sábado, 17 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 18

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 337)


Uma Trova Nacional

Da abelha o casal tem tudo:
primeiro o mel da paixão.
Segunda fase - abelhudo;
terceira fase: - ferrão!...
–ROZA DE OLIVEIRA/PR–

Uma Trova Potiguar

Ao flagrar a companheira
com o Ricardão, no riacho.
Pra se vingar da chifreira,
foi dormir com outro macho
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada

2007 - Bandeirantes/PR
Tema: PIRRAÇA - M/E.

Se ela insiste, por pirraça,
em fazer “greve”, olhe o enrosco:
dá-lhe ele um basta... e ameaça:
- Mamãe vem morar conosco!...
–A. A. DE ASSIS/PR–

Uma Trova de Ademar

Ladrão “frouxo” e atrapalhado
foi preso numa butique.
Bastou ver o delegado,
desmaiou... deu um chilique.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

O canário não cantava,
entretanto, o vendedor,
a quem comprou explicava:
"Não canta, é compositor..."
–CÉSAR TORRACA/RJ–

Simplesmente Poesia

MOTE:
Numa receita de Joca.

GLOSA:
Tinha malva e agrião,
João mole, bredo e facheiro,
pau de leite, marmeleiro,
erva babosa e pião,
canapum verde e limão,
tinha até borra de moca,
pra fazer a tramamoca
juntou alho com fartura;
tinha toda essa mistura
Numa receita de Joca.
–MOYSÉS SESYOM/RN–

Estrofe do Dia

Mês passado, fui à lua
pra fazer uma moagem;
fui de jegue e, na bagagem,
levei rapadura crua.
Lá, tinha uma moça nua
se aquecendo na lareira;
ao me ver, correu, ligeira
e me deu um forte abraço.
“Eu querendo também faço
igualzinho a Zé Limeira.”
–TARCÍSIO LOPES FERNANDES/DF–

Soneto do Dia

Soneto da Eletricidade
ORLANDO LOVECCHIO/SP

De tudo, ao meu computador, serei atento,
antes e com tal zelo, e sempre, e de modo tão terno
que mesmo em face de um modelo mais moderno
dele serei sempre o tiete mais sedento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
e em seu louvor hei de pagar as contas da Light
que alimenta seus megabytes
sem nenhum pesar ou descontentamento.

E assim, quando mais tarde, num outro dia,
quem sabe a assistência técnica, angústia de quem vive,
pedir pelo seu conserto uns 800 paus,

eu possa dizer do computador que tive:
Que não seja imortal, posto que é fabricado em Manaus,
mas que seja infinito enquanto dure (a garantia)

Fontes:
Textos enviados pelo Autor
Soneto obtido em Novo Milenio

Raul Pompéia (A Batalha dos Livros)


Foi um sábio, Aristóteles de Souza. Recebera na pia batismal um nome significativo, vaticínio de encomenda dos pais, sem grave ofensa à modéstia porque vinha logo atenuar, os compromissos a restrição chué do sobrenome.

Aristóteles, entretanto, ficava sendo, embora de Souza. Dominava-o a avidez de conhecer como um vício insaciável. Tinha sede de idéias, fome de páginas; havia alguma cousa de traça no seu apetite. Oh! não lhe ser dado viver entre a compressão erudita de dous capítulos de um livro fechado, tranqüilo e só, roendo, roendo as saborosas folhas

Dormia pouco, comia menos, não bebia nada, excetuando o abuso da água do pote a que se entregava periodicamente em cristalinas orgias de asceta. Não tinha afeições pessoais, porque a aplicação o distraía de ter sentimento; detestava o bulício do mundo e a preocupação dos negócios.

Pura massa de sábio: nos livros, dos livros, para os livros.

Muito rico, confiara a direção inteira dos seus interesses a um raro procurador honrado e, alto, no platô das Paineiras, sobre os rumores da cidade e sobre as intrigas dos homens, desfrutava a sensualidade espiritual dos estudos, encerrado em um grande prédio que lá mandara construir.

Com Aristóteles, morava um sobrinho, o Sancho, rapaz amável, bem apessoado de carnes, com um ventrezinho de jovialidade cativante, pouco inteligente, falador, encarregado de receber as visitas, entretê-las com a melhor hospitalidade e despachá-las atenciosamente, antes que lhes ocorresse a idéia de ir perturbar o sábio na sua sabedoria.

Aristóteles falava raramente ao sobrinho. Não se dignava. Sancho, em compensação, venerava-o, acatando profundamente essa desdenhosa reserva como o nicho do seu ídolo. Aos criados o sábio não dirigia palavra. Gesticulava os seus desejos e era compreendido às maravilhas.

Uma vez por semana dava audiência, para quem o quisesse consultar sobre elevados motivos técnicos.

Traço complementar: era fisicamente a ressurreição magra do velho Littré.

Um

LEXICON

Dos esdrúxulos portugueses seguido de um breve tratado dos adjetivos científicos derivados do grego, e vantagem do seu emprego no discurso, para o fim de dar precisão, sonoridade e prestígio às frases.

Granjeara-lhe a reputação unânime de profundo em que era tido.

Tinha publicado também uma monografia entre industrial e científica sobre as Cidades peixeiras do Brasil, ou piscicultura nacional e futuro deste ramo de aplicação da indústria humana com a continuação do tempo e o progresso da navegação. Esta segunda obra, que lhe valera um diploma de membro do Instituto Histórico, provava, jogando com as estatísticas dos mercados de peixe, que o incremento da atividade náutica fazia desaparecerem os peixes, afugentados pelo rumor das rodas e hélices dos paquetes, para regiões afastadas e mais tranqüilas do oceano.

Apesar do diploma e da nomeada, Aristóteles não estava satisfeito consigo. Aclamasse-o o mundo inteiro, posteridade inclusive, aclamasse-o sábio, com hipoteca segura sobre uma dúzia de centenários glorificadores, Aristóteles, no seu bom senso, estava a contragosto, desconfiando que não passava de uma besta. Aristóteles... ora, ora! - de Souza!...

É que, de todos os seus estudos copiosos nunca lhe fora possível fazer um organismo unificado e harmonioso: o Problema da classificação dos conhecimentos escapava-lhe ao cérebro, intangível e sutil, em meio de todo aquele tumulto de noções anarquizadas, como o espírito do Senhor no caos dos primeiros dias do mundo. O espírito onipotente da síntese, obstinava-se em recusar o fiat às trevas daquela desordem.

Que desespero! Ter consciência de que sabia, de que lhe haviam entrado de enfiada no cérebro os conhecimentos matemáticos, lingüísticos, históricos, geográficos, astronômicos, e a física, e a química, e a história natural, desde a investigação microscópica até ao reconhecimento hábil e prático dos mais difíceis espécimes dos três remos da natureza; conhecer descritivamente todas as filosofias, desde Aristóteles, o outro, até Aristóteles, ele mesmo, ter meditado, uma por uma, as crenças e as religiões de todos os tempos e lugares, sem falar de uma leitura completa impossível de todas as literaturas em original, desde os poemas da neve escandinava até os poemas do sol do Himalaia, que desespero ser erudito, erudito, erudito! e não poder ligar, na rapsódia de uma concepção cosmogônica do universo, tanto retalho precioso!

