TODO SANTO DIA EU SAIA DO serviço às 06h30min em ponto e dava uma paradinha na padaria para comprar pão. E sempre escutava a garçonete que rodava no salão, por entre as mesas, gritar, espavorida, para os rapazes que ficavam atendendo aos seus pedidos por detrás de um balcão imenso:
-... “Solta um pingado... Mesa cinco...”.
Não passava um minuto e ela voltava à carga:
-... “Um pingado para a mesa oito. Outro para a doze...”.
Aquilo me intrigava. O que deveria ser o tal do “pingado?”.
Como meu tempo era demasiadamente curto, os minutos contados, passava a mão no embrulho, pagava meio que correndo e voava para o ponto. Se perdesse o ônibus das 06h40min, só dali uma hora encostaria outro. Para quem passou a noite toda acordada, e, pior, de pé, andando para lá e para cá, dentro de um galpão imenso, cuidando de um bando de rapazes sobre sua responsabilidade, quando dava o final do expediente, só via pela frente o caminho da roça. Bater cartão, tirar a farda do trabalho, correr para o ponto e embarcar no 06h40min.
Quanto mais rápido no sossego do lar, mais tempo para relaxar. Antes, vinha o ritual de um banho refrescante e bem demorado para espantar a inhaca, e, em seguida, o desjejum com café feito na hora, misturado ao leite, acompanhado de pão, queijo, biscoitos de polvilho e, um variado de guloseimas extras que minha esposa gostava de preparar. Barriguinha cheia e satisfeita, a cama quentinha e solícita, abria os lençóis em braços chamativos e convidada a me aninhar no macio do colchão e esquecer, por completo, do mundo que corria, lá fora, além da cortina que enevoava, sobremaneira, o aposento, tornando-o aconchegante ao meu enfastio da noite passada em claro.
Lurdinha, minha esposa, reclamava, e, com certa razão, uma atençãozinha especial. Queria uns carinhos, um trato, um abraço. Um beijo, algo acolá do café que enfiava goela abaixo, com um acometimento fora do normal. Confesso, nesse ponto da atenção a ela, deixava a ver navios. Chegava esfalfado, estourado, enervado, aporrinhado, com dor de cabeça. Não via a hora de cair no escurinho e apagar, sair do ar. Tinha plena consciência de que se não chegasse junto, de vez em quando, se não cumprisse com as obrigações maritais, o casamento, cedo ou tarde, iria pras cucuias. Mas, por Deus, o serviço, o cansaço, a estafa, a condução com gente saindo pelo ladrão... Raramente aparecia um lugar vago e a disposição, para ajudar a digerir a hora e meia de todo o trajeto. Isso virara rotina. Minha vida se transformara num padrão estressante de comportamento, onde, o ano inteiro, repetia igual procedimento, sem fugir daquele modelo, arquétipo, como se fosse uma norma de estilo de vida escolhido a dedo, por vontade própria. Nada mudava nada acontecia de novo. Quadro imutável de uma vida em constante processo de decadência. 06h30min, pois, cravado, correr para bater o cartão, disparar para o vestiário, trocar de roupas num abrir e fechar de olhos, padaria, e a lotação às 06h40min. Na confeitaria, a garçonete, e a sua aparência imutável, o mesmo semblante, o corpo esguio metido num uniforme batido e surrado e o chavão desmilinguido: “-... Solta um pingado pra dez. Outro pra dezoito, um especial para o senhor sentado no banquinho do balcão...”.
A minha curiosidade crescia, junto com a afobação e com o atropelo de chegar logo e dormir. Sonhava com o tal do “pingado”... Jesus, Maria, José, o que seria o desconhecido “pingado”, tão disputado, tão desejado, tão amado por todos que frequentavam aquele estabelecimento? Pingado, pingado, pingado e o tempo se descorando, se desfalecendo entre o protocolo da padaria e o culto como uma idolatria ao busão das 06h40min...
-... “Amor, vamos namorar? Você não comparece tem mais de mês!...”.
-... “Lurdinha, deixa pra amanhã...”.
O amanhã chegava e eu não comparecia. Não me manifestava. Não dava no couro. Lurdinha, então, em ato extremo, subindo pelas paredes, me agarrava, me catava, como se diz, grosso modo, “à força, no laço, no tapa, no é agora ou nunca”.
