mais uma vez,
deixando que o gelo se derreta,
e umedeça a terra,
onde sementes novas, semeei!..

Por onde caminhei,
semeei minha essência.
Semeei quem eu sou, como sou,
ora sorrindo, ora pensativa, mas
sempre carregando o amor no coração!..

A Primavera já se aproxima,
e, encontrando o solo umedecido,
deixará que o verde se renove, em novos brotos,
e, que desabrochem as flores, em variadas cores,
para encantar e colorir a vida que quer viver!..

Como a neve a gotejar,
deixo que minhas lágrimas caiam neste chão,
despedindo-me também, desta minha solidão,
pois como a estação que recomeça,
também eu vou recomeçar,
pois já é tempo de sorrir, e,
da tristeza se despedir!..

Vem Primavera!!
Vem colorir nossos jardins,
perfumar a nossa alma,
alegrar borboletas e beija-flores,
na colheita do néctar da vida, e,
nos ensinar mais uma vez
que sempre há tempo
para recomeçar novas eras
=================

TONHO FRANÇA
-
Primavera

-
Vem, abre teu coração, tua cartas, apaga as marcas
as dores, renova o coração
o vento em acordes suaves de bandolins
traz possibilidades de um céu jasmim
e de novo podemos refazer as aquarelas
somos nós o pincel, as tintas, a inspiração
Vem, há flores nas ruas, por pura intuição, magia
e a poesia de renascer, vem do Universo, de algo maior
sempre maior que se espera, é a estação do céu,
É Deus sorrindo- primavera.
==================

WILAME LIMA SILVA
-
Primavera

-
Lá vem a primavera com todas as suas flores.
Deixou pra trás outras estações e entre flores apareceu
Apareceu bela, formosa, cheia de encanto, de deslumbre.
Cheia de perfume, cheia de cor.
Cheia de ar que insinua o amor.

Lá vem primavera com o sol mais brilhante
Lá vem a primavera com as cores da natureza em si
Lá vem a primavera mostrando toda a sua cor
Cor das flores, cor das matas, do azul do céu, e tantas outras cores à mostra
Lá vem a primavera com pássaros entoando cantos primaveris
O mundo mais lindo parece ficar

Primavera cantada por tantos poetas
Cantada em prosas ou versos
Cantadas em recitais de amor
Primavera, estação festiva
Nesta estação Deus pintor se tornou

Usou Deus nesta estação uma mistura celeste
E sobre a Terra derramou
As flores foram as quem mais absorveram esta mistura
Ao mundo seu colorido mostrou
Enfeitando assim a primavera
Nunca outra estação mais bela se tornou.

Lá vem a primavera
Que seja bem vinda, querida estação
Recebemos-te, primavera
Com a alegria imensa
Mostrada em nosso coração
===================

YARA NAZARÉ
-
Rainha Primeira!

-
Hoje cedo, o sol iniciou seu ocaso
Tingiu o céu de um tom rosado
Os pássaros cruzaram os ares
Revoada de pardais e bem-te-vis
Em um belo e magistral bailado.

No regato as águas cantaloravam
No combinado ritmo da melodia
Que se ouvia através dos bosques
No colorido de todas as flores
Rosa carola, gérberas e lírios
Girassóis, orquídeas e margaridas.

E as cigarras silenciaram...
Em respeito a sua chegada
A Rainha, a mais bela das estações
A inspiradora dos grandes amores
Sua majestade, a PRIMAVERA!
====================

YARA NAZARÉ
-
Primavera

-
Eis que chega a primavera
Trazendo consigo os olores
Das flores as mais singelas
O chilreio de pássaros em festa
Em sintonia brindam nos caminhos
Saudando a ti, estação primeira.

Aquela que embala nosso andar
Faz estampar nas faces, o sorriso
Entre alamedas lindas e floridas
Embelezadas de todas as cores
Em tua paisagem tão singular.

