CAPÍTULO VII
Futuro e Presente
Ao entrar no gabinete iluminei-me todo por dentro. Estava miss Jane adiante do globo de cristal, absorvida com certeza na visualização de um corte anatômico. Um raio de sol coado pela vidraça transfazia em luz o louro de seus cabelos. Miss Jane era toda atenção. Seus olhos azuis verdadeiramente bebiam algum maravilhoso quadro. O professor Benson estacou á porta, fazendo-me gesto de silencio, e assim permaneceu até que a moça desse volta a um comutador e regressasse ao presente.
— Papai, exclamou ela, estou no fim da tragédia, no crepúsculo da raça. Dudlee ganhou uma estatua... Boa tarde, senhor Ayrton. Desculpe-me o estar dizendo a meu pai coisas que nem por sombras o senhor pode desconfiar o que sejam. Compreendo que é indelicado falar em língua estranha na presença de pessoas que a desconhecem...
A bondade de miss Jane encantou-me; e, como a jovem não me olhasse nos olhos, pude replicar:
— Mas tudo nesta casa me é linguagem estranha! O que acabo de ver assombra-me de tal maneira que tão cedo não me reconhecerei a mim mesmo.
— Está fazendo progressos, Jane, disse o professor. O amigo Ayrton compreendeu muito bem a parte teórica da minha exposição.
— Ou compreendi, exclamei, ou pareceu-me compreender. Aqui o professor fala com tal simplicidade e clareza que nem parece um sábio. Conheci um lá na cidade, e grande, a avaliar pela fama, com quem tive de tratar a mandado da firma. Pois confesso que não pesquei coisa nenhuma do que o homem disse. Esse, sim, parecia falar uma linguagem de mim nem sequer suspeitada...
— Não era um verdadeiro sábio, interveio miss Jane. Os verdadeiros são como meu pai, claros e fecundos como a luz do sol. Mas quer saber o senhor Ayrton o que eu fazia ha pouco?
— Não lhe contes ainda, Jane. Explica-lhe primeiro a função do porviroscopio, enquanto vou repousar um bocado. Sou velho e qualquer esforço além do habitual me cansa.
Antes que o professor Benson se retirasse, deu miss Jane um salto na cadeira, leve como a corça, e veio beijá-lo no rosto.
— Este querido paizinho! Murmurou, acompanhando-o com os olhos amorosamente.
Depois voltando-se para mim:
— Não é uma benção das fadas ter um pai destes? Como sabe conciliar a máxima inteligência com a máxima bondade!
— E com a máxima simplicidade! Acrescentei. Não caibo em mim de gosto ao ver o homem que podia ser dono do mundo, se quisesse, tratar-me como se eu fora alguém.
— Não se espante disso. Meu pai é coerente com as suas idéias.
Todos para ele somos meras vibrações do éter.
— Até miss Jane?
— Eu serei vibração de um éter especial, muito afim do que vibra nele, explicou ela a sorrir. Mas, sentemo-nos, senhor Ayrton, que ha muito que conversar.
Já disse que eu era um rapaz acanhado, sobretudo em presença de moças bonitas; mas o ambiente de familiaridade e franqueza daquela casa modificou-me logo. Cheguei até a suportar nos olhos os olhares da linda jovem, sem perder a tramontana como da primeira vez. É que nem remotamente lembrava aquele olhar o olhar malicioso das mulheres que eu conhecera. Fui percebendo aos poucos que de feminino só havia em miss Jane o aspecto. Seu espírito formado na ciência e seu convívio com um homem superior, dela afastavam todas as preocupações de coquetismo, próprias da mulher comum.
Isso me pôs á vontade. Sentia-me, não um moço em frente de uma donzela, mas um espírito diante do outro.
Aproveitei o ensejo para esclarecer-me a respeito do professor Benson. Soube que era descendente de um mineralogista norte-americano que um século antes viera ao Brasil estudar a composição de certa zona aurífera. Gostou da terra e nela se fixou, casando-se com a filha de um fazendeiro de S. Paulo.
— Desse consorcio, explicou miss Jane, só veio ao mundo meu pai, que cedo foi enviado á Europa, onde se dedicou a estudos científicos. Lá se casou tarde e lá residiu por certo tempo. Veio depois tomar posse dos bens deixados pelo meu avô — e aqui nasci eu. Mas não me lembro de minha mãe. Morreu muito moça, anos 9 anos... Desde essa época estabeleceu-se meu pai neste recanto e consagrou-se integralmente á sua invenção. Passou o nosso mundo a
resumir-se neste laboratório. Raras vezes vamos á cidade, pouco interesse, aliás, achando nós dois em seu tumulto.
— Pudera! Quem tem o passado e o futuro nas mãos...
— Realmente é isso. Este aparelho fornece-nos tamanhas maravilhas, que a bem dizer vivemos muito mais no porvir do que no presente. Meu gosto é realizar estudos dos anos mais remotos, e só lamento não ter um cérebro imenso qual o oceano para reter tudo o que vejo. Outra coisa que lamento é não podermos dar a publico a nossa invenção. A bondade de meu pai o impede.
— Não alcanço muito bem o porquê...
— Pretende ele, e com muita lógica, que a humanidade não está apta a suportar a revelação do futuro. Acha que a sua invenção cairia no poder de um grupo o qual abusaria da tremenda soma de superioridade que a descoberta lhe concederia. Fosse meu pai um homem vulgar, de pouca sensibilidade de coração, e ele mesmo assumiria o predomínio que receia ver na posse de outrem. Basta dizer que até hoje apenas se utilizou deste invento para reunir o dinheiro necessário á nossa vida e aos enormes dispêndios dos seus estudos.
— Agora me lembro, miss Jane, que lá fora é o professor Benson conhecido como um jogador de cambio que jamais perde.
— E assim é. Fizemos experiência com o marco e o franco e os fatos corresponderam com exatidão ás indicações deste aparelho. Mas meu pai limitou-se a ganhar o necessário para o trem de vida que leva. Estamos na posse de elementos para alcançar o que quisermos, para reunirmos nas mãos a maior soma de ouro com que se possa sonhar. Isso, porém, nos seria de todo inútil. Para que necessitamos da mesquinha riqueza do mundo se nada não nos dá ela que se aproxime do que temos aqui?
— Por mais espantosa, miss Jane, que seja a descoberta do professor Benson, espanta-me ainda mais o caráter das duas pessoas que estão no seu segredo. Podem ser tudo e não querem ser nada...
— Ser tudo!... Que significa ser tudo? Quando penso nas grandezas do mundo, rio-me delas...
Miss Jane conversou comigo por mais de um hora sobre os mais variados assuntos. E explicou-me depois o funcionamento do aparelho, recorrendo ás suas imagens habituais, tão pitorescas. A corrente perdia no globo de cristal a sua forma concentrada e visualizava-se como numa projeção de cinema, reproduzindo momentos de vida futura cora a exatidão que vai ter um dia.
— Ficamos na posição de um espectador imóvel num ponto. Só vemos e ouvimos o que passa ao alcance dos nossos olhos ou soa ao alcance dos nossos ouvidos. Isso ás vezes dificulta a compreensão de certos momentos da vida futura. Aparecem-nos coisas que não podemos compreender por falta dos elos anteriores da evolução. No ano 3.527, por exemplo, vi na população da França evidentes sinais de mongolismo. Os trajes não lembravam nada do que usam hoje as criaturas em parte nenhuma da terra, nem sequer pude perceber de que seriam feitos. Esqueci-me de dizer que o nosso aparelho não vai além do ano 3.527. Sua potencia pára aí. Focalizado para o ano de 3.528 já dá uma visão de tal modo baça que não distinguimos nada. Ficamos, eu e meu pai, perplexos ante aquele mongolismo da França. Só depois, fazendo cortes menos recuados e combinando uns com os outros, conseguimos decifrar o mistério. Tinham-se derramado pela Europa os mongóis e se substituído á raça branca.
Não pude conter um gesto de espanto, e fiz tal cara que miss Jane sorriu.
— Que horror! Vai então acontecer essa catástrofe? exclamei.
A jovem sabia respondeu com serena impassibilidade:
— Por que, catástrofe? Tudo que é tem razão de ser, tinha forçosamente de ser; e tudo que será terá razão de ser e terá forçosamente de ser. O amarelo vencerá o branco europeu por dois motivos muito simples: come menos e prolifera mais. Só se salvará da absorção o branco da America. E como esta, quantas revelações curiosas! Outra, que muito me impressionou, foi a transformação das ruas que se nota no ano 2.200 em diante. Cessa a era dos veículos. Nada de bondes, automóveis ou aviões no céu.
