quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Olavo Bilac (Alma Inquieta: poesias) 2


NOTURNO

Já toda a terra adormece.
Sai um soluço da flor.
Rompe de tudo um rumor,
Leve como o de uma prece.

A tarde cai. Misterioso,
Geme entre os ramos o vento.
E há por todo o firmamento
Um anseio doloroso.

Áureo turíbulo imenso,
O ocaso em púrpuras arde,
E para a oração da tarde
Desfaz-se em rolos de incenso.

Moribundos e suaves,
O vento na asa conduz
O último raio da luz
E o último canto das aves.

E Deus, na altura infinita,
Abre a mão profunda e calma,
Em cuja profunda palma
Todo o Universo palpita.

Mas um barulho se eleva...
E , no páramo celeste,
A horda dos astros investe
Contra a muralha da treva.

As estrelas, salmodiando
O Peã sacro, a voar,
Enchem de cânticos o ar...
E vão passando... passando...

Agora, maior tristeza,
Silêncio agora mais fundo;
Dorme, num sono profundo,
Sem sonhos, a natureza.

A flor-da-noite abre o cálix...
E, soltos, os pirilampos
Cobrem a face dos campos,
Enchem o seio dos vales:

Trêfegos e alvoroçados,
Saltam, fantásticos Djins,
De entre as moitas de jasmins,
De entre os rosais perfumados.

Um deles pela janela
Entre no teu aposento,
E pára, plácido e atento,
Vendo-te, pálida e bela.

Chega ao teu cabelo fino,
Mete-se nele: e fulgura,
E arde nessa noite escura,
Como um astro pequenino.

E fica. Os outros lá fora
Deliram. Dormes... Feliz,
Não ouves o que ele diz,
Não ouves como ele chora...

Diz ele: “O poeta encerra
Uma noite, em si, mais triste
Que essa que, quando dormiste,
Velava a face da terra...

Os outros saem do meio
Das moitas cheias de flores:
Mas eu saí de entre as dores
Que ele tem dentro do seio.

Os outros a toda parte
Levam o vivo clarão,
E eu vim do seu coração
Só para ver-te e beijar-te.

Mandou-me sua alma louca,
Que a dor da ausência consome,
Saber se em sonho o seu nome
Brilha agora em tua boca!

Mandou-me ficar suspenso
Sobre o teu peito deserto,
Por contemplar de mais perto
Todo esse deserto imenso!”

Isso diz o pirilampo...
Anda lá fora um rumor
De asas rufladas... A flor
Desperta, desperta o campo...

Todos os outros, prevendo
Que vinha o dia, partiram,
Todos os outros fugiram...
Só ele fica gemendo.

Fica, ansioso e sozinho,
Sobre o teu sono pairando...
E apenas, a luz fechando,
Volve de novo ao seu ninho,

Quando vê, inda não farto
De te ver e de te amar,
Que o sol descerras do olhar,
E o dia nasce em teu quarto...

VIRGENS MORTAS

Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velo engaste azul do firmamento:
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

Ó vós, que, no silêncio e no recolhimento
Do campo, conversais a sós, quando anoitece,
Cuidado! – o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai sussurrar no céu, levado pelo vento...

Namorados, que andais, com a boca transbordando
De beijos, perturbando o campo sossegado
E o casto coração das flores inflamando,
- Piedade! elas vêem tudo entre as moitas escuras...
Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras!

O CAVALEIRO POBRE
(Pouchkine)

Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre,
Que viveu solitário, e morreu sem falar:
Era simples e sóbrio, era valente e nobre,
E pálido como o luar.

Antes de se entregar às fadigas da guerra,
Dizem que um dia viu qualquer cousa do céu:
E achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra
Um vasto e inútil mausoléu.

Desde então, uma atroz devoradora chama
Calcinou-lhe o desejo, e o reduziu a pó.
E nunca mais o Pobre olhou uma só dama,
Nem uma só! nem uma só!

Conservou, desde então, a viseira abaixada:
E, fiel à Visão, e ao seu amor fiel,
Trazia uma inscrição de três letras, gravada
A fogo e sangue no broquel.