És sim, a estação dos amores
Do pólen que a abelha conduz
Espargindo saudáveis sementes
Para a vida fluir e alimentar
No multiplicar das tuas flores!
==================

ZENA MACIEL
-
É Primavera no meu Coração

-
A alma povoada de doces lembranças sorri
Sonha com a chegada da primavera
O coração escancarado faz um ritual
solene para vestir-se de flores
Quer curar as dores,
com a essência dos jasmins
Quer apagar o passado,
com o rubro tom de carmim
Quer construir um ninho
de fantasias ,com as pétalas macias
da flor da virgem alegria
Quer agasalhar os sonhos ,
nas folhas aveludadas das orquídeas
Quer semear ilusões nos jardins
dos girassóis
Quer deleitar-se com o carinho
das pequenas azaléias
Quer perfumar os dias ,
com a suavidade das fantasias
Quer decorar a alma
com os versos da poesia
Quer eleger a primavera como
a rainha das estações
Quer entrar no espelho do tempo,
e esquecer a efemeridade da vida.

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

Nilto Maciel (O Vencedor)

A plateia lotava o auditório. Estudantes, professores, curiosos em geral, além de escritores locais e de fora. Repórteres de televisão, jornal e até rádio. Iluminavam o recinto com suas luzes importunas. Mocinhas mostravam os dentes, matronas se esparramavam nas cadeiras, velhotes faziam caretas. Ninguém queria perder um só detalhe da festa. O vencedor talvez até saísse carregado nos braços da multidão, consagrado para todo o sempre.

À mesa sentaram-se altas autoridades: o governador, acadêmicos, bispos. Ao centro, o patrocinador do concurso, doutor Miro Spiegel, que abriu a solenidade com um discurso enfadonho, de tão longo, repleto de citações — de Aristóteles a Zaratustra. Aplausos não lhe faltaram, o que o fez perder o fio da meada por diversas vezes.

— Como eu dizia... quero dizer, Nietzsche escreveu...

Ao virar a enésima folha sobre a mesa, anunciou final­mente o item mais importante de sua prédica e da festa — ia revelar o nome do vencedor. A plateia subitamente emudeceu. Suspiravam os corações esperançosos. Todos os olhos miravam a boquinha miúda do discursador.

— Vou anunciar o nome do grande vitorioso — repetiu Miro.

A multidão se fez mais atenta, pescoços esticados para a frente, mãos em concha ao redor dos ouvidos, como se a voz de Miro não jorrasse dos possantes amplificadores espalhados pelo auditório.

— O título da obra é...

Miro Spiegel empalideceu, sorveu meio copo de água, esfregou o lenço na testa.

— Desculpem, estou emocionado.

Alguém gritou um desaforo. Exigia brevidade.

— A obra vitoriosa foi Ao vencedor, as batatas.

Houve palmas, muitas palmas, na plateia e na mesa. O go­vernador chegou a sorrir, acadêmicos tossiram, fungaram, pigarrearam, bispos beijaram crucifixos, e Miro Spiegel não parava de enxugar o suor do rosto. As luzes dos repórteres provocavam muito calor. E os corpos da multidão também.

Miro Spiegel, diziam seus biógrafos mais impiedosos, quer às mesas dos bares, quer às cadeiras dos lares, alimentou duran­te anos seguidos o sonho de ter editado um livro. Não numa edição qualquer, por conta própria, mas por editora de peso, que aprovasse sua obra. Escreveu desde a mais tenra barba e nunca conseguiu um só editor. Nem mesmo promessa. Participou de todos os concursos literários — nacionais, estaduais e municipais — e nunca sequer lhe devolveram os originais. Não desistia, porém, da mania de ser literato. Ou de conviver com a literatura. Daí o patrocínio do importante prêmio denominado “Machado de Assis”, para romance inédito. O ganhador teria a obra editada por qualquer das grandes editoras do país, receberia uma quantia em dinheiro equivalente ao valor de luxuoso apartamento em Copacabana e seria divulgado nacionalmente. Tudo patrocinado pelo próprio Spiegel, acionista majoritário de um conglomerado de empresas do ramo de vidros.

A festa, então, chegava ao seu clímax. A plateia inteira já conhecia o título da obra vitoriosa. Logo a imprensa divulgaria a notícia para os quatro cantos do país.

— Não sei se está escrito aqui o pseudônimo ou o nome verdadeiro do autor — retomou a palavra Miro. — Quero crer que possa se tratar de uma singela homenagem...

Quando declinou o nome do vencedor, a plateia riu, entusiasmou-se, gritou, aplaudiu. Não, talvez houvesse algum equívoco. Ou uma brincadeira de mau gosto. Sim, queriam empanar o brilho da festa. E o rosto de Spiegel encheu-se de rugas, sisudez, pavor. Como se a morte se houvesse instalado nele. Ainda assim, retomou o microfone:

— Senhor Miro Spiegel, ou quem quer que se esconda atrás deste pseudônimo, queira aproximar-se da mesa.

