terça-feira, 13 de setembro de 2011

Hans Christian Andersen (A Agulha de Cerzir)


Era uma vez uma agulha de cerzir, tão fina que imaginava ser uma agulha de costura.

- Vejam bem o que estão segurando! - disse aos Dedos que a pegaram, a Agulha de Cerzir - não me percam! Se eu cair no chão, é bem possível que eu nunca mais seja encontrada, de tão fina que sou.

- Para isso há jeito - disseram os Dedos, apertando-a na cintura.

- Estão vendo? Estou seguida de grande comitiva! - volveu a Agulha de Cerzir.

Puxava atrás de si uma linha comprida, na qual, porém, não havia nó.

Os Dedos levaram a agulha diretamente para o chinelo da cozinheira, onde tinha de ser costurado o couro de cima, que se partira.

- Isso é trabalho de baixa categoria! - protestou a Agulha de Cerzir - nunca conseguirei varar isso! Vou quebrar! Vou quebrar!

E de fato quebrou.

- Eu não disse!? Sou fina demais para isso!

Agora ela não presta mais para nada, concluíram os Dedos. Mas tiveram, apesar disso, de segurá-la. A cozinheira pingou lacre na agulha, e espetou-a no lenço que trazia ao pescoço.

- Veja, agora sou alfinete de adorno! - disse a Agulha de Cerzir - sempre tive a sensação de alcançar um posto honroso. Quando se é alguém nesta vida, sempre se chega a ser mais alguma coisa.

E riu-se por dentro, pois nunca se vê, de fora, quando uma Agulha de Cerzir está rindo. Lá estava ela, pois, tão orgulhosa como se estivesse numa carruagem de luxo, olhando para todos os lados.

- Posso ter a honra de perguntar se o Sr. é de ouro? - perguntou ela ao Alfinete, seu vizinho - o Sr. tem magnífico aspecto, inclusive na cabeça, mas é muito pequeno! Deve tratar de crescer, pois nem todos podem ser lacrados na extremidade.

Assim dizendo, a Agulha de Cerzir ergueu-se com tanta altivez que escapou do lenço e caiu na gamela de lavar louça, no momento em que a cozinheira ia despejá-la.

Agora vamos viajar! - disse a Agulha de Cerzir - tomara que eu não fique fora para sempre!

Mas ficou.

- Sou fina demais para este mundo - disse ela, já na sarjeta - tenho a consciência do que sou, e isso sempre causa certo prazer.

E a Agulha de Cerzir manteve-se erecta, sem perder o bom humor.

Por cima dela navegavam os mais variados objetos - varinhas, palha, pedacinhos de jornal.

- Lá vão eles, navegando! - disse a Agulha de Cerzir - nem sabem o que há por baixo deles, que eu estou em baixo deles! Sou eu! Vejam só! Lá vai uma varinha, que não pensa em outra coisa neste mundo senão em varinha, isto é, em si própria. Lá vai um colmo! Olhem, como ele vira, como dá voltas! Não penses tanto em ti mesmo, colmo, que assim vais bater de encontro às pedras. E ali bóia um jornal. Já caiu no esquecimento tudo quanto nele está escrito, e ainda assim ele se abre e se espalha todo! Eu, porém, continuo aqui quieta e paciente. Sei o que sou e o que continuo a ser.

Um dia alguma coisa brilhou pertinho dela, e a Agulha de Cerzir julgou que se tratava de um diamante. Era um caco de garrafa. Sendo, porém, um objeto brilhante, a Agulha de Cerzir dirigiu-lhe a palavra, e apresentou-se como sendo alfinete de gravata.

- O sr., com certeza, é um diamante, não é?

- Sim, sim... Qualquer coisa assim.

Desse modo, um ficou pensando que o outro era algo de muito precioso, e puseram-se a comentar o quanto o mundo era cheio de vaidade.

- Pois é. Morei num estojo, em casa de uma jovem - disse a Agulha de Cerzir - ela era cozinheira. Tinha cinco dedos em cada mão. Nunca vi, em toda a minha vida, algo tão cheio de vaidade como aqueles cinco dedos. Queriam ser grande coisa, eles, que só serviam para me segurar, me tirar do estojo e nele me recolocar. Não tinham nenhuma outra função...

- E tinham algum brilho - perguntou o Caco de Garrafa.

- Brilho! Tinham soberba, vaidade, nada mais! Eram cinco irmãos, todos da mesma família, todos dedos. Viviam enfileirados, retos, um ao lado do outro, embora fossem de comprimento diverso. O primeiro, do lado de fora, Mata-Piolho, era gordo e baixo, andava fora do grupo, e só dobrava as costas num ponto, mas dizia que se fosse cortado da mão de um homem, o homem inteiro estaria estragado, inutilizado para o serviço militar. O seguinte, Fura-Bolos, entrava no doce e no amargo, apontava o Sol e a Lua, e era quem apertava mais, quando a mão escrevia. Pai-de-Todos olhava por cima da cabeça dos outros. Seu-Vizinho andava de anel de ouro na barriga, e o pequenino Minguinho não fazia nada o dia inteiro, do que muito se orgulhava. Enfim, era tudo ostentação, fanfarronadas, e quem foi para a gamela fui eu!

- E agora estamos aqui, brilhando - disse o Caco.

Nesse momento afluiu mais água à sarjeta, que transbordou, alagando todas as margens e arrastando consigo o Caco de Vidro.

- Ele foi promovido - disse a Agulha de Cerzir - eu permaneço aqui. Sou fina demais, orgulho-me disso, mas este é um orgulho justificado e legítimo!

E continuou ali, reta, pensando muito.

- Eu poderia até pensar que nasci de um raio de Sol, de tão fina que sou. Me parece, de fato, que o Sol sempre me procura em baixo da água. Sou tão fina que minha mãe não me consegue encontrar. Se eu tivesse meu velho olho, que se partiu, creio que eu poderia chorar, embora, com certeza, não o fizesse, pois chorar não é elegante.

Um belo dia, uns garotos de rua estavam remexendo na sarjeta, à procura de pregos velhos, moedas e outros cacarecos. Aquilo era uma porcaria, mas o faziam por sua própria vontade. Logo...

- Ai! - gritou um deles, que se picara ao tocar na Agulha de Cerzir - que sujeito!
- Não sou um sujeito, sou uma senhorita! - protestou a Agulha de Cerzir, mas ninguém lhe deu ouvidos.

O lacre caíra, e ela se tornara preta. Mas a cor preta emagrece, e a agulha pensava que assim parecia mais delgada ainda que antes.

- Lá vem boiando uma casca de ovo - disseram os meninos.

- Paredes brancas, e eu preta! - disse a Agulha de Cerzir - isso é bom. Assim serei vista, contanto que eu não sinta enjôo, pois teria de me dobrar ao meio. Mas ela não sentiu enjôo em sua embarcação, nem precisou dobrar-se ao meio.

- Contra enjoos do mar, é bom ter estômago de aço e estar sempre lembrando de que se é um pouco mais que um ser humano. Agora me sinto bem. Quanto mais fina se é, tanto mais se suporta isso.

- Crrrac! - disse a casca de ovo.

Um carroção carregado passara por cima dela.

- Como isso aperta! - queixou-se a Agullha de Cerzir - assim acabarei enjoada, apesar de tudo. Vou quebrar! Vou quebrar!

Mas ela não quebrou, conquanto por cima dela passasse todo o peso de um carroção carregado. Ela estava deitada em posição longitudinal... E assim pôde ficar, sem maiores riscos.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Fábulas. SP: Ática

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