quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) VI – O Tempo Artificial


CAPITULO VI
O Tempo Artificial

Quando de novo me encontrei com o professor Benson no laboratório prosseguiu ele na exposição interrompida.

— Onde estávamos, senhor Ayrton?

— Na pré-determinação.

— Sim. Foi nesse ponto que Jane nos interrompeu. Pois bem: se tudo inexoravelmente se determina pela influencia recíproca das vibrações, se é isto pura mecânica, embora duma meta-mecânica inacessível ás forças da inteligência do homem, é lógico que a predeterminação é possível em teoria.

— E na prática também! aventei eu iluminado de súbita ideia. Homens há que adivinham ocorrências futuras. Eu mesmo já tive ocasião de observar comigo um curioso caso de pressentimento lá nos negócios da firma. Veio-me não sei de onde a ideia de que um freguês ia falir. Disse-o ao senhor Sá, o qual me chamou de tolo. Um mês mais tarde esse freguês abria bancarrota! Nunca me pude explicar isso pois nada conhecia dos seus negócios, nem coisa nenhuma ouvira falar a respeito.

— Esse caso pode ser visto de outra maneira. A ideia de requerer falência podia estar em ação no cérebro do freguês. Ideia é vibração que repercute em ondas como tudo mais, e certos cérebros possuem bela faculdade emissiva ou receptora. Emitiu esse freguês uma vibração da ideia e o cérebro do senhor Ayrton agiu como polo receptor.

— Mas a leitura das linhas da mão? A quiromante que na Martinica predisse a Josefina, então simples burguesinha crioula, que seria imperatriz da França?

— Aí já o caso é diverso, como no de todas as profecias comprovadas. Havemos que conceber certas organizações possuidoras duma faculdade pré-determinante. E não me custa admitir isso, já que construi o pré-determinador.

— Que significa essa nova palavra, professor?

— Vamos ao pavilhão vizinho; lá me compreenderá melhor. Passamos á sala imediata, recinto envidraçado e em forma de funil, cujo bico era uma das tais torres de ferro enxadrezado.

— Aqui temos o nervo ótico do futuro. Chamo a este conjunto "o grande coletor da onda Z."

Eu andava de novidade em novidade e por mais alerta que pusesse o cérebro tinha de fazer paradas constantes, pedindo ao professor explicações parciais.

— Onda Z, professor Benson? Ainda não me falou nela.

— Só agora chegou o momento. A multiplicidade infinita das formas, isto é, das vibrações do éter, produz turbilhões ou ondas, que consegui classificar uma por uma e captar por meio deste conjunto receptor que as polariza...

— ?I

— Polarizar é reunir tudo num só ponto, num polo.

— Compreendo.

— Este conjunto receptor polariza os turbilhões e os funde numa espécie de corrente continua, ou, usando de imagem concreta, de um jato. Suponha milhões de gotas de chuva a caírem num imenso funil e a saírem pelo bico sob a forma continua de um jorro cristalino. Todas as gotas estão no jato, mas fundidas e sob outra forma. Assim o meu coletor. Apanha o turbilhão das ondas e as polariza naquele aparelho.

Olhei para o aparelho que o dedo do professor apontava e apenas vi um emaranhado de fios e grandes carretéis de arame, que em calão eu definiria muito bem com a palavra estrumela. Mas guardei o vocábulo, visto que a lição da Groenlândia ainda estava muito fresca em minha memória.

— Consigo assim, prosseguiu o sábio, concentrar em minhas mãos o presente, isto é, o momento atual da vida do universo, como imensa paisagem panorâmica que toda se reflete numa chapa fotográfica e nela se conserva latente até que vá ao banho revelador. Quer isto dizer que na corrente continua, invisível como o fluido elétrico, que gira naquele caos aparente de fios, solenoides e bobinas, está tudo quanto constitui o momento universal!