Os olhos de todos se esbugalharam, prontos a ver primeiro o vencedor. Quem seria o genial romancista? Quem seria o irônico criador de tão estranho pseudônimo?

E, saído do meio da plateia, de algum lugar do mundo, surgiu no corredor, entre fotógrafos e retardatários, uma figura sisuda, silenciosa, solerte, quase inerte, não fosse caminhar em direção à mesa. Pausada e misteriosamente andava, sob os olhares estupefatos da plateia e da mesa.

— Quem é ele? — murmuravam.

Ninguém parecia conhecê-lo, pois todos o olhavam como se o vissem pela primeira vez.

— Talvez não seja o vencedor.

— Algum engraçadinho.

— Um doido qualquer.

O homem aproximou-se do tablado, subiu mecanicamente os degraus, e já Miro Spiegel o esperava, de pé, pronto para os parabéns da eternidade.

Sobre a mesa brilhava uma medalha de ouro, junto a um diploma em pergaminho e um cheque milionário.

A plateia, calada, parecia encantada, como se o tempo tivesse parado, toda voltada para o instante supremo. E então o desconhecido aproximou-se mais e mais de Miro Spiegel, apertaram-se as mãos, abraçaram-se e fundiram-se num só.

Fonte:
Nilto Maciel. As Insolentes patas do Cão

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 7: Os odres vivos e o peso

A Rã falou nos percevejos, uns bichinhos inexistentes ali no sítio, e teve de contar a história dos percevejos do Rio.

- São fedorentíssimos - disse ela. - Eu tenho verdadeiro horror a esses monstros noturnos. Chupam o sangue da gente durante o sono e ficam gordos que mal podem andar. E quando esmagamos um, Emília, ah, que cheiro! Empesta o ambiente. Eu, só de me lembrar, já sinto enjoo de estômago.

Emília teve uma ideia .

- Pois podemos reformar os tais percevejos dum modo muito simples: fazendo que em vez de mau cheiro eles tenham cheiros deliciosos, melhores que todas as essências das perfumarias. Desse modo eles ficarão importantíssimos no mundo. Serão pequenos odres vivos cheios de perfume. Sabe o que é odre?

A Rã sabia. Lembrou-se logo daqueles odres de vinho que D. Quixote espetou com a espada, derramando todo o vinho do estalajadeiro.

- Pois é - continuou Emília. - São vasilhas de pele ou couro que a gente de dantes usava. Dona Benta tem um pequeno odre de borracha que enche de água quente para aquecer os pés nos dias muitos frios - mas não diz odre - diz "a minha bolsa d'água. Quem tirou a minha bolsa d'água lá do banheiro? E é sempre Pedrinho quem mexe na bolsa, para certas reinações. Pois os percevejos poderão ficar odres vivos com perfumes dentro. E as perfumarias podem fazer criações de percevejos de todas as qualidades. As moças chegam e pedem: "Quero uma dúzia de percevejos Bouton d'or, ou Kananga do Japão, ou Heliotropo", e quando quiserem perfumar-se basta que tirem um do chiqueirinho de cristal (que irão ter em seus toucadores) e o espremam no lenço, no peito, na nuca, na ponta das orelhas. E saem para a rua, todas vaidosas. E quando duas se encontram, uma pergunta para a outra: "Que percevejos você usa, Quinota? Dos nacionais ou estrangeiros?" E a Quinota, que é moça grã-fina, responderá orgulhosamente: "Só uso percevejos de Paris, da criação de Coty" - e lá se vai rebolando que nem uma cotia.

A Rãzinha aprovou a ideia - e de ideia em ideia as duas chegaram ao peso. Emília implicava-se com o peso das coisas.

Cada vez que queria mover um objeto, uma cadeira ou um pedaço de pau, tinha de chamar o Visconde ou tia Nastácia.

- Para que peso? - disse ela. - Se as coisas não tivessem peso o mundo seria muito mais interessante. Eu acho as cadeiras pesadíssimas, coitadas. Só gente grande pode com elas. Vamos reformar a cadeirinha de pernas serradas de Dona Benta?