Os sistemas filosóficos eram engenhosos, lógicos, concatenados. Mas não serviam porque, sendo razoáveis, eram diversos! O que é múltiplo em opinião não é verdadeiro. A luz é uma só e indiscutível. Aristóteles tinha por falsos todos os princípios debatidos. E, como a filosofia é uma polêmica, lá ia ele atordoado por entre as escolas como um bêbado.

Mas ardia por ver em que ficavam os pensadores para então filiar-se em remorsos à escola unânime e universal dos perfeitos sábios. Quando chegaria para esta solução o Messias mestre?

Infelizmente, não dispunha da necessária força, ele, Aristóteles de Souza, para fazer a paz entre os princípios. Só havia talvez resignar-se a morrer, dolorosa contingência! sem conhecer o advento bendito da Luz indiscutível e única.

Para compensar a tristeza da decepção, Aristóteles atirava-se aos livros com redobrada fúria, tentando embriagar-se com a contemplação dos fatos isolados.

O cenáculo dos seus excessos de erudito esfaimado, era o templo.

Templo chamava Aristóteles à biblioteca, situada no centro da casa. Estava-se aí em um retiro de completo sossego. A luz penetrava verticalmente por uma clarabóia de vidros foscos, e se dispersava, silenciosa e igual, descendo pelo lombo colorido dos volumes ao soalho tapetado, onde caía maciamente, como receando perturbar a paz absoluta do interior.

A sala era hexagonal, de uma arquitetura graciosa e opulenta. Seis estantes uniformes de madeira lavrada e fosca encobriam as paredes e cercavam o local, tocando os frisos do teto com os emblemas do estudo que as adornavam, globos terrestres, teodolitos, lunetas, tinteiros, troféus de penas e réguas artisticamente arranjados, panóplias completas dos combates do espírito, sobre alfarrábios amarrotados de páginas enormes - tudo primorosamente talhado em carvalho.

Duas portas comunicavam a biblioteca com os outros aposentos da casa. Sobre as portas desabavam amplos reposteiros da cor da madeira das estantes. A cada um dos seis ângulos, formados pelo encontro das estantes, havia uma estátua.

Quatro destas pequenas, ladeando as portas.

D. Quixote, de ponto em branco, magríssimo, sentado, espada de cavaleiro à cinta, heróico, cravando, na encadernação inofensiva dos livros do lado oposto, o desafio do olhar nobre e triste de vingador de agravos.

Hamleto, de pé, um gracioso descanso sobre um quadril, em traje ligeiro de jovem fidalgo, deixando ver até à coxa as longas meias do tempo, a mão esquerda sobre a espada, a direita fechada à altura do queixo, em gesto de fervorosa contensão meditativa.

Pela colocação da estátua, o olhar do príncipe sombrio ia direito às faces cavadas e aos longos bigodes desanimados de D. Quixote.

Fausto, o pobre filósofo, preocupado simultaneamente pela decepção espiritual e pelo amor intenso à vida, simbolizada em Margarida.

Mefistófeles, ao lado de Fausto, perseguindo-o ali mesmo na ornamentação da biblioteca, inseparável mentor das trevas, com o seu vestuário de pajem, o gorro, e a petulante pena oblíqua, e a ironia satânica.

As duas outras estátuas eram colossais. Aristóteles e Shakespeare.

As quatro primeiras descansavam sobre colunas de ferro negro, as duas últimas sobre peanhas quadrangulares de madeira pintada de branco.

Todas de bronze.

A de Aristóteles envolvia-se nas dobras simples e majestosas de um manto grego. Shakespeare trajava, segundo uma gravura muito conhecida que o representa perante a corte de Inglaterra.

O cone luminoso, baixando da clarabóia, chegava em toda luz aos nomes gravados nas peanhas. O corpo das figuras desenhava-se num crepúsculo que escurecia gradualmente para o teto; a fronte delas mal se distinguia no círculo de sombra que rodeava a clarabóia.

Em meio dessa sombra, como dentro de uma nuvem, percebiam-se confusamente rostos que olhavam para baixo fixamente - retratos de homens ilustres, obra rara de arte, pintados no teto sobre medalhões apensos às volutas do estuque, frondosamente distribuído para todos os lados, em torno do foco luminoso da clarabóia.

No centro da sala achava-se uma grande mesa cercada de divãs.

Aí se entregava Aristóteles aos seus furores de aplicação.

Como lhe sabia o estudo, ai na calma do isolamento, não ouvindo, sequer, o murmúrio farfalhado das árvores da serra, na íntima convivência dos livros, aspirando o cheiro das encadernações novas, ou a sagrada emanação dos infólios, perfume dos séculos!

Como era agradável passar as horas absorto, com as suas obras prediletas, ferozmente excitado pela febre de conhecer; ou, por desenfado, reclinar-se em um divã e permutar olhares de inteligência com os rostos vivos do teto, Dante, Petrarca, Moliêre, Klopstock, Cervantes, Byron, Guttemberg, Kepler, Beethoven, Miguel Ángelo, Kant, Cesar, Sócrates, Lafontaine, Ariosto, Hegel, Descartes, Darwin, Leão X, Spencer, cem figurões do espírito, com os quais privava o nosso sábio!

Que nobre entusiasmo lhe produziam então as estátuas! Como se entendiam bem Aristóteles e aqueles homens de bronze, que representavam a imortalidade do gênio e das obras geniais! Em êxtase de vaidade, mirando as esculturas, o sábio chegava a sentir-se digno também de uma transfiguração. Encontrava mesmo em si alguma cousa que o aproximava da natureza daquelas estátuas. O destino de um sábio é acabar estátua tarde ou cedo. No meio daquelas figuras, Aristóteles sentia-se um pouco monumento, como elas. Uma dormência estranha tomava-lhe as pernas, beribéri da glória! e ele sentia-se já metade bronze, bronze até à cintura, como aquele personagem das Mil e uma noites!

De súbito caía em si. Como pensar em estátua, um pobre diabo que não chegara a consolidar em um sistema os próprios conhecimentos, o triste sábio dos retalhos, avesso à síntese?!

Assaltavam-no assim inopinadamente dolorosos momentos de desânimo, no meio das preocupações do estudo.

Ele queria escapar à obsessão... Lã estava a síntese impassível, a rir sarcasticamente no Mefistófeles de bronze, a rir para ele, o espírito da classificação, como a zombaria da própria inépcia, fechando-lhe a estrada das aspirações!

Por mais que tentasse não foi possível a Aristóteles de Souza dominar a preocupação enferma.

A grande obra estava por fazer... Ele sentiu-se arrastado a acometê-la.

Estava perdido. Galgara a Babel do saber, e a ciência, a altura incalculável dos problemas, talhados a pique como precipícios, produzia vertigens tais ao seu espírito, que lhe fora preciso cerrar os olhos ao pensamento, para escapar ao desastre.

