Sonho de um jornalista poeta
VII
Calou-se a musa, e envolvida
Em tênue vapor de rosa,
Qual sombra misteriosa
Nos ares se esvaeceu;
E de aromas divinais
Todo o éter recendeu.
Qual zunido do látego vibrado
Por mãos de algoz cruento,
Nos ouvidos troou-me aquele acento,
E me deixou de horror petrificado.
Já ia arrependido aos pés prostrar-me
Da irritada, frenética deidade,
Cantar-lhe a palinódia, e em triste carme
Pedir-lhe piedade!...
Em vão eu lhe bradava: “Musa, ó musa!
Não me castigues, não; atende, escusa
A minha estranha audácia;
Um momento isso foi de irreflexão,
Em que não teve parte o coração,
E não serei mais réu por contumácia.”
Mal dou um passo, eis no mesmo instante
Encontro por diante
Jornal imenso de formato largo,
Aos meus primeiros passos pondo embargo.
Vou desviá-lo, e em sua retaguarda
Encontro um Suplemento;
Porém, pondo-me em guarda
Para a direita opero um movimento,
E encontro frente a frente o Mercantil.
Para evitá-lo esgueiro-me sutil,
Buscando flanqueá-lo, e vejo ao lado
O Diário do Rio de Janeiro
Que todo desdobrado
Ante mim se apresenta sobranceiro;
Com brusco movimento impaciente
Me volto de repente
E quase que me achei todo embrulhado
No Diário do Rio Oficial.
Então compreendi toda a extensão
E força do meu mal,
E o sentido satânico e fatal
Que encerrava da musa a maldição.
Eis-me pelos jornais de todo o lado
Em assédio formal engaiolado!
Assédio, que depois foi um Vesúvio,
Que arrojou das entranhas um dilúvio.
Porém o sangue-frio inda não perco,
Co’a ponta da bengala
Romper procuro o cerco
Que obstinado em torno se me instala.
Sobre o inimigo intrépido me atiro;
Brandindo uma estocada
Varo o Jornal, e mortalmente o firo;
E de uma cutilada
Denodado rasguei de meio a meio
O Mercantil e o Oficial Correio;
Co’as botas ao Diário faço guerra,
E debaixo dos pés o calco em terra.
Mas ai de mim! em batalhões espessos,
Ao longe como ao perto,
Resistindo a meus rudes arremessos
O inimigo rebenta em campo aberto.
Debalde lhes desfecho denodado
Mil golpes repetidos;
Debalde vou deixando o chão coalhado
De mortos e feridos.
E quanto mais o meu furor se assanha,
Mais a coorte cresce e se arrebanha!
Bem como nuvem densa,
Eu vejo chusma imensa
De folhas de papel, que o espaço coalham,
Que lépidas farfalham,
Que trêmulas chocalham,
Nos ares se tresmalham,
E sobre a fronte passam-me, e repassam,
E em contínuo vórtice esvoaçam.
Aturdido procuro abrir caminho,
Demandando o pacífico aposento,
Onde refúgio encontre a tão mesquinho
E mísero tormento.
E espreitando a custo pelos claros,
Que entre as nuvens da espessa papelada,
Já me luziam raros,
Procuro orientar-me pela estrada,
Que me conduza à casa suspirada.
E através das ondas, que recrescem
A cada instante, e os ares escurecem,
De Mercantis, Correios e Jornais,
De Ecos do Sul, do Norte, de Revistas,
De Diários, de Constitucionais,
De Coalições, de Ligas Progressistas,
De Opiniões, Imprensas, Nacionais,
De Novelistas, Crenças, Monarquistas,
De mil Estrelas, Íris, Liberdades,
De mil Situações, e Atualidades;
Através de Gazetas de mil cores,
De Correios de todos os países,
De Crônicas de todos os valores,
De Opiniões de todos os matizes,
De Ordens, Épocas, Nautas, Liberais,
Do Espectador da América do Sul,
De Estrelas do Norte, e outros que tais,
Que me encobrem de todo o céu azul,
A custo rompo, e chego esbaforido
Ao sossegado albergue, e precavido
A porta logo tranco,
E de um só arranco
Com as escadas íngremes invisto.
Mas! oh! desgraça! oh! caso não previsto!
As folhas entre as pernas se embaralham,
E todo me atrapalham,
E quase de uma queda me escangalham.
Mas salvei-me sem risco, e subo ao quarto
Do meu repouso, e onde me descarto
De tudo que me zanga e me atrapalha.
