quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Selma Lagerlöf* (O Hóspede da Noite de Natal)

Há muito tempo, um grupo de boêmios e de artistas havia encontrado refúgio numa velha mansão da província de Varm-land e sob o nome de cavaleiros de Ekeby, viveram ali uma vida desenfreada de divertimentos e aventuras.

Um deles chamava-se Ruster e era um jovem músico que tocava flauta.

De origem humilde, pobre, necessitando de um lar e de família, conheceu tempos muito duros quando aquele alegre bando se dispersou. Já não tinha cavalo, nem carros, nem peliça, nem um bom cesto carregado de provisões. E teve de ir a pé de casa em casa, com uma trouxa na mão, a roupa embrulhada num lenço, para melhor dissimular o estado do colete e da camisa. Trazia toda a fortuna nas algibeiras: uma flauta desarmada, uma cabaça de aguardente e a pena.

Se os bons tempos não tivessem mudado, um copista de música como êle não teria mãos a medir, mas, ai! a gente de Varmland se desinteressava cada vez mais das melodias e das lindas árias. Dependuravam nos celeiros as guitarras, com as suas fitas desbotadas e as cravelhas já gastas, bem como as buzinas de caça, com as borlas meio desfiadas e o pó amontoava-se em camadas espessas sobre a caixa dos violinos. E à medida que a flauta e a pena de Ruster trabalhavam menos, a garrafa, que nunca o abandonava, trabalhava mais. Tornou-se um bêbedo incorrigível. Embora fosse recebido como um velho amigo, a sua chegada produzia uma certa contrariedade, e a sua saída, alegria. Estava sempre cheirando a álcool, que exalava de todos os poros, e logo ao segundo ponche, os olhos já turvos, entabolava as conversas mais desagradáveis. Era o eterno pesadelo das casas hospitaleiras.

Dias. antes do Natal, chegara a Lofdala, onde vivia a grande violinista Liliécrona, que fora também cavaleiro de Ekeby e um dos mais entusiastas daquela vida desregrada. Depois Liliécrona voltara para junto da família, e nunca mais a deixou. Quando Ruster lhe apareceu pedindo trabalho, no meio de toda a azáfama para os preparativos da festa, Liliécrona deu-lhe alguns trechos de música para copiar.

— Terias feito melhor se o tivesses deixado ir — disse-lhe a mulher; — vai prolongar o seu trabalho de tal forma que seremos obrigados a tê-lo conosco durante o Natal.

— Em alguma parte há de o passar — respondeu Liliécrona.

E ofereceu de beber a Ruster, fazendo-lhe companhia e recordando os seus dias de boêmia. No fundo, a convivência de Ruster incomodava-o um pouco e entristecia-o, mas nada queria dizer porque, para êle, as recordações de velhos amigos e os seus deveres hospitalares eram coisas sagradas.

Havia três semanas já que na casa de Liliécrona se faziam preparativos para a festa do Natal; há três semanas que tudo andava numa roda-viva, numa atividade febril. Os olhos já estavam vermelhos e cansados de fabricar tanta vela, as mãos geladas de tanto bater cerveja no lavadouro, e, lá embaixo, na tenda das provisões, não se parava um instante de salgar carne e de fazer salsichas. Mas tanto os criados como a dona da casa suportavam, sem resmungar, aquele acréscimo de trabalho, porque sabiam que, finda a tarefa e chegada a noite santa ia baixar do céu um suavíssimo encanto que abençoaria a todos: que as graças e os ditos alegres lhes saltariam naturalmente dos lábios, os pés iriam ganhar asas nas danças da terra e as antigas árias e as velhas modas esquecidas irromperiam dos recantos mais escuros da memória. E que alegres se sentiriam então!

Mas, quando viram chegar o jovem Ruster, tanto a dona da casa, como as criadas e as crianças, todos pensaram que êle lhes vinha estragar a noite de Natal.