Bem o tentou, mas não foi possível. A idéia fixa escravizou-o. A dificuldade teimosa da solução passou a acabrunhá-lo como uma desgraça.

Até que um dia as cousas mudaram.

Ultimamente, à noite trancava-se Aristóteles na biblioteca, a meditar até muito tarde.

Certa noite, como de costume, dirigiu-se ele para o seu lugar de trabalho. A biblioteca estava fechada. Aristóteles parou à porta.

O sobrinho Sancho que, desde a hora do jantar, notava modos extraordinários no tio, viu-o espiar pela fechadura como se quisesse lobrigar alguma cousa no interior da biblioteca, cousa impossível aliás, por estar a sala sem luz e o reposteiro corrido.

Convencendo-se de que nada poderia ver, o sábio colou o ouvido ao orifício da fechadura. Esta nova observação não foi infrutífera; porque Aristóteles ali ficou um tempo imenso, curvado, dobrado, com as mãos nos joelhos, imóvel naquela auscultação absurda, como na observação tenaz do mais interessante fenômeno.

Vendo que se fazia tarde, incomodado pela insistência do sábio, o sobrinho acercou-se dele e receoso de causar desagrado perguntou muito docemente:

- Não deseja descansar, meu ti.?... Já é tarde...

O velho não ouviu; Sancho repetiu o convite.

Como se lhe disparasse dentro uma mola elétrica, Aristóteles empertigou-se bruscamente contra o sobrinho; e, rijo, teso, imperioso, formidável, apontou com a mão magra para a saída da ante-sala onde se achavam, rangendo entre dentes, com a voz surda e as sílabas trincadas:

- Retira-te!

Meio amedrontado, meio compadecido, o moço afastou se. Tinha certeza de que o tio era vítima de um desarranjo cerebral. Conservou-se à distância, observando-lhe a atitude.

Quase ao romper do dia, Sancho o viu retirar-se da porta da biblioteca, passar em silêncio como um espectro e recolher-se vagarosamente ao dormitório.

No dia seguinte um respeitável médico, chamado às Paineiras por Sancho, observou a repetição do estranho fato e constatou-se a loucura do sábio.

- Tanto esforço mental... explicou o facultativo com proficiência.

E um ano passou.

A loucura de Aristóteles, traduzindo-se por uma inofensiva mania, não tornara necessária a mudança do enfermo para um hospício. Limitava-se o velho a passar os dias embrutecido em um idiotismo inerte, contristador, desenvolvendo a ação da sua vontade unicamente para impedir, por meio de uma proibição assombrosamente enérgica, que se abrissem as portas da biblioteca.

À noite, invariavelmente, postava-se junto da porta do templo e levava horas e horas imóvel, extático, manifestando, na fisionomia, o gozo de um prazer imenso.

Conformados com a desgraça, o sobrinho de Aristóteles e os amigos adotaram o estado patológico do sábio como uma simples metamorfose das esquisitices do velho; e não viram, afinal, diferença nenhuma entre a nova mania de escutar à noite o silêncio da biblioteca e a antiga avidez maníaca de ciência e literatura. Dous capítulos coerentes da história vulgar de um sábio.

Em compensação, que profundíssimo desdém lhes votava Aristóteles! Espíritos rudes e escuros, não lhes era dado se quer desconfiar em que vertiginosas alturas andavam os condores do seu pensamento. E certo não valia a pena comunicar-lhes as grandes cousas que lhe vibravam ao ouvido, nas preciosas horas contemplativas.

Aristóteles sentia-se engrandecer.

Um clarão novo convulsionava-lhe o cérebro como uma batalha de relâmpagos. Rebentava uma florescência de estrelas, na escuridão caótica das suas idéias. Venturosa primavera de irradiações! Era ele! era ele o predestinado!

Narrava a Bíblia o conflito meteórico dos átomos conflagrados, antes da gênese divina da Ordem. Aristóteles sentia fabulosas as dimensões do seu crânio. Dispersos, odiando-se mutuamente, cercados de uma escuridão compacta, flutuavam-lhes as idéias adquiridas nos longos labores do estudo, rebeldes a qualquer tentativa de harmonização filosófica. Repentinamente toda essa escuridão se crivara de astros cada vez mais numerosos e mais brilhantes. As células educadas do seu cérebro, outrora inimigas, sorriam umas as outras, com a chegada da luz. Havia um ano essa tendência simpática progredia em intensidade no seu espírito.

Devia ser ele Aristóteles de Souza o pregoeiro bendito da paz universal do pensamento! Era impossível que depois de tanta exacerbação mental não lhe saltasse da cabeça, a Minerva armada e invencível da sabedoria única e evidente.

Por isso ouvia no templo aquela epopéia de rumores, cada noite mais assombrosa e mais vasta.

Maravilha! Os livros que Aristóteles descera das estantes para os estudos preparatórios da confecção de um fabuloso dicionário dos conhecimentos humanos e dispersara em desordem, cobrindo o tapete da biblioteca, subindo dous palmos pelo pedestal das estátuas, todo esse mundo de volumes abriam as páginas como mandíbulas e vociferavam. Aristóteles escutava extasiado o concerto estupendo das vozes.

Clamavam as filosofias, clamavam os apostolados da crença, estertoravam os mártires. Cadenciando o vozear desordenado das opiniões ardentes, ouvia-se a palavra calma dos livros didáticos, a proferir preceitos. Os geógrafos narravam viagens; os astrônomos revelavam descobertas. Prestando bastante atenção percebia-se o desmoronar longínquo dos impérios; de momento a momento uma página repetia as palavras de Baltazar; ouvia-se caírem os dias e os acontecimentos como as folhas das árvores: era o rumo da História.

À primeira noite Aristóteles de Souza fora impressionado por um ligeiro barulho. Encostando o ouvido à fechadura, pareceu-lhe sentir um tropel desordenado de ratos, folgando na biblioteca em trevas. Continuando a escutar, o rumor avolumou-se como o brado crescente de um trovão nos espaços.

Cresceu e transformou-se, ganhou modulações, ramificou-se em tumultos parciais confundidos por fim em uma erupção incalculável de clamores, como se uma batalha estanha se empenhasse entre os capítulos e as doutrinas.

Aristóteles gozava, exultando, a inaudita impressão daquela sinfonia de vulcões a contorcer para todos os lados os tentáculos da lava rugidora e espantando o universo com o bramir anárquico das crateras.

Sobre o turbilhão das ciências, dos princípios, das opiniões e dos fatos, reinava a soberania das artes. Pareciam estranhas à tempestade inferior. As obras de arte exalavam harmonias arrebatadoras, dominando às vezes a peleja colossal dos fatos e das doutrinas. Inteira bonança, lá em cima. As estrofes serenas pairavam na altura, como garças sobre o oceano revolto.

Às vezes um artista descia, destacando-se da suprema placidez; então baixava como um arcanjo vingador, esgrimindo um estardalhaço de raios e reerguia-se à eminência, deixando a desolação no torvelinho das opiniões, das tiranias, ou das vergonhas.

Esta contemplação estupenda acabrunhava Aristóteles. Não era impunemente que ele fruia esta audição de assombros. Cada vez que saboreava o seu estranho deleite, uma prostração mais pesada obrigava a procurar o leito.