—Como pode ser isso, miss Jane? É quase um absurdo.
—Pois para lá caminhamos. Em cortes sucessivos que fiz de dez em dez anos observei a diminuição rápida dos veículos atuais. A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o radio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á á distancia. E acho muito lógica esta evolução. Não são hoje os recados transmitidos instantaneamente pelo telefone? Estenda esse principio a tudo e verá que imensas possibilidades para vir trazê-lo. O progresso foi grande, mas repare quando á radiocomunicação se acrescentar o radio-transporte. Outrora, por exemplo, se o senhor Ayrton quisesse fumar um charuto tinha de mandar um criado buscá-lo á charutaria; hoje pede-o pelo telefone, mas o charuteiro ainda é obrigado a mobilizar um carregador para vir trazê-lo. O progresso foi grande, mas repare que atraso ainda! Mobilizar um homem, isto é, uma massa de 60 ou 70 quilos de carne, fazê-lo dar mil ou cinco mil passos, gastando vinte ou trinta minutos da sua vida. só para transportar um simples charuto! Chega a ser grotesco...
— Realmente. Mas no futuro?
— No futuro o senhor Ayrton fumará á distancia. Veja quanta economia de tempo e esforço humano!
Julguei que miss Jane estivesse a caçoar comigo e até hoje permaneço na duvida. Em seu rosto, porém, não vi a menor sombra de motejo.
—Pode ser, mas... duvidei.
—Esse mesmo "pode ser, mas..." diria um romano do tempo de Cesar se alguém lhe predissesse que um romano do tempo do óleo de rícino não precisaria sair de sua casa para conversar com um cidadão de Paris. Sabe o senhor Ayrton, no entanto, que isso é comezinho hoje e nem sequer admira a ninguém.
—Falar é uma coisa e fumar é outra.
—Hoje, que só temos a radio-comunicação. Mas chegará o dia da radio-sensação e do radio-transporte, com radical mudança do nosso sistema de vida. Os veículos ao sistema corrente desaparecerão um por um. Voltará o homem a caminhar a pé, por prazer, e as ruas se tornarão uma delicia. O senhor Ayrton sabe o que quer dizer uma rua hoje...
—Ninguém melhor do que eu, miss Jane, pois desde menino vivo nelas. Que angustia, que permanente inquietação! Temos que andar com cinquenta olhos arregalados, para prevenirmos trancos e atropelamentos.
— Tudo isso desaparecerá, e adquirirão as cidades uma calma deliciosa, como hoje a de certas aldeias. Vi New York nesse período. Que diferença do atropelado e doido formigueiro de agora!
— Deve miss Jane ter observado coisas maravilhosas!...
— Menos maravilhosas do que desnorteantes para as nossas idéias atuais. As invenções vão sobrevivendo no decurso do tempo, umas saídas das outras, e as coisas tomam ás vezes rumo muito diverso do que a lógica, com ponto de partida no estado atual, nos faria prever,
O professor Benson reapareceu nesse momento e a conversa tomou outro rumo. Eu me achava na situação de um homem que ingerisse um estupefaciente desconhecido. Estava com a minha capacidade de assimilação de idéias esgotada e já com uma ponta de dor de cabeça a dar sinal de que o cérebro exigia repouso. Sem que eu o dissesse, o velho sábio, mais sua filha, compreenderam-no perfeitamente e dali até o jantar só me falaram de coisas repousantes.
Á noite custei a conciliar o sono, o que era natural. Mas sinceramente o digo: o que mais me dançava na cabeça não era o desvendamento do futuro nem as suas abracadabrantes maravilhas, e sim a imagem de miss Jane. A estranha criatura loura, de olhos tão azuis, impressionara por igual meu cérebro e meu coração. Comecei a ver nela o verdadeiro tudo; e se me dessem a opinar entre a posse da descoberta do professor Benson e o tê-la ao meu lado para o resto da vida, não vacilaria um instante na escolha.
Dormi por fim e, em vez de sonhar com o mundo futuro entrevisto na palestra da moça, sonhei no encanto do presente, todo resumido em conjugal convivência com o meigo anjo sábio.
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continua… VIII – A Luz que se Apaga
Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.
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