Cansado já do excesso
De golpe me arremesso
Sobre o colchão de fresca e fofa palha;
Mas apenas encosto na almofada
A fronte afadigada,
Eis começa de novo o atroz vexame;
Como importunas vespas,
De folhas me acomete novo enxame,
Zumbindo pelo ar co’as asas crespas,
Agravando à porfia o meu martírio
A ponto de me pôr quase em delírio.
Já das gavetas
E dos armários
Surgem gazetas,
Surgem diários;
Uns do tablado
Lá vêm subindo,
Ou do telhado
Descem rugindo;
Dentro da rede
Sobre o dossel,
Pela parede
Tudo é papel.
Folhas aos centos
Pare a canastra,
E o pavimento
Delas se alastra.
Té as cadeiras
E os castiçais,
E escarradeiras
Parem jornais.
Saem do centro
Dos meus lençóis,
E até de dentro
Dos ourióis
Já me sentia quase sufocado
Do turbilhão no meio,
E já tendo receio
De ficar ali mesmo sepultado,
Para sair de trance tão amargo
Resolvi-me a de novo pôr-me ao largo,
Salto da cama, rodo pela escada
E procuro safar-me da rascada,
Já não andando,
Porém nadando
Ou mergulhando
Co’esse quinto elemento em guerra crua.
Cheguei enfim à rua
Que de papel achei toda inundada!
E bracejando
Espernegando
Entrei em luta acerba
Contra a enchente fatal, que me assoberba,
Até que a muito custo surjo à tona
Do horrendo turbilhão
Que túrbido se entona
E no mundo se arroja de rondão.
Às vagas meto o ombro,
Até achar dos céus a claridade.
Oh! céus! que cena horrível! oh! que assombro!
Em todo o seu horror e majestade
A mais triste catástrofe contemplo,
De que jamais no mundo houvera exemplo.
Fiquei transido de terror mortal,
Pois vi que era um dilúvio universal.
Das bandas do Oriente
Avistei densas nuvens conglobadas,
Que sobre o americano continente
Arrojavam camadas e camadas
De fofas papeladas.
E lá vinha de Times nuvem densa
Com um sussuro horrendo
No ar as pandas asas estendendo,
Derramando nos mares sombra imensa.
E após vinha em vastíssima coorte
O Pais, a Imprensa, o Globo, o Mundo,
O Este, e o Oeste, o Sul, e o Norte,
Esvoaçando sobre o mar profundo,
Jornais de toda a língua, e toda sorte,
Que no hemisfério nosso vêm dar fundo,
Gazetas alemãs com tipos góticos,
E mil outras com títulos exóticos.
Outras nuvens, também do sul, do norte,
Mas não tão carregadas, se encaminham,
E lentas se avizinham
Com horroroso frêmito de morte.
Da tormenta fatal recresce o horror!
Até do interior
Como um bando de leves borboletas
Lá vêm surgindo lépidas gazetas,
À desastrosa enchente
Fornecer seu pequeno contingente.
Julguei que sem remédio este era o dia
Da ira do Senhor; — pois parecia,
Que se abriam do céu as cataratas
E os abismos da terra, vomitando
Em borbotões, em túrbidas cascatas,
De hedionda praga o inextinguível bando.
Enquanto esbaforido luto, e ofego
Contra as ondas, que sempre recresciam,
Já sobre o farfalhante, imenso pego
As casas abafadas se sumiam.
Em torno a vista estendo,
E vejo então, que esse dilúvio horrendo
Já tendo submergido as baixas terras
Ameaçava os píncaros das serras.
E nem diviso barca de Noé
Que me conduza aos cimos de Arará!
O mal é sem remédio!... já perdida
Toda esperança está!...
Mas não!... eis voga além batel ligeiro,
Os fofos escarcéus assoberbando;
Impávida e com rosto sobranceiro
Uma ninfa gentil o vai guiando,
De angélica beleza;
E vi então... que pasmo! que surpresa!
Que a dona, dêsse nunca visto lago
Sem mais nem menos era
A ninfa linda e fera
Que ainda há pouco em um momento aziago
Aos sons de uma canção
Fulminou-me tremenda maldição.
Era-lhe barco a concha mosqueada
De tartaruga enorme,
Com engenhoso esmero trabalhada
De lavor preciosa e multiforme.
Com remo de marfim, mimoso pulso
Ao leve barco dá fácil impulso.