Mas entregava-se a acessos de furor, se alguém tentava dissuadi-lo da fatigante penitência que se impusera.

Um belo dia, a debilidade não permitiu mais que ele se fosse postar no seu observatório do costume. O velho sábio implorou com lágrimas de desespero que o carregassem até à porta do templo.

Arranjaram-lhe aí uma cadeira confortável e Aristóteles ainda uma vez pôde chegar até o seu querido posto de observação.

Entretanto o sobrinho, um médico e alguns amigos presentes não viram mais acender-se o olhar do sábio como nas noites de entusiasmo. Ele colou o ouvido à fechadura, mas uma expressão dolorida de desapontamento foi o único ritos que lhe agitou a face.

Voltou para a cama mais abatido do que nunca. Com o olhar fixo e morto, os lábios entreabertos e os membros abandonados em contristadora flacidez passou ele o dia seguinte. Embalde lhe foram proporcionados excitantes, Aristóteles parecia extinguir-se de uma vez irremissivelmente.

À noite levaram-no carregado até à porta da biblioteca. Este recurso extremo foi sem resultado. O templo, dias antes, povoado pelo rumor incrível da batalha dos livros, estava silencioso agora. Tristíssimo silêncio.

- Ah! exclamou Aristóteles em um hausto de agonia, agitando a cabeça que lhe tombava em abandono para o peito. Nada mais ouço! nada, nada mais!...

A voz fraquíssima saía como soluços.

Poucos momentos depois, ali mesmo na cadeira expirou, abraçado com o sobrinho, que o cobria de lágrimas.

Expirou, coitado! quando provavelmente ia resolver o grande problema da paz das escolas. Porque não era crível que, de tão luminosa febre cerebral, não explodisse a verdade decisiva, mediadora eficaz do conflito dos espíritos.

Quando, depois das cerimônias fúnebres, abriram-se as portas da biblioteca, que por mais de um ano jazera trancada, encontraram-se os livros em miserável estado. Uma turma diligente de ratos devastara a livraria. Meia dúzia de volumes, se tanto, haviam escapado à sanha dos roedores.

Pobre Aristóteles! Não lhe sobreviveram os queridos livros!

Lá estavam esparsos, fragmentados, pulverizados, desfeitos, os seus companheiros de cinqüenta anos de trabalho.

Lá estavam os seus problemas aos pedaços, as suas teorias, feitas poeira de papel roído!

Lá estavam aos montes, conspurcados e miserandos, os destroços do vigor cerebral dos homens e da sabedoria dos séculos.

Sobre aquela devastação erguiam-se inalteráveis as estátuas com a mesma expressão que lhes dera o escultor à face de bronze, Hamleto, tenebroso e irônico, Fausto meditativo e preocupado, D. Quixote a fitar bravamente as estantes vazias, Mefistófeles, de riso cruel, e as figuras colossais do Filósofo e do Poeta, com a fronte perdida no escuro do alto, em meio da ramagem florestal do estuque e dos retratos admiráveis de grandes homens.

Fontes:
Biblioteca Virtual
Imagem = Tá Livren Monte

Pedro Ornellas (Saudade é…) Parte 1 e 2


Trovas que Definem Saudade

1
Saudade é tudo que fica,
de uma ventura fugaz...
No pranto que não se explica!
No verso que não se faz!
Erasmo Silva – SP

2
Saudade, mágoa sentida,
barco distante do cais;
pedaço da própria vida
que a gente não vive mais...
Marta Maria Paes de Barros – SP

3
Vou andando e, sem barulho,
vem à tona um triste fato:
a saudade é um pedregulho
que não sai do meu sapato!
Olivaldo Júnior - SP

4
Sodade, uma dô que dá,
mas num é dô de doê;
é vontade de alembrá
cum vontade di isquecê!
Luiz Peixoto - RJ

5
Saudade dentro do peito
é qual fogo de monturo...
Por fora tudo perfeito,
por dentro fazendo furo.
Patativa do Assaré - CE

6
O que seria a saudade
se não fosse o que ela é:
viver hoje, com vontade,
de sonhar de marcha à ré.
Ilnea Miranda

7
A saudade é um passarinho
em teimosa migração...
vem do passado, e faz ninho
nos beirais do coração.
Héron Patrício - SP

8
Saudade, no descampado
do meu coração descrente,
é semente do passado
germinando no presente...
João Paulo Ouverney - SP

9
Saudade é uma diligência
que nos leva, docemente,
com repetida freqüência,
ao velho oeste da gente!
Waldir Neves – RJ

10
Minha amiga; que besteira!...
Fugir da saudade vossa?!
Saudade é como coceira:
Só coça se a gente coça...
José Araújo Sobrinho - PB

11
Saudade... mal comparado
tem esta definição:
Cerca de arame farpado
em volta do coração!
Ailton

12
Saudade: expressão mais bela
de tudo que já se foi;
é como abrir a janela
ao passado e dizer: "Oi"!
José Ouverney - SP

13
Há uma dor, que dá no peito,
que se agrava com a idade
remédio não faz efeito,
quando a doença é saudade!!!
Roseli

14
Camarão preso na grade
do matapi resistente:
é assim que vejo a saudade
presa no peito da gente!...
Antônio Juraci Siqueira - PE

15
Saudade – uma vida cheia
de outra vida que passou:
- marcas de passos, na areia,
que o tempo não apagou!
Ferreira Gullar - MA

16
Talvez te diga uma asneira,
mas meu avô já dizia:
"A saudade é companheira
de quem não tem companhia"...
José Araújo Sobrinho - PB

17
Saudade é doce lembrança
se traz promessas consigo.
Saudade sem esperança,
não é saudade... é castigo!
Alcy Ribeiro Souto Maior - RJ

18
Saudade é brasa apagada
debaixo da cinza quente;
Basta uma leve soprada
e ela acende novamente!
Ailton

19
Saudade - doce maldade,
que a gente sente e não vê,
mas eu vejo esta saudade,
esta saudade é você!...
Anis Murad - RJ

20
Saudade... palavra linda,
de sete letras... Saudade
é noite que tem ainda
lampejos de claridade.
Belmiro Braga - MG

21
A saudade é simplesmente,
um claro espelho encantado,
mira-se nele o presente
e ele reflete o passado.
Geralda Armond – Juiz de Fora MG

22
Saudade – velho retalho
da eterna luz refletida
sobre a gotinha de orvalho
na folha seca da vida!
Adelir Machado – Niterói RJ

23
Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
Flávio Roberto Stefani – Porto Alegre RS

24
Senhora de cada instante
das minhas horas vazias,
a Saudade é uma constante
na inconstância dos meus dias...
Waldir Neves – Rio de Janeiro RJ

25
Esta dor no coração!
Esta angústia!... esta ansiedade!
Para a ciência é depressão,
para quem ama é saudade.
Heribaldo Gerbasi – São Paulo SP

26
A saudade é conhecida
como a dor do amor ausente...
Saudade não tem medida
só sabe o tanto quem sente.
Djalma Mota – Caicó RN