A presença de Ruster pesava-lhes no coração. Receavam que Liliécrona ao impulso de lembranças revolvidas sentisse despertar a sua vocação nômade e que o grande violinista, que outrora não podia estar muito tempo ao lado dos seus, se perdesse novamente para a família. E como se fizera amar naqueles dois anos que tiveram a felicidade de o possuir! Dava-se a todos, era a alma da casa, sobretudo na Noite de Natal. Sentava-se então perto da lareira, não no sofá ou na cadeira de balanço, mas num grande banco, já poído pelo uso e pelos anos, umas vezes contando histórias, outras, executando música, no meio de toda a família atenta; pendente dos seus lábios e dos gestos, corria às aventuras mais loucas e galopava através do mundo até às estreias. E a vida se fazia grande, formosa e rica perante a irradiação daquela alma. Amavam-no assim como se ama a noite de Natal, como se ama o sol e a primavera. Mas a presença do jovem Ruster vinha-lhes comprometer a festa. Todas as suas canseiras para nada serviriam se o espírito do dono se afastasse de casa. E, depois, quem podia olhar com calma para aquele bêbedo sentado à mesa no meio da família honrada e piedosa, cuja alegria êle estragava?

Na véspera de Natal, pela manhã, Ruster tinha acabado de copiar a música. Falou vagamente em partir, embora tivesse intenção de ficar. Sob a influência da má vontade geral, Liliécrona respondeu, em termos também vagos, que talvez Ruster fizesse melhor em passar o Natal onde estava. Mas Ruster era orgulhoso e suscetível; retorceu os bigodes e sacudiu os cabelos que se lhe erguiam sobre a cabeça como uma nuvem negra. Que queria dizer Liliécrona? Acaso êle, Ruster, estaria incomodando? Em todas as casas de ferreiro da região o esperavam com cama feita e o copo cheio. Tinha tanto trabalho e tantos convites que não sabia por onde começar.

- Muito bem, — disse-lhe Liliécrona — não te reterei.,

Depois do almoço, o jovem Ruster pediu uma peliça e uma pele emprestadas, mandaram atrelar um trenó e recomendaram ao criado que devia conduzi-lo que fustigasse bem o cavalo, porque o tempo ameaçava nevar.

Ninguém ali acreditava que Ruster fosse gostosamente recebido debaixo de qualquer teto; mas afastavam de si aquele pensamento desagradável; regozijando-se por se verem livres de tal personagem.

— Quis ir-se embora — diziam — ninguém o obrigou. — E agora, alegremo-nos.

Todavia, quando, por volta das cinco horas, se reuniram em torno da árvore para dançar, Liliécrona, preocupado e taciturno, não se sentou sobre o escabelo maravilhoso nem tocou na tijela do ponche. Não se recordava da menor dança e o seu violino não estava afinado. Teriam de cantar e dançar sem êle. Então a mulher ficou inquieta c as crianças começaram a dar mostras de agitação. Tudo correu mal: o serão do Natal foi um fracasso completo. O arroz pegava-se ao fundo das caçarolas, e as candeias espirravam e cuspiam em lugar de arder; a lenha fumegava e nas dependências da casa penetravam golfadas de ar glacial. O criado que acompanhara Ruster, ainda não tinha regressado. A cozinheira chorava e as criadas brigavam umas com as outras. De repente, Liliécrona reparou que não tinham posto no pátio o molho de trigo para os pássaros e queixou-se amargamente daquelas mulheres, que esqueciam as tradições antigas e não tinham coração.

Mas todas compreenderam que, muito mais do que nos pássaros, era no jovem Ruster que êle pensava, arrependido de o ter deixado partir na Noite de Natal. Meteu-se no seu quarto, fechando a porta, e ouviram-no tocar no violino árias estranhas, como nos tempos passados, quando sentia a casa estreita demais para êle; árias cheias de provocação e de mofa, plenas de torturante nostalgia.

A mulher pensava: "Amanhã ir-se-á embora, se Deus não fizer um milagre esta noite. E aqui está como a nossa falta de hospitalidade produziu a desgraça que tanto queríamos evitar."
*

Entretanto o jovem Ruster corria sob a tempestade. Andou de porta em porta pedindo trabalho, mas não foi recebido em parte alguma. Nem sequer o convidaram a descer do trenó. Uns tinham a casa cheia de convidados; outros tinham de passar a noite em casa de pessoas amigas. Poderiam suportá-lo durante alguns dias, em outras ocasiões, mas não numa noite de Natal. Em todo o ano não há senão uma e as crianças preparam-se desde o outono para a gozar. Como sentar aquele homem à mesma mesa que as crianças? E agora, que deu para beber, não sabiam onde alojá-lo. O quarto dos criados não era suficientemente bom para êle e o dos hóspedes era-o demasiado. E Ruster continuava o seu caminho, açoitado pelos turbilhões de neve. O bigode, molhado, caía-lhe tristemente e os olhos injetados já não viam; mas pouco a pouco, os vapores da aguardente que tinha bebido dissiparam-se.