Foi aos prélios da Fé. Na Palestina, quando,
No ardor do seu guerreiro e piedoso mister,
Cada filho da Cruz se batia, invocando
Um nome caro de mulher,

Ela rouco, brandindo o pique no ar, clamava:
“Lumen coeli Regina!” e, ao clamor dessa voz,
Nas hostes dos incréus como uma tromba entrava,
Irresistível e feroz.

Mil vezes sem morrer viu a morte de perto,
E negou-lhe o destino outra vida melhor:
Foi viver no deserto... E era imenso o deserto!
Mas o seu Sonho era maior!

E um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado,
Louco, velho, feroz, - naquela solidão
Morreu: - mudo, rilhando os dentes, devorado
Pelo seu próprio coração.

IDA

Para a porta do céu, pálida e bela,
Ida as asas levanta e as nuvens corta.
Correm os anjos: e a criança morta
Foge dos anjos namorados dela.

Longe do amor materno o céu que importa?
O pranto os olhos límpidos lhe estrela...
Sob as rosas de neve da capela,
Ida soluça, vendo abrir-se a porta.

Quem lhe dera outra vez o escuro canto
Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho,
Um coração de mão desfaz-se em pranto!

Cerra-se a porta: os anjos todos voam...
Como fica distante aquele ninho,
Que as mães adoram... mas amaldiçoam!

NOITE DE INVERNO


Sonho que estás à porta...
Estás – abro-te os braços! – quase morta,
Quase morta de amor e de ansiedade...
De onde ouviste o meu grito, que voava,
E sobre as asas trêmulas levava
As preces da saudade?

Corro à porta... ninguém! Silêncio e treva.
Hirta, na sombra, a Solidão eleva
Os longos braços rígidos, de gelo...
E há pelo corredor ermo e comprido
O suave rumor de teu vestido,
E o perfume subtil de teu cabelo.

Ah! se agora chegasses!
Se eu sentisse bater em minhas faces
A luz celeste que teus olhos banha;
Se este quarto se enchesse de repente
Da melodia, e do clarão ardente
Que os passos te acompanha:

Beijos, presos no cárcere da boca,
Sofreando a custo toda a sede louca,
Toda a sede infinita que os devora,
- Beijos de fogo, palpitando, cheios
De gritos, de gemidos e de anseios,
Transbordariam por teu corpo afora!...

Rio aceso, banhando
Teu corpo, cada beijo, rutilando,
Se apressaria, acachoado e grosso:
E, cascateando, em pérolas desfeito,
Subiria a colina de teu peito,
Lambendo-te o pescoço...

Estrela humana que do céu desceste!
Desterrada do céu, a luz perdeste
Dos fulvos raios, amplos e serenos;
E na pele morena e perfumada
Guardaste apenas essa cor dourada
Que é a mesma cor de Sírius e de Vênus.

Sob a chuva de fogo
De meus beijos, amor! terias logo
Todo o esplendor do brilho primitivo;
E, eternamente presa entre meus braços,
Bela, protegerias os meus passos,
-Astro formoso e vivo!

Mas... talvez te ofendesse o meu desejo...
E, ao teu contacto gélido, meu beijo
Fosse cair por terra, desprezado...
Embora! que eu ao menos te olharia,
E, presa do respeito, ficaria
Silencioso e imóvel a teu lado.

Fitando o olhar ansioso
No teu, lendo esse livro misterioso,
Eu descortinaria a minha sorte...
Até que ouvisse, desse olhar ao fundo,
Soar, num dobre lúgubre e profundo,
A hora da minha morte!

Longe embora de mim teu pensamento,
Ouvirias aqui, louco e violento,
Bater meu coração em cada canto;
E ouvirias, como uma melopéia,
Longe embora de mim a tua idéia,
A música abafada de meu pranto.

Dormirias, querida...
E eu, guardando-te, bela e adormecida,
Orgulhoso e feliz com o meu tesouro,
Tiraria os meus versos do abandono,
E eles embalariam o teu sono,
Como uma rede de ouro.

Mas não bens! não virás! Silêncio e treva...
Hirta, na sombra, a Solidão eleva
Os longos braços rígidos de gelo;
E há, pelo corredor ermo e comprido,
O suave rumor de teu vestido
E o perfume subtil de teu cabelo...

Fonte:
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. Alma Inquieta. (Coleção a obra-prima de cada autor). Digitalizado por Anamaria Grunfeld Villaça Koch – São Paulo/SP

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