domingo, 18 de setembro de 2011

Raquel Amélia dos Santos (Desejo Humano)


"Nada sabemos da alma senão da nossa;As dos outros são olhares;São gestos, são palavras..."
Fernando Pessoa


O encontro talvez seja a eterna busca humana.
No encontro pode ocorrer a afirmação do ser e a possibilidade do estar sendo.
O desejo de pertencer, de ser reconhecido e de reconhecer-se, impulsiona essa busca permanente que homens e mulheres empreendem todos os dias de forma consciente ou não.

Entre as aspirações humanas, ser acolhido é a que considero mais urgente e fundamental. O acolhimento no sentido pleno da palavra. Clarice Lispector ao falar das aspirações humanas, diz que "O que o ser humano mais aspira é tornar-se humano." Neste caso, a humanidade desejada traz consigo virtudes, limites e mazelas próprios do ser gente.

Os encontros podem ser permeados de oportunidades de acolhimento ou não.

Vivemos em um tempo em que as pessoas não sentem-se a vontade para ser elas mesmas e assumirem sua humanidade. Na maior parte do tempo, vivemos em um grande teatro, onde exibem padrões e habilidades físicas, aparência de auto-controle, uma felicidade permanente e um entusiasmo constante.É abominável e proibido mostrar fragilidade ou qualquer sinal dos limites humanos, como por exemplo, carência afetiva e querer ser amado.

O que se deseja realmente é o encontro como confluência e não a colisão.
As pessoas querem ser vistas e ouvidas. Esse ser visto e ouvido é anseio profundo da alma, que nem sempre é devidamente assumido.
As crianças demonstram claramente o desejo do encontro sem camuflagens.

Querem brincar, rir, conversar e recriar a realidade juntas. Inventam, reinventam, constroem, desconstroem. E fazem isso muito bem na interação com o outro, no encontro. São livres, verdadeiras e desejam naturalmente serem acolhidas pelo outro. Na sua autenticidade não pretendem impressionar. São apenas elas mesmas.

Nos encontros infantis, há facilidade de uma boa negociação. Vão ao encontro uma da outra, sem muitas restrições e sem medo da não aceitação.
As vezes tenho o prazer de observar tais encontros e finjo não estar prestando atenção. Um propõe a brincadeira e então fazem os combinados e estabelecem as regras.

É mais ou menos assim: _ Vamos brincar de casinha? _Vamos! Finge que eu sou a mãe. _ Eu sou o filho! _Então eu vou ser o pai._ Ah! Então vou ser o irmão! E neste diálogo começam a brincar, distribuem tarefas, organizam o espaço, estabelecem limites, atribuem funções, estabelecem direitos e deveres e assim reproduzem e reelaboram a realidade. As crianças não precisam ser velhas amigas para que haja o encontro entre elas. Agem com naturalidade. Assim ocorre em outras brincadeiras também.

Os adultos são ex crianças, formados por outros adultos. Em muitos casos, rigidamente treinados para não sorrirem, não olharem de verdade para o outro e devem ter sempre convicção e jamais abrir mão de suas verdades. Principalmente das antigas, que aparentemente dão segurança. Deixam de ser espontâneos, perdem a autenticidade e estão formatados para dizerem definitivamente sim ou não. Não sabem lidar com o talvez. Criam escudos e variadas formas de defesa.

Ser uma ex criança, não significa ter que extinguir do ser, elementos essenciais à vida, como por exemplo, flexibilidade e abertura para aprender a lidar com o novo, mobilidade de pontos de vista.

As crianças investigam, experimentam, começam, recomeçam, fazem, refazem o tempo todo.

Já o adulto, considera-se pronto e têm dificuldades de colocar-se no lugar do outro, de experimentar novas e diferentes perspectivas. Neste caso o encontro torna-se colisão.

A cada dia as pessoas estão mais solitárias e perdem-se em si mesmas. Sentem saudades de quem realmente são, sem compreenderem que o ser e o estar sendo, fazem-se com a presença do outro.

O encontro é uma forma de saber quem somos. O auto conhecimento depende também da presença do outro. Jean Paul Sartre diz que "Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro." O encontro é um passar pelo outro. Isso requer flexibilidade e disposição para deslocar-se quando necessário. Não é tarefa fácil, não para os adultos.
Bem treinados, são hábeis na defesa e no ataque. Estão sempre atentos a qualquer sinal de proximidade do outro. Dominados pelo medo de mostrarem-se estão prontos para uma colisão, apesar de desejarem ardentemente a confluência.