-... “De hoje você não me escapa, seu safadinho malandro. Devo lembrar a você, meu marido e esposo, que estou chamando urubu de meu louro...”.
E Lurdinha se enrodilhava me beijava, me acarinhava louca, tesa, cheia de amor para dar, envolvida numa empolgação desvairada e fora de si. De costas, de lado, de frente, de banda, como fogo morro acima, água ribanceira abaixo, ela partia pro ataque. O cansaço nesses instantes, não dava trégua, seguia junto. De braços dados, marcando presença, entranhado, duro na queda, sem dar espaço... E, de contrapeso, as recordações do cartão de ponto, a padaria, o coletivo às 06h40min atrelado ao maldito pingado. Oxalá! O que seria, afinal, esse pingado?
***
Belo dia... Bela manhã me deu na telha, assim, de supetão, e resolvi quebrar a virgindade desse tabu que me corroía as entranhas. Às favas o coletivo das 06h40min. Não suportava mais o pingado me pingando na mente como uma torneira mal fechada. Como a chuva no telhado gotejando como um látego martirizante no meu consciente submisso. Não tinha mais saco, mais cabeça, mais paciência para sentir esse desconforto gotejando, destilando, marejando, vertendo, me corroendo o corpo, a mente, o espírito, os pensamentos, minha vida, enfim...
... “Hoje desvendo o mistério. Que se dane o resto, que se afumente o 06:40min. Embarco no próximo...”.
Resoluto, senhor de mim, cheguei pra a moça, pedi os pães... Enquanto ela ensacava, gritei para a garçonete de todas as manhãs iguais.
-... “- Me veja um pingado, por favor!...”.
-... “- Vai sentar?”.
-... “Num dos assentos do balcão”.
Aos bravios a jovem mandou a ordem:
-... “Um pingado no balcão”.
Em seguida, indagou solícita:
- “Algo para comer, senhor?”.
-... “Não, obrigado, minha fofa. Só o pingado”.
Ao me acomodar, finalmente, no balcão, me deparei com o tal do pingado. Nada além de um café com leite, servido numa xícara de porte médio, igual a que eu tomava todas as santas manhãs, no conforto da mesa, ladeado de Lurdinha, minha adorada e querida esposa.
Fonte:
O Autor
-... “Solta um pingado... Mesa cinco...”.
Não passava um minuto e ela voltava à carga:
-... “Um pingado para a mesa oito. Outro para a doze...”.
Aquilo me intrigava. O que deveria ser o tal do “pingado?”.
Como meu tempo era demasiadamente curto, os minutos contados, passava a mão no embrulho, pagava meio que correndo e voava para o ponto. Se perdesse o ônibus das 06h40min, só dali uma hora encostaria outro. Para quem passou a noite toda acordada, e, pior, de pé, andando para lá e para cá, dentro de um galpão imenso, cuidando de um bando de rapazes sobre sua responsabilidade, quando dava o final do expediente, só via pela frente o caminho da roça. Bater cartão, tirar a farda do trabalho, correr para o ponto e embarcar no 06h40min.
Quanto mais rápido no sossego do lar, mais tempo para relaxar. Antes, vinha o ritual de um banho refrescante e bem demorado para espantar a inhaca, e, em seguida, o desjejum com café feito na hora, misturado ao leite, acompanhado de pão, queijo, biscoitos de polvilho e, um variado de guloseimas extras que minha esposa gostava de preparar. Barriguinha cheia e satisfeita, a cama quentinha e solícita, abria os lençóis em braços chamativos e convidada a me aninhar no macio do colchão e esquecer, por completo, do mundo que corria, lá fora, além da cortina que enevoava, sobremaneira, o aposento, tornando-o aconchegante ao meu enfastio da noite passada em claro.