Apesar da segurança do velho sábio e da solidez de suas deduções eu permanecia numa vaga duvida. Na minha curteza mental eu achava excessivo estar tudo quanto existe reduzido a tão homeopáticas proporções e, ainda mais, impalpável e invisível. O professor Benson adivinhou a minha indecisão e esmagou-a como quem esmaga uma pulga.

— Sabe o que é isto? perguntou mostrando-me uma coisinha de minúsculas dimensões.

— Uma semente, respondi.

— E que é uma semente? Uma pré-determinação. Aqui dentro está predeterminada uma árvore de colossais dimensões que se chama jequitibá. Se o amigo admite que desta semente, que analisada só revela a presença de um bocado de amido, sais, graxa, etc. Surja sempre, e de um modo fatal, um majestoso jequitibá, porque vacila em admitir um fenômeno semelhante, qual a polarização do momento universal numa semente, que no caso é o fluido que circula no meu aparelho?

O símile matou-me de vez todas as veleidades de ceticismo e foi como quem ouve a voz de Deus que dali por diante me entreguei sem reservas ás palavras do sábio.

— Prossiga, doutor, murmurei.

O professor Benson prosseguiu.

— Obtenho, pois, neste aparelho, uma corrente continua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixes que neste momento agonizem no seio do oceano ao serem apanhados pela agua tépida da Corrente do Golfo; o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha; a flor do pêssego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da India; a gota d'agua que espirra do Niagara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estúdio de Los Angeles Glória Swanson começa a receber de Valentino...

— A fatura que neste momento o senhor Sá está acabando de somar... Compreendo, professor. Toda a vida, todas as manifestações poliformes da vida, tudo está ali, como o jequitibá, com todos os seus galhos e folhas e passarinhos que pousam nele e cigarras que o elegem para palco de suas cantorias, está dentro da sementinha. Não é isso? conclui radiante.

O professor Benson riu-se do meu entusiasmo e pareceu-me na realidade satisfeito com o discípulo.

— Perfeitamente, amigo Ayrton. Tudo está ali. Pela primeira vez desde que o mundo é mundo consegue o homem esse espantoso milagre — mas só eu sei o que isso me custou de experiencias e tentativas falhas!... Fui feliz. O Acaso, que é um Deus, ajudou-me e hoje me sinto na estranha posição de um homem que é mais do que todos os homens...

Sua fisionomia irradiava tanta luz — a luz da inteligência, — que só a poderia suportar um inocente da minha marca. Estou convencido de que se outro sábio o defrontasse naquele instante estarreceria de assombro, considerado como Isaías diante das sarças ardentes quando delas trovejou a voz de Jeová. A minha ingenuidade, a minha inocência mental salvou-me. Hoje estremeço quando penso em tudo isso, como estremeceu Tartarin de Tarascon ao saber que os abismos que com risonha coragem ele arrostara nos Alpes eram de fato abismos e não cenografia como, iludido por Bompard, no momento supôs. Hoje que já nada mais existe do professor Benson a não ser uma lápide no cemitério, e nada existe senão cinzas do seu maravilhoso laboratório, se me ponho a analisar esse período da minha vida tenho sensação de que convivi com um Deus humanizado.

O professor Benson falava das suas invenções com tanta simplicidade e me tratava tão familiarmente que jamais me senti tolhido em sua presença — como me sentia, por exemplo, na do Senhor Pato, o socio comendador lá da firma. Sempre que me cruzava com o comendador eu tremia, tanto se impunha aos subalternos aquela formidável massa de banhas, vestida de fraque, com anel de grande pedra no dedo e uma corrente de relógio toda berloques que nos esmagava a humildade sob a arrogância e o peso do ouro maciço. Diante do comendador Pato eu tremia e balbuciava; mas diante do professor Benson, um deus, sempre me senti como em face de um igual.

Compreendo hoje o fenômeno e sei que a verdadeira superioridade num homem não o extrema dos "inocentes", como dizia o professor — e por isso chamava Jesus a si os pequeninos. Até na indumentária aqueles dois homens eram antípodas. Na do comendador, o fraque propunha-se a impressionar imaginações, a estabelecer categorias, a amedrontar os paletós sacos com a imponência da sua cauda bipartida; na do professor Benson tinha a rouca por única função vestir um corpo a modo de resguarda-lo das bruscas variações atmosféricas.