27
Entre nós não há mais nada,
mas ante a prova de fogo,
saudade é carta marcada
que acaba ganhando o jogo!
Alba Cristina – São Paulo SP

28
Saudade: clarão fulgente
num viver tristonho, obscuro.
Um pouco do antigamente
que passa para o futuro!
Helena Ferraz (Álvaro Armando) - RJ

29
Saudade é folha caída,
é um precoce envelhecer,
é a distância mais sentida
do que, perto, se quer ter...
Antônio Colavite Filho – SP

30
Saudade – frasco dourado,
vibrando na alma da gente,
traz perfumes do passado
que sentimos no presente.
Severino S. Souza – Porto Alegre RS

31
Saudade – eterna pontada
que a gente sente e não diz;
uma lembrança apagada
do tempo em que foi feliz!
Diamantino Ferreira – Campos RJ

32
É a saudade uma ausência
do bem que a gente perdeu,
é a fragrante e amarga essência
de uma ilusão que morreu !
Neide Freire – Fortaleza CE

33
Vivemos longe, é verdade,
mas estejas onde for,
eu chego lá “de saudade”:
a ponte aérea do amor.
Dorothy Moretti – Sorocaba SP

34
Tendo a paixão como escolta
e o coração em sentido,
saudade é um sonho que volta,
sem que nunca tenha ido!
Eduardo A. O. Toledo – MG

35
Quanto mais o tempo avança
mais eu fico a perceber.
que a saudade é uma lembrança
que se esquece de morrer.
Miguel Russowsky – SC

36
Saudade, um mar de lembrança
na praia do pensamento,
onde a jangada balança
no sopro leve do vento!
Geraldo Lyra – Recife PE

37
Dona Saudade, velhinha,
bordadeira paciente,
não tem agulha nem linha,
mas borda os sonhos da gente!
Onildo de Campos – Rio de Janeiro RJ

38
Saudade é um velho barquinho
que vence o tempo e a distância
e recolhe, no caminho,
os pedacinhos da infância ...
Ercy Maria Marques de Faria – Bauru SP

39
Partiu, deixando o seu traço
no meu caminho dos sós...
- A saudade é esse espaço
que existe sempre entre nós.
José Valdez C. Moura - Pindamonhangaba SP

40
Lembra a saudade uma estrela
nas águas de um ribeirão
que fica sempre a retê-la,
enquanto as águas se vão...
Luiz Antônio Pimentel – Niterói RJ

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Aluisio de Azevedo (Sizenando Nabuco)


Mais um homem de espírito que se recolheu à terra; mais um companheiro que desabou para sempre na infindável noite em que não há estrelas nem esperanças de aurora, mais uma parcela da grande e generosa alma brasileira, que se perdeu para a pátria nestes dolorosos períodos de angústia e desalento.

Sizenando Nabuco foi um lutador vitorioso como advogado público e como propagandista das mais santas e elevadas causas sociais; mas, como homem de talento, foi nada mais que uma vítima do seu meio e da desorientada época em que teve de decidir e traçar a sua carreira.

A natureza talhara-o para homem de letras; dera-lhe uma alma ardente e apaixonada de poeta; uma delicadíssima suscetibilidade nervosa, pronta sempre a vibrar sonoramente ao toque mais sutil da mais passageira asa de uma comoção.

O seu primeiro ideal foi a literatura, e durante os anos acadêmicos todo o seu esforço, todos o seus estudos fora do curso, foram a ela consagrados. Muito moço ainda, creio que aos dezenove anos, revelou-se com um drama A túnica de Nesso, que marcou a sua primeira vitória no teatro. Esse trabalho fez sensação. O Imperador chamou o autor no seu camarote, cumprimentou-o, deu-lhe conselhos.

Sizenando continuou a trabalhar, sempre com êxito, mas em breve reconheceu que no Brasil a literatura poderia ser um belo ideal de estudante, nunca porém um seguro e produtivo meio de vida para um homem de aspirações. E rejeitou as solicitações do seu talento literário, cortou as asas da sua imaginação, escondeu os seus manuscritos, e de um salto atirou-se à tribuna de advogado.

Como ao lado dos dotes de escritor, a natureza lhe pusera todos os dotes oratórios, fez rápida carreira na jurisprudência e ganhou logo o prestígio e a popularidade que o acompanharam até ao fim da sua vida de lutas sem tréguas.

Mas, já velho, enfarado dos seus triunfos jurídicos, convencido de que as glórias de um tribuno são como as fugitivas conquistas de um ator, cujo trabalho não vai além da geração que o ouviu, cansado dessa campanha da vida pela vida, em que vamos deixando dia a dia os farrapos da alma moída e esfalfada, era para os seus primitivos ideais que ele volvia os olhos desiludidos e saudosos.

- "Ah! tivera eu nascido em outro país, fora sempre e seria ainda um homem de letras!..." disse-me ele urna vez, com um triste sorriso, conversando-me sobre literatura.

Um dia de seus anos, há talvez cinco, Sizenando, sem ânimo para fazer uma festa, mas querendo viver um instante das alegrias do passado e embriagar-se por um momento com o vinho das suas primeiras ilusões, convidou um grupo de rapazes de letras para passarem algumas horas de palestra em sua casa.

Eu fui um deles.

Lá estavam o Valentim Magalhães, o Filinto de Almeida, o Urbano Duarte, o Raimundo Correia, o Luiz Murat, o Rouède, e outros.

Que noite deliciosa! O Sizenando parecia ter voltado aos seus vinte anos.

Falava de arte vertiginosamente, rindo, criticando, numa prodigalidade de pilhéria e de bom humor, que a todos nós se comunicava e que a todos nós seduzia. Com o seu espírito e com os segredos daquela prodigiosa e fascinante galanteria que era um dos mais belos privilégios do seu tipo, conseguiu transformar aquelas horas de simples palestra de rapazes no mais encantador serão literário.

Instado por todos nós, consentiu em ler alguma cousa de sua produção, mas exigiu que fosse obra do bom tempo, do tempo dos sonhos e das quimeras.

Trouxe uni manuscrito, assentou-se a uma mezinha ao centro da sala; assentamo-nos em torno dele, e começou a leitura

Sabeis de quê! De um drama tirado do célebre romance Monseur de Camors de Otávio Feuillet escrito em bom e nervoso francês, com estilo, com a naturalidade e a graça de quem escreve na própria língua.

Oh! como os seus olhos se acendiam, como a sua voz pujante se inflamava com aquelas frases apaixonadas! Como a sua bela alma romântica acordava aquela música do passado! Uma quente ressurreição de beijos da mocidade! Um delírio de amor e de mágoas sentimentais!

Depois leu outra obra, esta agora escrita em português. E de cada página o mesmo eflúvio de poesia se evolava, como um perfume dos tempos do romantismo. Aqueles manuscritos de letras amarelecidas eram as urnas de velhos bálsamo consagrados pelo sacrifício do seu talento de escritor, jaziam ali todas as suas ilusões, todos os seus sonhos de artista e todas as lágrimas da sua alma primitiva.

E quando voltei de lá, sentindo ainda cantar-me aos ouvidos a melancolia daquela vaporosa música do passado, tive assomos de amaldiçoar esta pátria burguesa, esta mãe desalmada, que não tem seios para acalentar os seus poetas.

E agora, quando me disseram que Sizenando Nabuco acabava de morrer, foi ainda a lembrança dessa noite de escavações literárias, essa noite de passeio pelos cemitérios do seu passado, que me veio ao coração como uma triste e pálida figura de saudade, assentar-se ao lado da palpitante dor de o saber morto.

O Combate, 18 de março de 1892

Fonte:
Biblioteca Virtual www.biblio.com.br

Nilton Manoel (São Paulo é Esperança Todos os Dias)


Homenagem aos 450 anos de São Paulo
32 estrofes de 7 versos

1
No meu antigo toca discos,
ouço com muita atenção,
lindas canções de outrora:
- "São Paulo Quatrocentão",
da "Rapaziada do Brás"...
O "Trem das Onze me traz",
saudade e muita emoção.
2
O trem pelos velhos trilhos,
a história do povo escreve!
e a cidade em seu cenário
sempre arrojada se atreve
a plantar modernidade;
sofra a gente com a saudade,
o progresso não é breve.
3
São Paulo, não perde tempo,
inova, protege, acolhe,
quer sua gente contente
não há garoa que molhe,
o entusiasmo dessa sina;
quem vence sua rotina
dá vida aos sonhos que escolhe.
4
O povo quer movimento,
quer cenário, quer ação,
quer futuro e conforto
pela glória da nação...
Todo mundo quer ter paz,
como é bom sonhar no Brás,
há poesia nesse chão!
5
Sou paulista do interior
e passo avida na estrada,
quem gosta de movimento
quer vida facilitada:
-ao modernismo dou fé,
por todo lado dá pé,
se a cidade é bem cuidada...
6
Quando estou na capital
tenho eficiente transporte;
seguro, rápido e ímpar,
toda estação tem bom porte
que nem posso imaginar
sem metrô pra trabalhar.
Ser pontual, é ser forte!
7
A inspiração não me falta
e até me lembro que, a gente,
há trinta e cinco anos tem,
esse serviço excelente
que movimenta a cidade
e dá ao povo, a vontade,
de viver mais ...felizmente!
8
São estações variadas
espalhadas pela cidade,
elevadas, com plataformas
e na sua versatilidade,
põe no cenário, poesia,
integra-se com a ferrovia,
caminho de prosperidade.
9
Entre fixas e rolantes,
gente que faz movimento
no ganha pão habitual...
Paro, olho e meu pensamento
cola imagens que, resumo
para as falas de consumo...
Reportagens do momento!
10
Quem tem vida solidária
dá valor à cortesia:
por favor... muito obrigado...
dá licença... que poesia,
nas convenções sociais;
todos nós somos serviçais,
pelo pão de cada dia.
11
Jânio Quadros fez história
melhorou a imagem do Brás.
com novas edificações
e o povo cheio de paz,
se orgulha a todo o instante,
por ser sempre o bandeirante,
de eras que não voltam mais...
12
Nossa vida que é cíclica,
deve a Anchieta, o jesuíta,
que nem sabia, Senhor!
a vida rica e catita
que sua instalação
da história da fundação,
seria plena e bonita.
13
Na sequência do transporte
o tempo não segue à toa
e o cenário num instante
de São Paulo da garoa
vai e volta com o metrô
rápido como um alô
de celular... Coisa boa!
14
Na integração, a saudade
que traz Maria Fumaça
é recompensa gostosa
é vida cheia de graça
é tempo cheio de glória
é povo que faz a história
nas estações que se passa.
15
Sertanejo, deslumbrado,
da capital do Interior,
Paro e olho como poeta
e fotografo com amor,
a cidade velha e a nova...
Faço haicai, cordel e trova,
São Paulo em tudo tem cor.
16
Fora e dentro da paisagem
do metrô, pelas estações,
a moda que inventa moda
tem espaço de emoções,
nos projetos culturais
além de artes virtuais
concertos e belas canções
17
Viajando, cheio de sonhos,
o usuário com vigor,
faz a vida mais contente,
tem no metrô, o esplendor,
do minuto brasileiro.
Sabe que tempo é dinheiro
e dinheiro é vida e valor.
18
Nestes bons trinta e cinco anos
dos quais dez Companhia
de Trens Metropolitanos.
São Paulo que é poesia.
tem seus pontos cardeais
movimentos cordiais,
na vida do dia a dia...
19
Entre túneis e superfícies.
neste cenário bacana,
paz pelas quatro estações
com as vitrines de Ikebana...
Esculturas e poesia...
O jornal de todo o dia...
É obra que Deus emana.
20
Nesse progresso incomum
de terra quatrocentona
dos cafezais à industria
ao comércio em maratona
o povo que se desdobra
o imigrante tudo cobra
da cidade que emociona.
21
Cenário amigo é o Metrô.
solidário nada esconde...
Relembre através da história
a vida dura do bonde,
no meu relógio de ponto...
Todo mês quanto desconto!
A rapidez corresponde.
22
"São Paulo dos meus amores"
treze listras das bandeiras
progressista a todo o instante
de vida gentil de ordeira
cidade que se desdobra,
urbanidade que sobra
pela pátria brasileira.
23
Nesta vida, coisa boa,
meu trem das onze, é fulgor,
corre até a meia-noite;
é transporte de valor
é segurança de fé
é sorriso que dá pé
é verso de cantador...
24
Vai-e-volta, gente bonita,
da pátria do bom cidadão
em sua faina diária,
carteira assinada ou não
que, São Paulo que é formiga
também é cigarra e abriga
a saga de construção.
25
Neste mundo transversal
temas escolares tantos,
em seu cenário tem vida,
Num programa, com encantos.
comunitários o fascínio,
oferece a todos tircínio
da grandeza em todos cantos.
26
No "Ação Escolar" projeta
a influência, positiva,
do metrô pela cidade...
Movimento que motiva,
no urbanismo, novos lares,
é nos bancos escolares,
consagra-se em voz ativa.
27
Os conceitos cidadãos
São plenos em toda parte
Faz cultura de então
Dar viva a vida com arte
Que o visual é cultura
que encanta, fascina e apura,
É saber que se reparte...
28
Como patrimônio público
paisagístico e de transporte
Metrô é riqueza da história,
trouxe à vida a melhor porte,
é tudo que o povo queria...
Foguete de todo o dia
do meu trabalho, o suporte.
29
São Paulo renovação
canteiro da arquitetura,
pátria de nossos estados
onde se sonha fartura...
Ambição a luz do dia
de noite sonho e poesia...
Vive-se bem... A vida é dura!
30
Por todas as linhas que passo
Por todos sonhos que planto
a trabalho ou a passeio
O metrô tem seu encanto
viajo em paz, sossegado,
feliz e cheio de agrado
e meus limites suplanto.
31
Recordo dos velhos tempos
do transporte e nossa história...
Museu Gaetano Ferolla
têm muito da trajetória...
O bondinho da novela
se à saudade dá trela?
Metrô, é conforto e glória!
32
Salve os metroviários. Viva!
gente amiga e de paz!
quem trabalha por São Paulo,
é ordeiro em tudo que faz.
Viva minha gente de fé.
em Sampa tudo da pé
Viva o Metrô! Viva o Brás!