Admirado do que lhe sucedia, começou por perguntar a si mesmo qual seria a razão disto. Seria possível que ninguém tivesse querido recebê-lo? E, de repente, viu-se a si mesmo; viu-se tal qual era: rebaixado, uma verdadeira ruína, um miserável, que ninguém acolhia de boa vontade.

Acabou-se tudo — disse. — Nem música para copiar, nem árias de flauta! Ninguém no mundo tem necessidade ou compaixão de Ruster.

As rajadas sucediam-se, levantando colunas de neve, que arrastavam para o meio dos campos, num rodopio vertiginoso. Depois, cessavam, e a neve, terminada a sua dança, tornava a cair, enchendo o vazio dos fossos.

— Assim é a vida — disse Ruster consigo. — Dança–se e, depois da dança, vem a queda. Somos um pobre floco que outros flocos vêm cobrir. Mas quando chega o momento, então é que são as queixas e as lágrimas. Agora é a minha vez!

Não o preocupava saber para onde o criado o levava; para onde senão para a morte? O jovem Ruster não maldizia a flauta, nem a alegre boêmia dos tempos passados, não pensava em que teria sido melhor para êle cultivar a terra ou trabalhar em peles para calçados. Todavia lamentava não ter sido até ali senão um instrumento usado, cuja alegria nunca mais deixaria de soar falso. Não acusava ninguém. Quando a corrente está partida e a guitarra rachada, a gente desfaz-se delas. Sentia-se muito ruim, muito só, inteiramente inútil, completamente perdido: o frio e a fome matá-lo-iam naquela noite de Natal.

O trenó deteve-se, viu luzes à sua volta e ouviu vozes carinhosas. Algumas pessoas ajudaram-no a entrar numa sala bem aquecida, e fizeram-lhe beber chá quente, ao mesmo tempo que lhe tiravam a peliça; e umas mãos tépidas esfregavam-lhe os dedos enregelados e saudações de boas-vindas zuniam-lhe aos ouvidos. Sentiu-se tão atordoado que demorou pelo menos um quarto de hora a reconhecer que se encontrava em casa dos Liliécrona.

O criado, cansado de correr duma herdade para a outra, debaixo da tempestade, havia decidido regressar à casa.

Mas muito menos compreendia Ruster o acolhimento de que era alvo. Não lhe ocorreu que a sua hospedeira, cheia de compaixão ante a idéia da triste viagem que havia feito e de que todas as portas se lhe tinham fechado naquela noite de festa, esquecera as suas próprias preocupações.

Liliécrona, sempre metido no seu quarto, desconhecendo o regresso de Ruster, continuava a tocar no violino a sua música louca e selvagem.

Ruster estava sentado na sala de jantar com as crianças. Os criados, que costumavam sentar-se ali na noite de Natal, tinham ido para a cozinha como que em busca de um refúgio contra o aborrecimento que nessa noite se apossara dos seus amos. A mulher de Liliécrona aproximou-se de Ruster:

— Meu marido tocará durante toda a noite — disse — e eu tenho de tratar da ceia. Os pequenos estão sós. Quer você, Ruster, tomar conta dos dois menores?

Ruster não estava habituado a lidar com crianças. Não as encontrava nem debaixo das tendas, nem nas estalagens, nem nas orgias, nem nos caminhos da boêmia. Sentia diante delas uma grande timidez e não sabia o que dizer-lhes. Sacou da flauta e deixava-os mexer nas chaves e nos buracos. O menor, que tinha quatro anos, e o maior, que tinha seis, receberam a sua primeira lição da flauta e mostraram-se vivamente interessados.

— Este é o dó — disse — e este, o ré.

E, pegando numa folha de papel, desenhou as notas.

— Não, não! — exclamaram eles. — Não é assim que se escreve dó.

E correram para buscar o alfabeto.