Como essa famosa cadeira estivesse ali no quarto, fizeram imediatamente a reforma: suprimiram lhe o peso. Mas aconteceu uma coisa imprevista. A pobre cadeira ergueu-se no ar e ficou grudada ao forro. As duas reformadoras espantaram-se daquilo. Súbito, Emília compreendeu o fenômeno e berrou:

- Já sei! O Visconde me explicou isso. O peso é o que prende as coisas á superfície da terra. Ele diz que o peso vem duma tal força da gravidade, que puxa todas as coisas para o centro da terra. Essa força da gravidade é a atração, ou força centrípeta. Você não imagina. Rã, como o Visconde sabe coisas! Um danadinho! Ele disse também que o contrário da força centrípeta é a força centrífuga - que em vez de puxar as coisas para o centro da terra. Foi o que aconteceu com a cadeira de Dona Benta. Como nós destruímos o peso dela, a força centrípeta desapareceu, só ficando a força centrífuga - e lá foi a cadeira parar no forro. E se este quarto não tivesse forro, a pobre cadeira se sumiria para sempre no espaço infinito ...

Aquela experiência fez que Emília respeitasse o peso de todas as outras coisas, pois do contrário o sítio ficaria mais nu de objetos do que a cabeça do Quindó da farmácia era nua de cabelos.

Nisto o cuco lá da sala de jantar começou a dizer as horas - hu-hu, hu-hu ...

Emília contou dez.

- Dez horas já! Como é tarde ... Por isso é que estou sentindo tanto sono. Está aí uma coisa. Rã, que podemos reformar: o sono - ah, ah, ah... e bocejou.

- Como? - quis saber a Rã.

- Podemos, por exemplo... - começou Emília, mas abriu a boca, soltou mais três "ahs" e foi fechando os olhinhos - e o sono das criaturas humanas escapou da reforma.

Emília dormiu - e que lindo soninho! Como ela sabia dormir bem! A Rã reclinou-se na cama; com a cabeça apoiada numa das mãos e o cotovelo fincado no travesseiro, ficou a contemplá-la e a imaginar mil coisas. - "Que pena as crianças do mundo não poderem ver o que estou vendo!" - pôs-se a pensar lá consigo. - "Emília dorme como um anjo. E quem sabe se Emília não é de fato um anjo do céu que anda pelo mundo disfarçado em gentinha?" - e examinou-lhe as costas para ver se não havia algum sinal de toco de asa.

Havia, sim, duas leves saliências com muito jeito de serem tocos de asas - e a Rã ficou na dúvida. Seria realmente um anjo disfarçado em gentinha"?

A Rã adorava a Emília. Sabia de cor todas as travessuras da Emília, todas as "piadas" da Emília, todas as asneirinhas da Emília, todas as mas criações da Emília, e agora considerava-se a menina mais feliz do mundo, porque entre todas as meninas do mundo só ela estava tendo o privilégio de ver a maravilha das maravilhas que era o soninho da Emília.

- Ah, quando as outras souberem! Quando souberem que eu estive aqui, falando com ela, brincando com ela, deitada na caminha dela, vendo-a dormir e sorrir...

Algum sonho lindo devia andar reinando na cabeça da Emília, a avaliar pelo sorriso de enlevo que animava o seu rostinho moreno - moreno claro. "Nem isso as outras meninas sabem", pensou consigo a Rã, "que a Emília é moreninha cor de jambo. Nem sabem que tem cabelos castanhos - castanho escuro", e aproveitou-se da ocasião para arrancar um daqueles fios, o que fez Emília trocar o sorriso do sonho por uma caretinha. A Rã enrolou o fio de cabelo, murmurando mentalmente; "Vou guardá-lo no meu exemplar das REINAÇÕES. Fica sendo o meu marcador de página."

Longo tempo ficou a Rã a admirar aquela prodigiosa criaturinha que nasceu boneca de pano das mais ordinárias e foi evoluindo até tornar-se o que já era. E um pensamento lhe acudiu; "E se ela continua a evoluir e vira anjo de verdade, dos de asas, e foge para o céu? Qu se vira fada, como aquela fada Sininho do Peter Pan?" E a imaginação da Rã começou a cabriolar que nem cabritinho novo até que o primeiro "ah, ah, ah!" do sono veio, e depois veio um segundo - e afinal dormiu também.
-------------------
continua...