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Alcantara Machado (A Apaixonada Elena)


(Senhorinha Elena Benedita de Faria)

- Quem é que me leva hoje no Literário?

Ficou esperando a resposta.

Dona Maria da Glória fazia uns desenhos na toalha com a ponta do garfo. Achando muita graça na história do Dico. Esses meninos. Mas o melhor ainda não tinha sido contado: a negra perdeu a paciência e meteu a mão na cara do gerente. A rapaziada por pândega fez uma subscrição e deu uns dois mil e tanto para a negra. E a polícia? Que polícia? Negra decidida está ali.

- Quem é que me leva hoje no Literário, mamãe?

Ficou esperando a resposta.

Dona Maria da Glória falou:

- Vamos para outra sala que aqui está calor demais.

Dico pôs no Panatrope o Franchie and Johnny. E diante do aparelho ensaiava uns passos complicados. Pé direito atrás. Batida de calcanhares. Pé direito na frente. Batida de calcanhares. Saiu andando que nem cavalo de circo.

Elena sentou-se, abriu a revista diante do rosto pôs uma perna em cima da outra.

- Tenha modos. menina!

Suspirou, descruzou as pernas. Dico foi se chegando. Deu um tabefe na revista, fugiu de banda deslizando.

- Chorando! Que é que ela tem, mamãe?

- Sei lá. Bobagens. Pare com essa dança que me estraga o encerado.

Elena levantou-se e as lágrimas caíram.

- Onde é que vai? Sente-se ai!

Dico parou a musica. Foi ficar diante da irmã de beiço caído.

- As lágrimas da mártir.

Dona Maria mandou que o Dico ficasse quieto, não amolasse nem fosse moleque. E mandou Elena enxugar as lágrimas que já estavam incomodando. Dico jogou o lenço no colo da irmã. Elena jogou o lenço no chão por desaforo. Enxugou com a gola da blusa.

- Sou mesmo uma mártir, pronto!

Os olhares da mãe e do irmão encontraram-se bem em cima do vaso de flores de vidro. Despediram-se e se foram encontrar de novo nos olhos molhados da mártir Elena. O Doutor Zósimo veio lá de dentro escovando os dentes. Sacudiu a cabeça para a mulher:

- Que é que há? A mulher esticou o queixo e abriu os braços: Não sei não!

- Malvados! Não querem me levar no Literário!

- Quem é que não quer?

- Vocês!

Então o Doutor Zósimo voltou lá para dentro babando espuma. O Dico pegou o chapéu, beijou o rosto da mãe, curvou-se diante da irmã, fez umas piruetas e saiu cantando o Pinião. Dona Maria da Glória tirou o cachorro do colo. Depois deu uma mirada vaga assim em torno. Depois penteou o cabelo com os dedos. Finalmente bocejou e disse:

- Não seja boba, menina!

E foi embora.

O ruído da rua. O sol entrando pela porta aberta que dava para o terraço. Batiam pratos na copa. O cachorro latindo para o Doutor Zósimo. Esta mesa seria mais bonita se fosse mais baixa.

Elena espreguiçou-se e pôs no Panatrope um disco bem chorado dos Turunas da Mauricéia.

- Que vestido eu visto, mamãe?

- O azul.

Foi. Demorou um pouco. Voltou.

- Está todo amassado, mamãe.

- Então o verde.

- Com aqueles babados?

E repetiu:

- Com aqueles babados indecentes?

E tornou a repetir:

- Com aqueles babados indecentes, horrorosos, imorais?

Dona Maria da Glória estava na página dos anúncios.

- Em que vapor partiu a Dulce mesmo?

- Como é que a senhora quer que eu me lembre?

- Não seja insolente!

Fechou-se no quarto. Cinco minutos se tanto. Abriu a porta. Disse da porta:

- Eu vou pôr o novo futurista.

- Ponha o verde já disse!

- Oh desgraça, meu Deus!

Se o Zósimo continuasse a não fazer caso ela como mãe estava decidida: curaria aquele nervosismo a chinelo.

A toda hora olhava o ponteiro dos minutos. Já querendo ir embora. Vinte para as oito. Às oito acaba com o hino nacional. No fundo dança não passa de uma sem-vergonhice muito grande. A gente conta na certa com uma coisa: vai a cousa não acontece. As primas não paravam sentadas. Há moças que tiram seus pares de longe: é um jeito de olhar.

Voltar para casa, ler na cama a revista de Hollywood, procurar dormir. Com aquele calorão. E amanhã bem cedo: dentista. A vida é pau. Dez para as oito.

Dez para as oito Firmianinho apareceu. Começou a inspeção pelo lado esquerdo. Foi indo. No canto direito parou. Veio vindo. Chegou. Enfim chegou.

- Boa noite.

- Boa noite.

Tanta aflição antes e agora este silêncio. Dançavam empurrados. Não valeu de nada ter preparado a conversa. Tinha uma pergunta para fazer. Não era bem uma pergunta. Endireitando o busto parecia que se dominava. Felizmente repetiram o maxixe.

- Sabe que comprei um Reo? 22.222.

- Bonitinho?

- Assim assim. Dezoito contos.

Para que dizer o preço? Matou a conversa no princípio. Não tendo coragem de ver precisava perguntar. Então imaginava um modo, imaginava outro cada vez mais nervosa. E dançavam. O maxixe está com jeito de estar acabando. Perguntava agora. Daqui a pouco. No finzinho. Não perguntaria: olharia e pronto. O hino nacional continuou o maxixe.

- Tirou as costeletinhas?

- Ainda não viu?

Ora que resposta.

Quando pararam junto das primas dela ele virou bem o rosto de propósito. Tirou sim. Agora sim. Isso sim.

Despediram-se com muita alegria.

Chegou em casa foi direitinho para o quarto. Tirou o chapéu em frente do espelho. Guardou a bolsa. Ia tirar o vestido de bordados indecentes, horrorosos, imorais. Mas se jogou na cama com os olhos cheios de lágrimas.

Fonte:
ALCANTARA, Alcantara. Laranja da China. RJ: Ed. José Olympio.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 336)

Uma Trova Nacional


Uma Trova Potiguar

Eu me curvo ante os conselhos
que recebo todo dia,
quando dobro os meus joelhos
aos pés da Virgem Maria!
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - CTS-Caicó/RN
Tema: OCASO - 3º Lugar

A vida é um barco divino
tendo ao leme, a mocidade...
Porém, no ocaso, o destino
me leva ao cais da saudade!
–ELEN DE NOVAIS FÉLIX/RJ–

Uma Trova de Ademar

Num devaneio medonho
o que entristece e revolta
é perder-me qual num sonho...
Já no caminho de volta.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Quem nasceu com a desventura
de não ver a luz do dia
do olhar transfere a ternura
para a mão que acaricia.
ALFREDO VALADARES/MG–

Simplesmente Poesia

Mito
–SERGIO SEVERO/RN–

Julgas-me um Poeta? Julgas mal
Sou do Cordel, um trovador ... jogral

e qual um mouro produzo a minha lavra
Eu sou um Operário da Palavra.

