sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Nilto Maciel (Passeio)

Se a escada parasse de súbito, eu rolava e levava de roldão todo o mundo. Talvez fosse mais engraçado do que la­mentável. Não, não posso cair nem machucar essa gatinha. É mesmo um amor de garota. E por que chamar as mocinhas de gatinhas? E nós de gatos, gatinhos, gatões? Eu, um gato? Qual nada! Sou antes um macaco, um bicho qualquer. Vou me olhar direito. Mas aqui não tem espelho. A não ser os vidros das vitrines. É isso mesmo. Faço de conta que estou olhando os calçados, os preços, como um possível comprador. Que tal uns sapatos pretos? Ou marrons? Uma ruguinha aqui, uns pés de galinha. Que sapato mais gaiato! E caro.

— Diga, freguês.

— Estou só olhando.

Sujeito mais chato! Então não se pode mais olhar uma vitrine? Ui! Quase atropelo o menininho. Ele e a mãe. Deve ser a mãe, apesar de ser ainda muito nova. Ou então irmã. Até que se parecem. Bem parecidos, sim. Ela então é uma gatinha. De novo o assunto dos bichos. Não importa, é uma fofura. No mínimo, come bem, dorme bem, vive bem. Se passasse fome, morasse nos buracos da Ceilândia, do Gama, do Paranoá, eu nem reparava nela. Eu e ninguém. Mudava de vista. Mas deve morar aqui mesmo. Nas quadras mais nobres. Quem sabe, no Lago. Numa daquelas mansões. Não, madame do Lago não deve andar pelo Conjunto Nacional. Ainda mais arrastando um filho pelo braço. Cansando, suando à toa. Podia estar em casa, na beira da piscina, tomando suco. Deve estar com sede. Não sei. Eu estou. Que tal um chopinho? Ali adian­te tem uma pizzaria. Um chope e só. Nada de ficar sentado por muito tempo. Já basta o serviço. É bom passear, andar, olhar as pessoas. Quem sabe, encontro um conhecido, um velho amigo, um conterrâneo. Então a gente toma dois chopes. Ou quatro. Enquanto conversa. Assuntos variados: futebol, mulher, política, trabalho. “E Brasília, você gosta daqui, doutor Lima?” “Não; mas para que isso de doutor? Aqui eu sou apenas o Lima. Deixe de cerimônias”.

— Um chope, por favor.

— Sim, senhor.

Acho que estive aqui um dia desses. Sim, no mês passado. Não, foi noutro lugar. Mas aqui mesmo no Conjunto Nacional. Havia um desenhista bebendo e retratando os fregueses. Um velho, meio desarrumado, com cara de quem vive bêbado. Na parede, uns retratos expostos. Tudo feito a lápis ou coisa parecida. Desenho é uma coisa, pintura outra, não é? Pintura é aquilo dos quadros da Torre. Ruelas do interior, casarões, paisagens. Tudo colorido, pintado, artístico. Obras de arte finalizadas. Está geladinho. Para matar a sede e passar o tempo. Depois peço outro. Não, eu disse que ia tomar só um. Olhe, conheço aquele sujeito. Pelo menos tem a mesma cara, as mes­mas feições do... Quem é mesmo? Deixe ver. Do Ministério da Justiça. É ou não é? Não, é só parecido. Uma vez, no Beirute, aconteceu um caso assim. Eu pensava que era a Martinha, cheguei a falar com a pessoa e tive a maior decepção. A garota devia estar cheia de maconha. E a Martinha nem de chope gostava. Essa juventude de hoje só quer saber disso. Filhinhos-de­-papai, de deputados, ministros, juízes. Eu, não, fico no meu chopinho e não tem perigo de nada. É legal e ajuda. Embora seja droga também.

— Garçom, por favor.

Esse parece que não comeu nada hoje.

— Fique com o troco.

Fique com o troco ou fique com o troço? Troçar é bom. Quem acha ruim é quem é troçado. “Olhando para mim, bele­za? Não quer me conhecer? Que tal tomarmos um chopinho? Com pizza. Pago com o maior prazer. Quer não, é? Orgulhosa! Não importa, tem muitas por aí”. Aqui deve estar circulando agora umas duas mil pessoas. E eu talvez não conheça nenhuma. Todo mundo vivendo sua vidinha, comprando, pagando, passeando. Será que há alguém como eu? Não, todos têm um rumo certo, horário de voltar para casa, família, tudo. Mais hora, menos hora, pegam o carro ou o ônibus e voltam para os seus. A mãe para o filho, o marido para a mulher, a mocinha para os pais. Deixa esse povo para lá. Que tal subir outra escada? Pode ser que em cima encon­tre algum conhecido. Ou conheça alguém. Aquela deve ser excelente garota. Bonita é. Mas nem olha para mim. E os fil­mes de hoje? Como sempre, mulheres e homens nus. A maior sacanagem do mundo. Talvez fosse bom assistir. Passar o tempo. Não, é melhor passear, olhar as pessoas. Tantas mulheres sós. E todas lindas. Muito mais do que as do filme. Aquela ali então nem se compara com aquelas depravadas. E olhou para mim. “Que tal irmos agora para o meu apartamento? Fica na Asa Norte. Garanto que você vai gostar. Você e eu. Quem sabe até a gente leva adiante essa aventura. Casamento, filhos, um lar. Ou só uma união mais ou menos passageira. Todo dia a gente vem passear pelo Conjunto Nacional. Ou então viaja para o litoral, de férias. Lua-de-mel em Guara­pari. Ou aqui mesmo no Hotel Nacional”.

— Como é seu nome, gatinha?

Fez que nem ouviu, a cadela. Deve se julgar intocável. Ih! está falando com o guarda. Mas eu não sou um peão qualquer. Além do mais, estou só passeando comigo mesmo. Pacificamente.

Fonte:
Nilto Maciel. As Insolentes patas do Cão.

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