Mas voltemos atrás. Ao ouvir dizer ao professor Benson que todo o momento universal estava ali, olhei para a maranha de fios e bobinas com um sentimento misto de orgulho e piedade. Orgulho de ver o Tudo escravizado diante de mim. Piedade, porque havia nisso uma certa humilhação para o Tudo...

A voz pausada do velho sábio tirou-me de tais cogitações.

—Até aqui permanecemos no presente. A onda Z ali captada só diz respeito ao presente, e se eu ficasse nessa etapa de pouco valeria a minha descoberta. Mas fui além. Descobri o meio de envelhecer essa corrente á minha vontade.

—Envelhecer?... murmurei refranzindo a um tempo todos os músculos da cara.

—Sim. Faço-a passar pelo aparelho que tenho no pavilhão imediato e ao qual denominei cronizador. Vamos para lá.

O professor tomou a dianteira e eu o segui, ainda repuxado de músculos faciais. O pavilhão imediato possuia ao centro um novo aparelho tão incompreensível para a minha inteligência como os anteriores.

—Aqui temos o cronizador, disse o meu cicerone apontando para o esquisito conjunto. Este mostrador, que lembra o dos relógios, me permite marcar no futuro a época que desejo estudar.

— ? !

—Perca o hábito de assustar-se, porque senão acabará cardíaco. A corrente penetra por este fio, sofre um turbilhonamento e envelhece na medida que eu determino com o movimento deste ponteiro. É como se eu tomasse a semente e por um golpe de mágica dela fizesse brotar a árvore aos dez anos de idade, ou aos cinquenta, ou aos cem — ao arbítrio do experimentador. Compreende? —

– Compreendo...

— E destarte a evolução, que com o decorrer do tempo necessariamente vai ter a vida atual do universo, eu a apresso e a detenho no momento escolhido. Este meu cronizador, em suma, é um aparelho de produzir o tempo artificial com muito mais rapidez do que pelo sistema antigo, que é esperar que o tempo transcorra. Obtenho um ano num minuto de turbilhonamento; penetro no futuro, no ano 2.000, por exemplo, em 74 minutos. Opera-se durante a cronização uma zoada, que é o som dos anos a se sucederem, som muito semelhante a um eco distante...

— Sei. O que ouvi na hora do almoço.

— Exatamente. Quis Jane visualizar o futuro no ano 2.336, ou seja a 410 anos deste em que estamos. Para isso colocou aqui o ponteiro e abriu o comutador. A corrente envelheceu e automaticamente parou no ponto marcado, isto é, no ano 2.336.

A minha curiosidade crescia. Percebi que chegara ao ponto culminante da descoberta do professor Benson.

— E depois? indaguei ansioso. Para ver, ou como diz o professor, para visualizar esse futuro, como procede?

— Devagar!... Consigo, como ia dizendo, envelhecer a corrente até o ponto desejado. Ao obter isso, a evolução determinista que rigorosamente vai dar-se no universo com o decorrer normal do tempo dá-se artificialmente dentro do aparelho. E, chegada ao termo da cronização que visamos, a corrente turbilhonada torna-se estática, por assim dizer congelada. E fico eu na posse dum momento da vida universal futura — isto é, com o 4 da nossa primitiva imagem do 2 + 2. Resta-nos agora a ultima parte da operação, a qual, por comodidade, executo no meu gabinete. Não notou lá uma espécie de globo cristalino?

— Foi a primeira coisa que me impressionou neste castelo.

— Pois é o porviroscopio, o aparelho que toma o corte anatômico do futuro, como pitorescamente diz Jane, e o desdobra na multiplicidade infinita das formas de vida futura que estão em latência dentro da corrente congelada.

— Por que, corte anatômico? indaguei, para não deixar ponto obscuro atrás de mim.

— Nunca esteve num laboratório de microscopia? Com uma navalha afiadissima o anatomista opera um corte na ponta do seu dedo, por exemplo. Tira uma lâmina de carne, a mais fina que possa, e estuda-a ao microscópio. A essa fatia do seu dedo chamará ele "corte anatômico". É Jane uma menina muito viva e gosta de falar por imagens, algumas extraordinariamente pitorescas...

A evocação de miss Jane veio perturbar a contenção do espirito com que eu acompanhava as revelações do mestre. Meu espirito cansado repousou nesse gracioso oásis, e foi com infinita inocência que indaguei:

— Que idade tem ela, professor?

Mas o velho sábio talvez nem me ouvisse, porque entrou a dar explicações sobre a segunda função que possuía o cronizador: involuir a corrente, rodar para trás — o que permitia cortes anatômicos no passado.

— Mas isso não interessa, aventei levianamente. O passado é velho conhecido nosso.

— Engano. É tão desconhecido como o futuro e o presente.

Desta vez abri a boca, e lá por dentro me soou como tolice a frase do sábio. Mas vi logo que o tolo era eu.

— Do presente que é que sabe o amigo Ayrton? Sabe apenas que está neste minuto conversando comigo. Mais nada. Não sabe nem sequer se os senhores Sá, Pato & Cia. estão a esta hora de falência aberta.

— Impossível! Aquela gente é solida como as montanhas!... Só vendem á vista...

— Quantas planícies não marcam hoje o lugar outrora ocupado por montanhas!... Do presente o amigo Ayrton só sabe, isto é, só tem consciência do que no momento lhe afeta os sentidos.

— Na verdade! exclamei. Nem o meu Ford, que era tudo para mim, sei onde pára...

— E se ignoramos o presente, que dizer do passado?

— Mas a História?

O professor Benson sorriu meigamente um sorriso de Jesus.

— A História é o mais belo romance anedótico que o homem vem compondo desde que aprendeu a escrever. Mas que tem com o passado a História? Toma dele fatos e personagens e os vai estilizando ao sabor da imaginação artística dos historiadores. Só isso.

— E os documentos da época? insisti.

— Estilização parcial feita pelos interessados, apenas. Do presente, meu caro, e do passado, só podemos ter vagas sensações. Há uma obra de Stendhal, La Chartreuse de Parme, cujo primeiro capitulo é deveras interessante. Trata da batalha de Waterloo, vista por um soldado que nela tomou parte. O pobre homem andou pelos campos aos trambolhões, sem ver o que fazia nem compreender coisa nenhuma, arrastado às cegas pelo instinto de conservação. Só mais tarde veio a saber que tomara parte na batalha que recebeu o nome de Waterloo e que os historiógrafos pintam de maneira tão sugestiva. Os pobres seres que inconscientemente nela funcionaram como atores, confinados a um campo visual muito restrito, nada viram, nem nada podiam prever da tela heróica que os cenógrafos de história iriam compor sobre o tema. Eis o presente... Vamos agora ao gabinete, concluiu o professor. O mais interessante se passa lá.

Acompanhei-o, literalmente apatetado. Aquele homem pensava de modo tão diferente de todo mundo que suas ideias me davam a impressão de algo novo e operavam em meu cérebro como luz que invade aos poucos uma sala de museu. Mil coisas que nunca supus existirem em minha cabeça revelaram-se-me de pronto. Coisas mínimas, germes de ideias, antigas impressões recolhidas nos vaivéns do viver quotidiano ressurgiam animadas de estranha significação. Outras, que eram capitais outrora, diluiam-se. O comendador Pato, até vinte dias antes tido por mim como o mais formidável expoente do gênio humano, decaia a irrisórias proporções. Oh, como desejei vê-lo ali em contato com o professor, para gozar a derrocada das ridículas ideias de fraque que ele tinha na cabeça!
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continua… VII – Futuro e Presente

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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