É o Cordel que me alimenta, ó Moço
Com três cordéis eu pago o meu almoço

e com apenas um Cordel, até,
pago também meu matinal café.

Falando assim, é fácil imaginar
que é o Cordel quem paga o meu jantar.

...e dada a circunstância, te diria,
que me alimento só ...de Poesia!

Estrofe do Dia

Nosso mundo está cheio de pecados
pela falta de amor que o povo tem.
Na igreja de Deus não tem ninguém
mas os clubes de dança estão lotados;
hoje em dia os menores são levados
para os becos da prostituição,
se utilizam das drogas, depois vão
os maiores horrores praticando,
o retrato do tempo está mostrando
o princípio do fim da geração.
–CHICO PEREIRA/CE–

Soneto do Dia

Poesia, Meu Refúgio
–JOSÉ TAVARES DE LIMA/MG–

Sinto a tua presença nos meus passos,
a tua sombra acompanhar a minha;
e nas horas de insônia e de cansaços,
que a tua mão furtiva me acarinha...

Quando curvado ao peso dos fracassos,
a dor dos desenganos me espezinha,
eu te chamo inquieto, abrindo os braços
como quem de loucura se avizinha!

E, se a chamar-te quase sempre vivo
é porque sabes ser o lenitivo
que suaviza aquela dor medonha...

E acho em ti, poesia benfazeja,
o refúgio feliz que o aflito almeja,
e o mundo alegre que o poeta sonha!...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Machado de Assis (O Alienista) V – O terror ; VI – A rebelião


CAPÍTULO V - O TERROR

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.

—Impossível!

—Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.

— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí, Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou 0 tio no testamento, para viver "até o fim do mundo". Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí, seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: — "Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga". Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a divida.— "Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu". Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.

—Agora espero que...—pensou ele sem concluir a frase.

Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, rola a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era 0 resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde.

Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que...

—Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.

—Não?

—Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar 0 chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.

A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:—"Todo o seu dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.

Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.

A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.

—Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

—Há coisa, pensavam os mais desconfiados.

Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais,—a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas,—e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro,—um simples albardeiro, Deus do céu!

—Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.

De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.

— Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.

A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de contemplar a casa...

—Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.

—Não?

—Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra.—E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite.

Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava o seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro volto de Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste, não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.

—A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,—duas ou três de consideração,—foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, —ou quase toda—que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, —balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte—de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguaí contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes —porque o eminente confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo—D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas—feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, demais, sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...

—A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.

—Sim?

—É verdade. Lá está o Mateus...

—O albardeiro?

—O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...

—Tudo isso doido?

—Ou quase doido, obtemperou padre.

—Mas então?

O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.

—Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.

Três horas depois cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista."

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, 0 gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e provavelmente de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico—ou que o adiasse ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta idéia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e pareceu-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas idéias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão aspérrimo do Nada" esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das idéias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...

D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.

Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distancia de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.

—Devemos acabar com isto!

—Não pode continuar!

—Abaixo a tirania!

—Déspota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A idéia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se — e essa é uma das laudas mais puras desta sombrio história — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava:—é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.

—Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio,

E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que dizendo-se taciturnos ou alegando andar com pressa mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho:

La bocca sollevò dal fiero pasto
Quel "seccatore"...

mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.

CAPÍTULO VI - A REBELIÃO

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e `_ levaram uma representação à Câmara.

A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

—Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...

—É falso! interrompeu o presidente.

—Falso?

—Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.

A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa

Verde—"essa Bastilha da razão humana"—expressão que ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

—Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas idéias na rua para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação, reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo namorado:—Bastilha da razão humana!

Entretanto a arruaça crescia. Já não eram trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica—e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita—visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde,—dada a diferença de Paris a Itaguaí,—podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.

D. Evarista teve noticia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,—e não quis crer.

—Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.

—Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.

—Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado.

—Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e...

— Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele.

—Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.

D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis;; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao reto e baixavam do reto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

—Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.

O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

—Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...

Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.

—Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero.—Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então.

—Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

—Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

—Não entendo.

—Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

—Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.

Disse isto o alienista e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação e quis bradar-lhes:—Canalhas! covardes! —mas conteve-se e rompeu deste modo:

Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.

E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.

—Vamos! bradou Porfírio, agitando o chapéu.

—Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.
–––––––––––––
continua… Capitulo VII – O inesperado; Capítulo VIII – As angústias do Boticário
––––––––––––-
Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 17

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 335)


Uma Trova Nacional

Eu ouço na voz do vento,
quer na brisa ou tempestade,
que a vida é um fugaz momento
nas asas da eternidade.
–CIDINHA FRIGERI/PR–

Uma Trova Potiguar

É tanta a minha tristeza,
ao sentir que não me queres,
que por vingança e baixeza
me entrego a outras mulheres.
–ISRAEL SEGUNDO/RN–

Uma Trova Premiada

2004 - Nova Friburgo/RJ
Tema: REFÚGIO - 3º Lugar.

Não desgastes, noutros leitos,
o ardor dos abraços teus,
pois teus braços foram feitos
para refúgio dos meus!
–ALMIRA GUARACY REBELO/MG–

Uma Trova de Ademar

Ouvi de um velho tristonho
que quase nunca sonhou:
– sequer eu colhi um sonho
que a própria vida plantou!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Saudade é doce lembrança
se traz promessas consigo.
saudade sem esperança,
não é saudade... é castigo!
–ALCY RIBEIRO S. MAIOR/RJ–

Simplesmente Poesia

Empecilho
–MARINA BRUNA/SP–

Ramagem de um florir antigo
se contorce em minha janela.
Folhas ocultam o horizonte
e abafam meu viver incerto.
Inútil podá-las pois, súbito voltam
e, viçosas, separam meus anseios
do mundo vasto...
Onde se acorrentam as raízes
do mal que me atormenta?
Quero arrancá-las do meu solo,
abrir espaço aos devaneios,
gozar a alegria que passa,
voltar a ser livre... Como antes...

Estrofe do Dia

O meu sertão de hoje em dia
é um sertão diferente,
quase que não tem mais gente
usando uma montaria,
tem um velho Kar-manguia,
um Uno, um fusca, um Fiesta,
a serenata e a seresta
perderam-se na distância;
das coisas boas da infância
saudade é só o que resta!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Súplica.
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Jurei não lhe falar mais de ternura,
nem dar sinais de angústia nem de dor,
mas sinto as cicatrizes da censura
bem menos doloridas que as do amor...

Assim, movida pela desventura,
vivendo um sentimento embriagador,
tento afogar meu sonho na amargura,
e volto a lhe falar do meu amor.

Deixe que eu ame intensa e livremente,
sem censurar o meu comportamento,
sem ter pena das penas que padeço,

que eu sofro, por você, conscientemente,
e, por maior que seja o meu tormento,
estou sofrendo menos que mereço...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor