segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) IV – Miss Jane; V – Tudo Eter que Vibra


CAPITULO IV
Miss Jane

Na sala de almoço tive uma nova surpresa. Estava lá, e recebeu-nos com gentil sorriso, a mais encantadora criatura que meus olhos ainda viram.

— Minha filha Jane, apresentou-ma o velho.

Como eu esperava tudo, menos encontrar ali uma figura feminina, atrapalhei-me e gaguejei, visto que sou tímido diante das mulheres formosas. Já com as feias, ou velhas, sinto-me desembaraçadíssimo. Mas cabelos louros como aqueles, olhos azuis como aqueles, esbelteza e elegância de porte como as de miss Jane, eram ingredientes fortes demais para que não produzissem a ruptura do meu equilíbrio nervoso. Gaguejei, já disse, e fui logo tropeçando num pé de cadeira, o que muito me vexou, embora não fizesse rir á moça. Esta contenção de sua parte provou-me que eu estava diante de uma criatura finamente educada e generosa.

Correu sem incidentes o almoço, e nada vi nele de misterioso. Pratos simples, servidos em baixela fina, tudo despido dos excessos que caracterizam a mesa dos ricaços amigos de nas menores coisas exibirem o seu dinheiro.

Miss Jane falou ao pai de três filhotes de pintassilgos que encontrara no pomar, num ninho feito de raízes de capim.

— Gosta de pássaros, senhor Ayrton? perguntou-me num gracioso sorriso.

Confesso que eu até ignorava a existência de pássaros no mundo. A minha vida de cidade, no corre-corre das ruas desde menino, sem nunca umas férias passadas no campo, impedia-me de prestar atenção a essas vidinhas aladas, que constituem um dos enlevos dos contemplativos.

— Gosto, sim, senhora, respondi eu, se bem que em matéria de pássaros só me lembre dum periquito vitima duma menina filha lá da firma.

— Pois aprenderá aqui a adora-los. O sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar, com certeza já lhe atraiu a atenção. Temos tambem vários outros amiguinhos que de lá não saem, pintassilgos, sanhaços, rolinhas, saíras...

— O senhor Ayrton, interveio o professor, vai ficar aqui conosco. Tem muito que ouvir e aprender. Vou revelar-lhe os segredos da natureza, e tu, Jane, lhe revelarás a poesia. Estes homens da cidade têm a visão muito restrita; o mundo para eles se resume na rua, nas
casas marginais e no torvelinho humano.

— Realmente, professor. A impressão que tive hoje durante o meu passeio pelo campo abriu-me a alma. Verifiquei que o mundo não é só a cidade, e que o centro do universo não é a firma Sá, Pato & Cia., como toda vida supus.

— O mundo, meu caro, é um imenso livro de maravilhas. A parte que o homem já leu chama-se passado; o presente é a página em que está aberto o livro; o futuro são as páginas ainda por cortar. E a uma criatura que nem conhece a página aberta ante os olhos, como o senhor, vou eu revelar o que a ninguém ainda foi revelado: algumas futuras!

Olhei para o professor Benson com ar palerma, porque sempre me apalermava o que ele dizia. Tinha o sábio uma linguagem nova para mim, da qual eu apreendia apenas o sentimento formal, não o sentido intimo. Animei-me, entretanto, a uma frase:

— Miss Jane com certeza conhece também essas páginas futuras.

— Sim, eu e ela, respondeu o professor. Só nós dois, no mundo inteiro e desde que o mundo é mundo, gozamos deste privilegio maravilhoso. Enviuvei muito cedo e minha família está hoje reduzida a Jane. É a minha companheira de analises dos cortes anatômicos do futuro.

"Cortes anatômicos do futuro"... A expressão soou-me como outrora a do senhor Sá quando pela primeira vez me falou em 'lançamento por partidas dobradas", coisa que hoje não ignoro mas que na época me valeu por um "corte anatômico".

Nesse ponto do almoço fez-se notar certa zoada distante vinda não sabia eu de onde.

— Deixaste o cronizador aberto, Jane?

— Sim, meu pai. Deixei-o em marcha para 410 anos de hoje, focalizado para 80.° de latitude N. e 40 de longitude. Experiência ao acaso, pois nem verifiquei onde fica esse ponto.

—Groenlândia. O corte não revelará coisa nenhuma, suponho. Não creio que em 410 anos as condições do mundo se alterem a ponto de haver lá outra vida alem da dos esquimós, ursos e focas.

—Em todo o caso vejamos, disse a moça. Temos tido tantas surpresas...

—Minha filha, senhor Ayrton, possui mais frieza de sábio do que eu. Não perde tempo em formular hipóteses quando tem ao alcance meios de verificar experimentalmente.

Ri-me. Acho que a melhor maneira de figurar numa roda onde se falam coisas acima da nossa compreensão é sorrir para o interlocutor que nos dirige a palavra. Se o riso não engana a ele, engana-nos a nós e livra-nos de uma replica verbal, que sai asneira infalivelmente. De todo o dialogo da filha com o pai só me evocou uma imagem já classificada em meu cérebro a palavra Groenlândia.

Lembrei-me dos meus tempos de geografia e da impressão que me causara a descrição da Terra Verde, ou Groenlândia, feita pelo meu barbudo professor Maneco Lopes. E por associação me vieram à mente ursos brancos, focas, leões marinhos, pinguins, esquimós. Querendo contribuir com uma nota para a conversa, e fingindo entender o que eles haviam dito, arrisquei:

— Não há duvida, a Groenlândia é um caso sério. Uma piririca!

Foi a vez do professor Benson franzir os sobrolhos no gesto clássico da incompreensão. Vi que aquele homem, que sabia tudo e lia o futuro, ignorava alguma coisa do presente — a gíria da cidade, e firmei-me na resolução de dar com a giria em cima dele para vê-lo refranzir a testa muitas vezes.

— Que? indagou o velho sábio.

— Sim, expliquei eu sem erguer os olhos para miss Jane com medo de desnortear. A Groenlândia é um caso, um numero. Quanto o pinguim cisma p'ra cima do peixe e o urso gréla a foca...

Mas o professor Benson cortou-me as vazas.

— Não refletiu nunca, meu caro senhor Ayrton, na oportunidade do silencio? O silencio é sábio, é uma das mais altas formas da sabedoria. Foi silenciando que Jesus deu ao "Que é a verdade?" de Pilatos a única resposta acertada...

— Papai, interveio a moça evidentemente apiedada da minha situação, está aí uma experiência que ainda não fizemos! