Gostei muito da sua última carta sobre a reforma das cidades e das gentes. Adoro você, Rã, porque você não concorda.
- Ali, não concordo mesmo! - exclamou a Rãzinha. - Vivo não concordando. Em nós, gente, por exemplo, quanta coisa errada! Por que dois olhos na frente e nenhum na nuca? Eu, se fosse reformar as criaturas, punha um olho na testa e outro na nuca. Desse modo eu dobrava a segurança das criaturas.
- Pois eu aumentava o número de olhos - disse Emília.
- Por que dois só? Assim como temos dez dedos podíamos ter dez olhos. Eu punha quatro na cabeça, a norte, sul, leste e oeste. Eu punha dois nos dedões dos pés, para evitar as topadas. Outro dia Pedrinho deu uma topada num tijolo que quase arrancou a unha. Com um olho em cada dedão não há perigo de topadas - nem de espinhos e estrepes. E eu também dava olhos a cada dedo minguinho. O minguinho é uma verdadeiro vagabundo nas mãos. Não faz nada. Fica o tempo todo assistindo ao trabalho dos outros. Ora, se o "mingo" tivesse um olhinho na ponta, podia prestar bons serviços. Às vezes a gente quer enxergar numa cova de dente ou ver se há cera no ouvido e não pode. Com o olho do "mingo", nada mais fácil.
- E esse olho do minguinho - ajuntou a Rã - podia ser como os microscópios, capaz de enxergar coisinhas invisíveis aos olhos comuns. Mas haveria um inconveniente, Emília. As mãos lidam com tudo, trabalham muito, e esses olhos do minguinho haviam de viver se enchendo de cisco ou se arranhando - e
que dor!
- Nada mais fácil do que evitar isso - lembrou Emília.
- Basta que usem dedaizinhos. Ficam cobertos quando não tiverem o que fazer. Mas por enquanto não podemos reformar gente, porque não há gente aqui. Todos os humanos do sítio foram para a Europa.
- E Rabicó?
- Esse é desumano e quadrupedíssimo. Já pensei muito na reforma de Rabicó. Podemos transformá-lo em bípede e ...
- E acabar com aquela mania de comer tudo quanto encontra - continuou a Rã.
- Eu faria assim: no focinho punha uma espécie de ratoeira, sempre armada; quando ele avançasse num doce ou em qualquer coisa séria, como aquela coroa do casamento de Narizinho, a ratoeira desarmava e segurava-lhe o focinho. E também dava-lhe pernas de tartaruga, para que não pudesse fugir quando Pedrinho o perseguisse com o bodoque.
Emília olhou para a Rã com ar desconfiado. Aquelas idéias pareceram-lhe absurdas. A ratoeira impediria Rabicó de comer não só cocadas e coroinhas como tudo mais, e ele morreria de fome.
- "Bissurdo", Rã! - disse ela. - A sua ratoeira acabava matando Rabicó e Dona Benta ficava danada.
- Você não me entendeu, Emília. A ratoeira só funcionaria quando ele quisesse comer coroinhãs. Para abóbora, milho, mandioca e o resto, não.
- Mas como a ratoeira podia saber quando era coroinha?
- Pelo cheiro. Eu punha um bom nariz na ratoeira.
Emília olhou para a Rã com o rabo dos olhos. Aquela menina estava com jeito de ser maluca ...
Apesar disso encarregou-a de reformar Rabicó. A Rã mudou de assunto.
- Na carta que você me escreveu, Emília, encontrei a palavra "bissolutamente" em vez de "absolutamente" e agora você disse "bissurdo" em vez de "absurdo." Está reformando as palavras também?
- Ainda não, mas já pensei nisso. Por enquanto me limito a cortar uma ou outra letra com a qual me implico. O "a" de certas palavras me obriga a abrir muito a boca - e meu queixo pode cair, como o da filha de Nhã Veva. Experimente dizer absurdo sem abrir a boca.
A Rã experimentou e não conseguiu, mas "bissurdo" ela disse quase de boca fechada.
- Pois aí está! - tornou Emília. - Tudo errado, até o "a" de certas palavras. O mundo é uma grande trapalhada. Para que, por exemplo, caudinha em Rabicó? Na vaca Mocha a cauda tem razão de ser - serve para espantar as moscas. É um espanador. Mas em Rabicó? Para que serve aquele caracolzinho pelado?
- Para enfeite do fim - lembrou a Rã.
- Que fim?
- O fim de Rabicó. Todos os fins têm caudinhas. É o remate. Mamãe diz que é feio comer e deixar o prato limpo, ou beber um cálice de licor sem deixar um bocadinho no fundo. São caudinhas. São os enfeites da boa educação.
Emília estava cada vez mais desconfiada da Rãzinha. Parecia a Alice do País das Maravilhas. Só vinha com disparates. E disse:
- Enfeites são inutilidades. Não quero saber de enfeites nas minhas reformas. Tudo há de ter uma razão científica. Aquela idéia da carta sobre a reforma do Quindim me pareceu maluca. Acho que você quer brincar com a Natureza, menina. Eu quero corrigir a Natureza, quero melhorá-la, entende? Não se trata de nenhuma brincadeira. Negócio sério. Aí está a diferença entre nós. Na última carta você falou em substituir o couro do Quindim por um veludo. Isso é asneira.
- Mas que necessidade tem Quindim dum couro duríssimo, aqui no Pica-pau Amarelo, onde não há espinhos africanos?
- Concordo. Poderá ter um couro mais fino, assim como a camurça; mas de veludo. Rã, é demais. Às vezes penso que você está sabotando a minha idéia de reforma da Natureza ...