E enquanto fende as chocalheiras ondas
Desse pego, que em torno se lhe empola,
Vai cantando em estrofes mui redondas
Esta estranha e tremenda barcarola:
VIII
Já tudo se vai sumindo!...
Já desparecem as terras;
Pelos outeiros e serras
Sobem ondas a garnel...
E neste geral desastre
Somente a minha piroga
Ligeira sem risco voga
Sobre as ondas de papel!
Sobre estes estranhos mares,
Voga, voga, meu batel!...
Para a triste humanidade
Não resta mais esperança;
O dilúvio cresce, e avança,
Leva tudo de tropel!...
Já imensa papelada
As terras e os mares coalha;
Já o globo se amortalha
Em camadas de papel.
Mas sobre elas resvalando
Vai vogando o meu batel.
Pobre idade, testemunha
Desta pavorosa cheia
Que dos tempos na cadeia
Vê quebrar-se o extremo anel!...
Oh! século dezenove,
Ó tu, que tanto reluzes,
És o século das luzes,
Ou século de papel?!...
Sobre estas estranhas ondas,
Voga, voga, meu batel!...
Debaixo de teu sudário
Dorme, ó triste humanidade!
Que eu chorarei de piedade
Sobre teu fado cruel!
E ao futuro irei dizendo
Sentada na tua lousa:
— Todo o mundo aqui repousa
Sob um montão de papel! —
Meu batel, eia! ligeiro,
Voga, voga, meu batel!
IX
Calou-se, e a um golpe do ebúrneo remo
Impele a concha, que veloz desliza;
Eu nesse trance extremo,
Como quem outra esperança não divisa,
Meu afrontoso fim tão perto vendo,
A musa os braços súplices estendo.
“Perdão! perdão! bradei —; musa divina,
Recebe-me a teu bordo; — é o teu vate,
A quem sempre tu foste o único norte,
Que entre estas fofas ondas se debate
Entre as vascas da morte.”
Mas de minha fervente rogativa
Não fez caso nenhum a ninfa esquiva;
Sem ao menos a mim volver o rosto
As secas ondas corta;
Continuando a remar muito a seu gosto
Comigo nem se importa.
E ei-la que continua a cantarola
De sua endiabrada barcarola:
“Meus altares abjuraste,
Agora sofre o castigo,
Que eu não posso dar abrigo
A quem me foi infiel.
Morre em paz, infeliz bardo,
E sem maldizer teu fado
Fica p’ra sempre embrulhado
Nesse montão de papel!...”
Eia, rompe as secas ondas,
Voga, voga, meu batel!...
X
Fiquei aniquilado!...
Horror! horror! há nada mais cruel,
Do que morrer a gente sufocado
Debaixo de uma nuvem de papel?!
Mas eis que de repente
A mais atroz lembrança
O desespero me sugere à mente,
Que exulta em seus desejos de vingança.
Veio-me à idéia de Sansão o exemplo,
Com seus robustos braços abalando
As colunas do templo,
E sob suas ruínas esmagando
A si e aos inimigos
Para evitar seus pérfidos castigos.
“Pois bem!... já que esperança alguma temos,
O mundo, e eu com ele, acabaremos,
Mas não por esta sorte;
Morrerei; mas também tu morrerás,
Ó ninfa desalmada,
Porém um outro gênero de morte
Comigo sofrerás:
A mim e a ti verás,
E a toda tua infanda papelada
Reduzidos a pó, a cinza, a nada!”
Enquanto isto eu dizia, da algibeira
Uma caixa de fósforos tirava,
Que por felicidade então trazia;
E já chama ligeira
Aqui e além lançava
Com o pequeno archote que acendia;
Eis já o voraz fogo se propaga,
Como em madura, tórrida macega,
E co’as rúbidas línguas lambe e traga
A seca papelada que fumega.
Como Hércules em cima da fogueira
Por suas próprias mãos alevantada,
Eu com serena face prazenteira
Vejo lavrar a chama abençoada.
Espesso fumo em túrbidos novelos
Os ares escurece.
E a rubra labareda, que recresce,
Já me devora as vestes e os cabelos.
Em tão cruel tortura
Horrenda me aparece
Da morte a catadura,
E a coragem de todo me falece.
“Perdão! perdão! ó musa! ai!... a teu bordo...
O fumo me sufoca... eu morro...” acordo!...
XI
Ainda bem, que esse quadro tão medonho
Não foi mais do que um sonho.
VII
Calou-se a musa, e envolvida
Em tênue vapor de rosa,
Qual sombra misteriosa
Nos ares se esvaeceu;
E de aromas divinais
Todo o éter recendeu.
Qual zunido do látego vibrado
Por mãos de algoz cruento,
Nos ouvidos troou-me aquele acento,
E me deixou de horror petrificado.
Já ia arrependido aos pés prostrar-me
Da irritada, frenética deidade,
Cantar-lhe a palinódia, e em triste carme
Pedir-lhe piedade!...
Em vão eu lhe bradava: “Musa, ó musa!
Não me castigues, não; atende, escusa
A minha estranha audácia;
Um momento isso foi de irreflexão,
Em que não teve parte o coração,
E não serei mais réu por contumácia.”
Mal dou um passo, eis no mesmo instante
Encontro por diante
Jornal imenso de formato largo,
Aos meus primeiros passos pondo embargo.
Vou desviá-lo, e em sua retaguarda
Encontro um Suplemento;
Porém, pondo-me em guarda
Para a direita opero um movimento,
E encontro frente a frente o Mercantil.
Para evitá-lo esgueiro-me sutil,
Buscando flanqueá-lo, e vejo ao lado
O Diário do Rio de Janeiro
Que todo desdobrado
Ante mim se apresenta sobranceiro;
Com brusco movimento impaciente
Me volto de repente
E quase que me achei todo embrulhado
No Diário do Rio Oficial.
Então compreendi toda a extensão
E força do meu mal,
E o sentido satânico e fatal
Que encerrava da musa a maldição.
Eis-me pelos jornais de todo o lado
Em assédio formal engaiolado!
Assédio, que depois foi um Vesúvio,
Que arrojou das entranhas um dilúvio.
Porém o sangue-frio inda não perco,
Co’a ponta da bengala
Romper procuro o cerco
Que obstinado em torno se me instala.
Sobre o inimigo intrépido me atiro;
Brandindo uma estocada
Varo o Jornal, e mortalmente o firo;
E de uma cutilada
Denodado rasguei de meio a meio
O Mercantil e o Oficial Correio;
Co’as botas ao Diário faço guerra,
E debaixo dos pés o calco em terra.
Mas ai de mim! em batalhões espessos,
Ao longe como ao perto,
Resistindo a meus rudes arremessos
O inimigo rebenta em campo aberto.
Debalde lhes desfecho denodado
Mil golpes repetidos;
Debalde vou deixando o chão coalhado
De mortos e feridos.
E quanto mais o meu furor se assanha,
Mais a coorte cresce e se arrebanha!
Bem como nuvem densa,
Eu vejo chusma imensa
De folhas de papel, que o espaço coalham,
Que lépidas farfalham,
Que trêmulas chocalham,
Nos ares se tresmalham,
E sobre a fronte passam-me, e repassam,
E em contínuo vórtice esvoaçam.
Aturdido procuro abrir caminho,
Demandando o pacífico aposento,
Onde refúgio encontre a tão mesquinho
E mísero tormento.
E espreitando a custo pelos claros,
Que entre as nuvens da espessa papelada,
Já me luziam raros,
Procuro orientar-me pela estrada,
Que me conduza à casa suspirada.
E através das ondas, que recrescem
A cada instante, e os ares escurecem,
De Mercantis, Correios e Jornais,
De Ecos do Sul, do Norte, de Revistas,
De Diários, de Constitucionais,
De Coalições, de Ligas Progressistas,
De Opiniões, Imprensas, Nacionais,
De Novelistas, Crenças, Monarquistas,
De mil Estrelas, Íris, Liberdades,
De mil Situações, e Atualidades;
Através de Gazetas de mil cores,
De Correios de todos os países,
De Crônicas de todos os valores,
De Opiniões de todos os matizes,
De Ordens, Épocas, Nautas, Liberais,
Do Espectador da América do Sul,
De Estrelas do Norte, e outros que tais,
Que me encobrem de todo o céu azul,
A custo rompo, e chego esbaforido
Ao sossegado albergue, e precavido
A porta logo tranco,
E de um só arranco
Com as escadas íngremes invisto.
Mas! oh! desgraça! oh! caso não previsto!
As folhas entre as pernas se embaralham,
E todo me atrapalham,
E quase de uma queda me escangalham.
Mas salvei-me sem risco, e subo ao quarto
Do meu repouso, e onde me descarto
De tudo que me zanga e me atrapalha.
Cansado já do excesso
De golpe me arremesso
Sobre o colchão de fresca e fofa palha;
Mas apenas encosto na almofada
A fronte afadigada,
Eis começa de novo o atroz vexame;
Como importunas vespas,
De folhas me acomete novo enxame,
Zumbindo pelo ar co’as asas crespas,
Agravando à porfia o meu martírio
A ponto de me pôr quase em delírio.
Já das gavetas
E dos armários
Surgem gazetas,
Surgem diários;
Uns do tablado
Lá vêm subindo,
Ou do telhado
Descem rugindo;
Dentro da rede
Sobre o dossel,
Pela parede
Tudo é papel.
Folhas aos centos
Pare a canastra,
E o pavimento
Delas se alastra.
Té as cadeiras
E os castiçais,
E escarradeiras
Parem jornais.
Saem do centro
Dos meus lençóis,
E até de dentro
Dos ourióis
Já me sentia quase sufocado
Do turbilhão no meio,
E já tendo receio
De ficar ali mesmo sepultado,
Para sair de trance tão amargo
Resolvi-me a de novo pôr-me ao largo,
Salto da cama, rodo pela escada
E procuro safar-me da rascada,
Já não andando,
Porém nadando
Ou mergulhando
Co’esse quinto elemento em guerra crua.
Cheguei enfim à rua
Que de papel achei toda inundada!
E bracejando
Espernegando
Entrei em luta acerba
Contra a enchente fatal, que me assoberba,
Até que a muito custo surjo à tona
Do horrendo turbilhão
Que túrbido se entona
E no mundo se arroja de rondão.
Às vagas meto o ombro,
Até achar dos céus a claridade.
Oh! céus! que cena horrível! oh! que assombro!
Em todo o seu horror e majestade
A mais triste catástrofe contemplo,
De que jamais no mundo houvera exemplo.
Fiquei transido de terror mortal,
Pois vi que era um dilúvio universal.
Das bandas do Oriente
Avistei densas nuvens conglobadas,
Que sobre o americano continente
Arrojavam camadas e camadas
De fofas papeladas.
E lá vinha de Times nuvem densa
Com um sussuro horrendo
No ar as pandas asas estendendo,
Derramando nos mares sombra imensa.
E após vinha em vastíssima coorte
O Pais, a Imprensa, o Globo, o Mundo,
O Este, e o Oeste, o Sul, e o Norte,
Esvoaçando sobre o mar profundo,
Jornais de toda a língua, e toda sorte,
Que no hemisfério nosso vêm dar fundo,
Gazetas alemãs com tipos góticos,
E mil outras com títulos exóticos.
Outras nuvens, também do sul, do norte,
Mas não tão carregadas, se encaminham,
E lentas se avizinham
Com horroroso frêmito de morte.
Da tormenta fatal recresce o horror!
Até do interior
Como um bando de leves borboletas
Lá vêm surgindo lépidas gazetas,
À desastrosa enchente
Fornecer seu pequeno contingente.
Julguei que sem remédio este era o dia
Da ira do Senhor; — pois parecia,
Que se abriam do céu as cataratas
E os abismos da terra, vomitando
Em borbotões, em túrbidas cascatas,
De hedionda praga o inextinguível bando.
Enquanto esbaforido luto, e ofego
Contra as ondas, que sempre recresciam,
Já sobre o farfalhante, imenso pego
As casas abafadas se sumiam.
Em torno a vista estendo,
E vejo então, que esse dilúvio horrendo
Já tendo submergido as baixas terras
Ameaçava os píncaros das serras.
E nem diviso barca de Noé
Que me conduza aos cimos de Arará!
O mal é sem remédio!... já perdida
Toda esperança está!...
Mas não!... eis voga além batel ligeiro,
Os fofos escarcéus assoberbando;
Impávida e com rosto sobranceiro
Uma ninfa gentil o vai guiando,
De angélica beleza;
E vi então... que pasmo! que surpresa!
Que a dona, dêsse nunca visto lago
Sem mais nem menos era
A ninfa linda e fera
Que ainda há pouco em um momento aziago
Aos sons de uma canção
Fulminou-me tremenda maldição.
Era-lhe barco a concha mosqueada
De tartaruga enorme,
Com engenhoso esmero trabalhada
De lavor preciosa e multiforme.
Com remo de marfim, mimoso pulso
Ao leve barco dá fácil impulso.
E enquanto fende as chocalheiras ondas
Desse pego, que em torno se lhe empola,
Vai cantando em estrofes mui redondas
Esta estranha e tremenda barcarola:
VIII
Já tudo se vai sumindo!...
Já desparecem as terras;
Pelos outeiros e serras
Sobem ondas a garnel...
E neste geral desastre
Somente a minha piroga
Ligeira sem risco voga
Sobre as ondas de papel!
Sobre estes estranhos mares,
Voga, voga, meu batel!...
Para a triste humanidade
Não resta mais esperança;
O dilúvio cresce, e avança,
Leva tudo de tropel!...
Já imensa papelada
As terras e os mares coalha;
Já o globo se amortalha
Em camadas de papel.
Mas sobre elas resvalando
Vai vogando o meu batel.
Pobre idade, testemunha
Desta pavorosa cheia
Que dos tempos na cadeia
Vê quebrar-se o extremo anel!...
Oh! século dezenove,
Ó tu, que tanto reluzes,
És o século das luzes,
Ou século de papel?!...
Sobre estas estranhas ondas,
Voga, voga, meu batel!...
Debaixo de teu sudário
Dorme, ó triste humanidade!
Que eu chorarei de piedade
Sobre teu fado cruel!
E ao futuro irei dizendo
Sentada na tua lousa:
— Todo o mundo aqui repousa
Sob um montão de papel! —
Meu batel, eia! ligeiro,
Voga, voga, meu batel!
IX
Calou-se, e a um golpe do ebúrneo remo
Impele a concha, que veloz desliza;
Eu nesse trance extremo,
Como quem outra esperança não divisa,
Meu afrontoso fim tão perto vendo,
A musa os braços súplices estendo.
“Perdão! perdão! bradei —; musa divina,
Recebe-me a teu bordo; — é o teu vate,
A quem sempre tu foste o único norte,
Que entre estas fofas ondas se debate
Entre as vascas da morte.”
Mas de minha fervente rogativa
Não fez caso nenhum a ninfa esquiva;
Sem ao menos a mim volver o rosto
As secas ondas corta;
Continuando a remar muito a seu gosto
Comigo nem se importa.
E ei-la que continua a cantarola
De sua endiabrada barcarola:
“Meus altares abjuraste,
Agora sofre o castigo,
Que eu não posso dar abrigo
A quem me foi infiel.
Morre em paz, infeliz bardo,
E sem maldizer teu fado
Fica p’ra sempre embrulhado
Nesse montão de papel!...”
Eia, rompe as secas ondas,
Voga, voga, meu batel!...
X
Fiquei aniquilado!...
Horror! horror! há nada mais cruel,
Do que morrer a gente sufocado
Debaixo de uma nuvem de papel?!
Mas eis que de repente
A mais atroz lembrança
O desespero me sugere à mente,
Que exulta em seus desejos de vingança.
Veio-me à idéia de Sansão o exemplo,
Com seus robustos braços abalando
As colunas do templo,
E sob suas ruínas esmagando
A si e aos inimigos
Para evitar seus pérfidos castigos.
“Pois bem!... já que esperança alguma temos,
O mundo, e eu com ele, acabaremos,
Mas não por esta sorte;
Morrerei; mas também tu morrerás,
Ó ninfa desalmada,
Porém um outro gênero de morte
Comigo sofrerás:
A mim e a ti verás,
E a toda tua infanda papelada
Reduzidos a pó, a cinza, a nada!”
Enquanto isto eu dizia, da algibeira
Uma caixa de fósforos tirava,
Que por felicidade então trazia;
E já chama ligeira
Aqui e além lançava
Com o pequeno archote que acendia;
Eis já o voraz fogo se propaga,
Como em madura, tórrida macega,
E co’as rúbidas línguas lambe e traga
A seca papelada que fumega.
Como Hércules em cima da fogueira
Por suas próprias mãos alevantada,
Eu com serena face prazenteira
Vejo lavrar a chama abençoada.
Espesso fumo em túrbidos novelos
Os ares escurece.
E a rubra labareda, que recresce,
Já me devora as vestes e os cabelos.
Em tão cruel tortura
Horrenda me aparece
Da morte a catadura,
E a coragem de todo me falece.
“Perdão! perdão! ó musa! ai!... a teu bordo...
O fumo me sufoca... eu morro...” acordo!...
XI
Ainda bem, que esse quadro tão medonho
Não foi mais do que um sonho.
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