Lurdinha, minha esposa, reclamava, e, com certa razão, uma atençãozinha especial. Queria uns carinhos, um trato, um abraço. Um beijo, algo acolá do café que enfiava goela abaixo, com um acometimento fora do normal. Confesso, nesse ponto da atenção a ela, deixava a ver navios. Chegava esfalfado, estourado, enervado, aporrinhado, com dor de cabeça. Não via a hora de cair no escurinho e apagar, sair do ar. Tinha plena consciência de que se não chegasse junto, de vez em quando, se não cumprisse com as obrigações maritais, o casamento, cedo ou tarde, iria pras cucuias. Mas, por Deus, o serviço, o cansaço, a estafa, a condução com gente saindo pelo ladrão... Raramente aparecia um lugar vago e a disposição, para ajudar a digerir a hora e meia de todo o trajeto. Isso virara rotina. Minha vida se transformara num padrão estressante de comportamento, onde, o ano inteiro, repetia igual procedimento, sem fugir daquele modelo, arquétipo, como se fosse uma norma de estilo de vida escolhido a dedo, por vontade própria. Nada mudava nada acontecia de novo. Quadro imutável de uma vida em constante processo de decadência. 06h30min, pois, cravado, correr para bater o cartão, disparar para o vestiário, trocar de roupas num abrir e fechar de olhos, padaria, e a lotação às 06h40min. Na confeitaria, a garçonete, e a sua aparência imutável, o mesmo semblante, o corpo esguio metido num uniforme batido e surrado e o chavão desmilinguido: “-... Solta um pingado pra dez. Outro pra dezoito, um especial para o senhor sentado no banquinho do balcão...”.
A minha curiosidade crescia, junto com a afobação e com o atropelo de chegar logo e dormir. Sonhava com o tal do “pingado”... Jesus, Maria, José, o que seria o desconhecido “pingado”, tão disputado, tão desejado, tão amado por todos que frequentavam aquele estabelecimento? Pingado, pingado, pingado e o tempo se descorando, se desfalecendo entre o protocolo da padaria e o culto como uma idolatria ao busão das 06h40min...
-... “Amor, vamos namorar? Você não comparece tem mais de mês!...”.
-... “Lurdinha, deixa pra amanhã...”.
O amanhã chegava e eu não comparecia. Não me manifestava. Não dava no couro. Lurdinha, então, em ato extremo, subindo pelas paredes, me agarrava, me catava, como se diz, grosso modo, “à força, no laço, no tapa, no é agora ou nunca”.
-... “De hoje você não me escapa, seu safadinho malandro. Devo lembrar a você, meu marido e esposo, que estou chamando urubu de meu louro...”.
E Lurdinha se enrodilhava me beijava, me acarinhava louca, tesa, cheia de amor para dar, envolvida numa empolgação desvairada e fora de si. De costas, de lado, de frente, de banda, como fogo morro acima, água ribanceira abaixo, ela partia pro ataque. O cansaço nesses instantes, não dava trégua, seguia junto. De braços dados, marcando presença, entranhado, duro na queda, sem dar espaço... E, de contrapeso, as recordações do cartão de ponto, a padaria, o coletivo às 06h40min atrelado ao maldito pingado. Oxalá! O que seria, afinal, esse pingado?
***
Belo dia... Bela manhã me deu na telha, assim, de supetão, e resolvi quebrar a virgindade desse tabu que me corroía as entranhas. Às favas o coletivo das 06h40min. Não suportava mais o pingado me pingando na mente como uma torneira mal fechada. Como a chuva no telhado gotejando como um látego martirizante no meu consciente submisso. Não tinha mais saco, mais cabeça, mais paciência para sentir esse desconforto gotejando, destilando, marejando, vertendo, me corroendo o corpo, a mente, o espírito, os pensamentos, minha vida, enfim...
... “Hoje desvendo o mistério. Que se dane o resto, que se afumente o 06:40min. Embarco no próximo...”.
Resoluto, senhor de mim, cheguei pra a moça, pedi os pães... Enquanto ela ensacava, gritei para a garçonete de todas as manhãs iguais.
-... “- Me veja um pingado, por favor!...”.
-... “- Vai sentar?”.
-... “Num dos assentos do balcão”.
Aos bravios a jovem mandou a ordem:
-... “Um pingado no balcão”.
Em seguida, indagou solícita:
- “Algo para comer, senhor?”.
-... “Não, obrigado, minha fofa. Só o pingado”.
Ao me acomodar, finalmente, no balcão, me deparei com o tal do pingado. Nada além de um café com leite, servido numa xícara de porte médio, igual a que eu tomava todas as santas manhãs, no conforto da mesa, ladeado de Lurdinha, minha adorada e querida esposa.
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O Autor
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