–––––––––––
continua…
- Ali, não concordo mesmo! - exclamou a Rãzinha. - Vivo não concordando. Em nós, gente, por exemplo, quanta coisa errada! Por que dois olhos na frente e nenhum na nuca? Eu, se fosse reformar as criaturas, punha um olho na testa e outro na nuca. Desse modo eu dobrava a segurança das criaturas.
- Pois eu aumentava o número de olhos - disse Emília.
- Por que dois só? Assim como temos dez dedos podíamos ter dez olhos. Eu punha quatro na cabeça, a norte, sul, leste e oeste. Eu punha dois nos dedões dos pés, para evitar as topadas. Outro dia Pedrinho deu uma topada num tijolo que quase arrancou a unha. Com um olho em cada dedão não há perigo de topadas - nem de espinhos e estrepes. E eu também dava olhos a cada dedo minguinho. O minguinho é uma verdadeiro vagabundo nas mãos. Não faz nada. Fica o tempo todo assistindo ao trabalho dos outros. Ora, se o "mingo" tivesse um olhinho na ponta, podia prestar bons serviços. Às vezes a gente quer enxergar numa cova de dente ou ver se há cera no ouvido e não pode. Com o olho do "mingo", nada mais fácil.
- E esse olho do minguinho - ajuntou a Rã - podia ser como os microscópios, capaz de enxergar coisinhas invisíveis aos olhos comuns. Mas haveria um inconveniente, Emília. As mãos lidam com tudo, trabalham muito, e esses olhos do minguinho haviam de viver se enchendo de cisco ou se arranhando - e
que dor!
- Nada mais fácil do que evitar isso - lembrou Emília.
- Basta que usem dedaizinhos. Ficam cobertos quando não tiverem o que fazer. Mas por enquanto não podemos reformar gente, porque não há gente aqui. Todos os humanos do sítio foram para a Europa.
- E Rabicó?
- Esse é desumano e quadrupedíssimo. Já pensei muito na reforma de Rabicó. Podemos transformá-lo em bípede e ...
- E acabar com aquela mania de comer tudo quanto encontra - continuou a Rã.
- Eu faria assim: no focinho punha uma espécie de ratoeira, sempre armada; quando ele avançasse num doce ou em qualquer coisa séria, como aquela coroa do casamento de Narizinho, a ratoeira desarmava e segurava-lhe o focinho. E também dava-lhe pernas de tartaruga, para que não pudesse fugir quando Pedrinho o perseguisse com o bodoque.
Emília olhou para a Rã com ar desconfiado. Aquelas idéias pareceram-lhe absurdas. A ratoeira impediria Rabicó de comer não só cocadas e coroinhas como tudo mais, e ele morreria de fome.
- "Bissurdo", Rã! - disse ela. - A sua ratoeira acabava matando Rabicó e Dona Benta ficava danada.
- Você não me entendeu, Emília. A ratoeira só funcionaria quando ele quisesse comer coroinhãs. Para abóbora, milho, mandioca e o resto, não.
- Mas como a ratoeira podia saber quando era coroinha?
- Pelo cheiro. Eu punha um bom nariz na ratoeira.
Emília olhou para a Rã com o rabo dos olhos. Aquela menina estava com jeito de ser maluca ...
Apesar disso encarregou-a de reformar Rabicó. A Rã mudou de assunto.
- Na carta que você me escreveu, Emília, encontrei a palavra "bissolutamente" em vez de "absolutamente" e agora você disse "bissurdo" em vez de "absurdo." Está reformando as palavras também?
- Ainda não, mas já pensei nisso. Por enquanto me limito a cortar uma ou outra letra com a qual me implico. O "a" de certas palavras me obriga a abrir muito a boca - e meu queixo pode cair, como o da filha de Nhã Veva. Experimente dizer absurdo sem abrir a boca.
A Rã experimentou e não conseguiu, mas "bissurdo" ela disse quase de boca fechada.
- Pois aí está! - tornou Emília. - Tudo errado, até o "a" de certas palavras. O mundo é uma grande trapalhada. Para que, por exemplo, caudinha em Rabicó? Na vaca Mocha a cauda tem razão de ser - serve para espantar as moscas. É um espanador. Mas em Rabicó? Para que serve aquele caracolzinho pelado?
- Para enfeite do fim - lembrou a Rã.
- Que fim?
- O fim de Rabicó. Todos os fins têm caudinhas. É o remate. Mamãe diz que é feio comer e deixar o prato limpo, ou beber um cálice de licor sem deixar um bocadinho no fundo. São caudinhas. São os enfeites da boa educação.
Emília estava cada vez mais desconfiada da Rãzinha. Parecia a Alice do País das Maravilhas. Só vinha com disparates. E disse:
- Enfeites são inutilidades. Não quero saber de enfeites nas minhas reformas. Tudo há de ter uma razão científica. Aquela idéia da carta sobre a reforma do Quindim me pareceu maluca. Acho que você quer brincar com a Natureza, menina. Eu quero corrigir a Natureza, quero melhorá-la, entende? Não se trata de nenhuma brincadeira. Negócio sério. Aí está a diferença entre nós. Na última carta você falou em substituir o couro do Quindim por um veludo. Isso é asneira.
- Mas que necessidade tem Quindim dum couro duríssimo, aqui no Pica-pau Amarelo, onde não há espinhos africanos?
- Concordo. Poderá ter um couro mais fino, assim como a camurça; mas de veludo. Rã, é demais. Às vezes penso que você está sabotando a minha idéia de reforma da Natureza ...
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continua…
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