Então Ruster fêz-lhes perguntas acerca das letras. Sabiam umas, mas ignoravam outras. Seus conhecimentos não eram ainda muito extensos. Ruster, interessado no caso, sentou-os nos joelhos e julgou de seu dever completar-lhes a instrução. A mãe ia e vinha da cozinha para a sala de jantar, e escutava cheia de surpresa. Os pequenos riam, repetindo docilmente o abecedário. Mas pouco a pouco a atenção de Ruster fatigou-se, a alegria desvaneceu–se-lhe as idéias, que se tinham agitado dentro dele sob a tempestade, vieram-lhe à mente. Sim, tudo aquilo era bom e encantador, mas passageiro; nem por isso deixara de estar menos acabado e morto. E, de repente, levou as mãos à cara e começou a chorar.

A mulher de Liliécrona acorreu solícita:

— Ruster – disse — compreendo-o bem; você julga que já não tem nada a fazer no mundo. A música dá pouco e a aguardente arruína-o. Mas nem tudo está perdido.

— Oh, sim! — soluçou o jovem flautista.

— Vejamos: não seria melhor que você ensinasse as crianças a ler e a escrever? Ficar sentado junto delas como nesta noite? E quem quisesse dedicar-se a esta tarefa, não seria bem recebido em toda parte? Não são as crianças instrumentos mais sensíveis do que a flauta e o violino? Olhe bem para elas, Ruster.

— Não me atrevo »— murmurou êle, porque lhe parecia doloroso contemplar as suas almas puras através dos seus formosos olhos.

A mulher de Liliécrona começou a rir, com um riso feliz e claro.

— Em breve se acostumará, Ruster. Este ano ficará em nossa casa como mestre-escola.

Liliécrona, que ouvira a risada, saiu do quarto.

— O que há?

— Não há nada — respondeu-lhe a mulher. .— Foi Ruster que voltou e já o levei a comprometer-se a que ensinaria as crianças a ler e a escrever.

— Fizeste isso? — disse em voz baixa — fizeste isto? Mas, êle prometeu. . . ?

— Não; não prometeu nada. Mas compreenderá que é preciso privar-se de muitas coisas, quando todos os dias a gente tem de encontrar-se com os olhos das crianças. Se não fosse Noite de Natal talvez eu tivesse hesitado ou voltado atrás. Mas, quando Deus não receou pôr o seu filho, o seu próprio Filho, entre nós, pecadores, penso que posso dar aos meus filhos a ocasião de salvar uma alma.

Liliécrona não respondeu nada, mas todas as rugas do seu rosto se distenderam e tremeram. Inclinou-se para a mulher, pegou-lhe na mão e beijou-a piedosamente.

Depois gritou:

— Meninos, venham todos aqui e beijem a mão de sua mamã.

E em casa de Liliécrona houve uma noite de Natal muito alegre e feliz.
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*Prémio Nobel de Literatura e sendo talvez o autor mais apreciado das letras escandinavas contemporâneas, Selma Lagerlöf tem hoje um renome universal.
    Nascida em Marbacka, na Suécia, a 20 de novembro de 1857, passou a infância e parte da juventude na província onde nasceu, terra rica em costumes e tradições.
    Aos vinte e dois anos mudou-se para Estocolmo onde freqüentou a Escola Normal, graduando-se professora. Como tal, nenhum espírito houve, melhor dotado que o seu, para dirigir-se ã alma das crianças incutindo-lhes o amor da Pátria e da Humanidade.
    Seu primeiro livro, "A Saga de Gosta Berling" apareceu em 1891, obtendo grande sucesso e alcançando inúmeras edições, o que assegurou à sua autora a glória e a fortuna.
    Selma realizou várias viagens pela Europa e pela Ásia e, em 1907, teve a satisfação de ver celebrado o cinqüentenário do seu nascimento com grandes festas, às quais se associou toda a Suécia e particularmente as crianças das escolas.
    "A viagem maravilhosa de Nils Holgerson", concebido a princípio como livro para o ensino de geografia, é hoje considerado como uma das obras-primas da literatura infantil.
    Em 1909 Selma foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura e em 1914 ingressou como membro da Academia Sueca.
    Selma é considerada a verdadeira herdeira e continuadora da geração pré-naturalista e uma viva representante da comiseração ante as calamidades sociais.
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Fonte:
http://www.consciencia.org

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