O medo nem sempre é assumido de forma consciente, mas quase sempre está presente enquanto homens e mulheres tentar vivenciar sua humanidade.
A cantora Pitty, em uma de suas músicas, diz o seguinte: "(...) homem que nada teme é homem que nada ama". Há certa razão nesta forma de pensar.
Medrosos e Medrosas do mundo inteiro, tranquilizem-se! O medo pode ser um indício do amar! Não do amor simplesmente, mas do Amar! Lembrando que amor é substantivo e amar é verbo, e verbo é ação. Indica movimento que aconteceu, acontece e acontecerá.

O medo é normal e necessário. É um mecanismo de defesa, acionado sempre que pensamos haver algum perigo.

Ter momentos de medo, não significa encontrar-se sempre neste estado.
Sobre o medo afirma Sartre: "(...) Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com coragem."
No encontro, há um processo em que o medo faz parte de uma etapa. Outras etapas vão sendo vivenciadas a seu tempo.

Mesmo sendo natural e necessário, em certa medida, acaba por limitar e dificultar as relações afetivas e amorosas entre as pessoas.
É preciso tomar as rédeas do medo e realizar o que Fernando Pessoa chama de "travessia". Ele diz assim: "É o tempo da travessia... E se não ousarmos faze-la... Teremos ficado...para sempre... À margem de nós mesmos"
Há o tempo do medo, o tempo de enfrenta-lo e domina-lo e de experimentar dar uma chance a nós mesmos.
Há três ações essenciais em um verdadeiro encontro. O falar, o escutar e o olhar. O encontro pode começar de várias formas. Mas o olhar, o ouvir e o falar são o solo onde firmam-se os fundamentos de um encontro.

No início de um encontro, as palavras tentam manifestar-se de forma tímida e meio sufocadas. Levam algum tempo para serem colocadas em liberdade.

O encontro de verdade, não é só o estar perto fisicamente. Essa é só uma forma de estar junto. O verdadeiro encontro requer palavras. As certas, as erradas, as sem sentido, as idiotas, as engraçadas, as que indagam as reveladoras e até as enigmáticas.

Normalmente em começos de relacionamentos, as palavras são bem planejadas e formais.
Com o tempo elas vão sendo usadas como brinquedos.Com esta configuração, servem para descontrair, divertir e aliviar as tensões provocadas pelo medo da não aceitação, pela vontade de impressionar ou despertar o ouvir e o olhar do outro.

E quando menos se espera a distração toma conta do encontro. Tudo fica mais natural e mais próximo da realidade.
Então, inadivertidamente as palavras fluem e acabam por atingir o desejado objetivo de encantar. Ganham força e originalidade, mesmo que o falar seja apenas a citação de um poema alheio.
Sejam elas superficiais, íntimas, eróticas, engraçadas, sérias, românticas, sinceras ou não, tornam-se instrumentos essenciais na construção de vínculos e na recriação da realidade.

As palavras vão sendo carregadas de simbolismos e significados dados pelos encontrantes, que acabam criando seu próprio vocabulário.
As vezes, as palavras estão aprisionadas dentro das pessoas e anseiam por um encontro. Desejam a liberdade que Rubem Alves diz ser o "encontrar um ouvido para repousar".

Em encontros de amor, imprevistos, ocasionais, planejados ou desejados, as palavras não são apenas palavras. São poemas que por vezes podem estar impregnados da ardente necessidade de expressar sonhos, fantasias, desejos, emoções e sentimentos que moram em algum canto esquecido da alma.
É o querer amar e ser amado. O querer ter com quem sorrir, com quem desejar, com quem realizar fantasias, com quem sonhar, com quem falar, com quem fazer amor..., o ter para quem voltar.

As palavras certas usadas na hora certa, podem despertar os sentimentos mais doces, a tranquilidade que a alma anseia, a felicidade que estava ali em algum canto do coração, os sonhos, o desejo mais ardente, uma amizade verdadeira, o amor e até a alegria de viver.

Escutar "vem do Latim Auscutare e deu origem a "Auscultar", termo técnico usado pela medicina para definir o ato de ouvir sons em órgãos internos dos pacientes e tem o sentido de ouvir com atenção, ouvir indiretamente e às escondidas.

Escutar demanda disposição e habilidade para perceber o que o outro tem a dizer de forma direta ou indireta. Ou seja, até as palavras que não foram ditas ou permaneceram "às escondidas".

Perceber o que vem do próprio interior e do interior de outra pessoa requer a compreensão de que cada um traz consigo uma história, um contexto, uma formação, uma singularidade, um ser.
Em um encontro, é preciso saber escutar.

Escutar no sentido de ouvir indiretamente, é como o "auscultar". Para auscultar os pulmões de um paciente, o médico precisa de um estetoscópio.
Escuta-se de verdade quando há uma apropriação temporária de alguns dos sentimentos e emoções do que fala. Isto se dá com ajuda do coração, da alma e a capacidade de deslocar-se para o lugar do outro.

O encontro é promovido pelo desejo de ser e de ter a fala acolhida. Gosto de pensar no que Rubem Alves diz a esse respeito. "(...) A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E na não-escuta ele termina."

O olhar é também um elemento mágico em um encontro. Mário Quintana diz que "Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação".

Os olhos falam. E na verdade dizem mais do que muitas palavras. É fácil mentir com as palavras, mas não com o olhar.

Através do olhar puro e humano percebemos e sentimos a beleza do outro. Se olharmos firmemente nos olhos de outra pessoa, veremos a nós mesmos, a nossa imagem refletida na pupila do outro, que serve de espelho. Por isso Rubem Alves tem razão em dizer que "Uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela..."

O amor, a tristeza, a alegria, o ódio, a indiferença ou qualquer outro sentimento, refletem luz ou a falta dela através do olhar.

Sobre o olhar, a bíblia afirma o seguinte: "Teus olhos são a lâmpada do teu corpo. Se teus olhos forem bons, todo teu corpo será cheio de luz, mas se forem maus, teu corpo ficará cheio de trevas" (Lucas 11:34 e 35).

Um encontro se dá com o falar, com o escutar, com o olhar e demanda mostrar quem somos de fato. Não é possível fazer isto voluntariamente sem que haja uma relação de confiança.

Muitas pessoas vivem juntas anos seguidos e nunca se deixam conhecer.
A confiança é um espaço a ser conquistado em coração alheio.

Uma vez conquistado o espaço, começa-se uma construção cujos fundamentos devem ser estabelecidos sobre a verdade e a sinceridade.

Dentro do processo de conquista e construção da confiança, conquistador e conquistado, concedem permissão para a ocupação no coração do outro.

Diferente das estratégias usadas pelos grandes conquistadores da história. Estes, invadiam e ocupavam através da força bruta, os espaços ou o objeto da conquista.

A confiança não pode ser conquistada através da força bruta. Só acontece quando conquistador e conquistado vão se mostrando de verdade. O conquistador precisa oferecer um bom projeto que indique a implantação de bases firmes para uma edificação estável e segura. O conquistado deve deixar o espaço livre e preparado para tal edificação. Pois não se constrói sobre entulhos ou terreno instável.

As primeiras palavras começam a abrir um caminho para que a conquista seja iniciada. Pode ser o começo de uma relação de amizade ou amor.

Todas as pessoas necessitam mostrar seus poemas secretos.
No entanto, nem sempre é possível encontrar quem os queira conhecer.
A razão é importante, mas não ajuda muito no processo em que a ternura e o afeto querem instalar-se.

Em um encontro, sentimentos confusos e indefinidos podem ir tomando a forma de amor e transformarem-se em amar.

Amar e ser amado é necessidade fundamental do ser. Mas a arrogância e medo de mostrar fraqueza, faz com que homens e mulheres passem a vida mentindo para si próprios e sem coragem de assumir tal necessidade.

O desejo de encontrar amigos e um amor de verdade é próprio do ser humano.

Abandonar velhos hábitos e reelaborar as moradas do coração não é tarefa fácil, mas pode facilitar o reencontro com o que somos de verdade e assim abrir caminhos para o encontro com o outro. O que mais aspiramos mesmo, é a confluência.

É preciso sentir saudades de nós mesmos, e ir ao nosso encontro. Realizar a "travessia", o quanto antes, pois o tempo não para.

Ativar a capacidade de ouvir, de falar e de olhar pode ser uma forma de "passarmos" por nós mesmos e pelo outro. Se o fizermos, saberemos com mais segurança quem somos e assumiremos a nossa humanidade.

Com esse saber pode ser que a busca do encontro seja mais bem sucedida , plena e não " Teremos ficado...para sempre... À margem de nós mesmos".

18 de Setembro de 2011.

Fonte:
Texto enviado pela autora

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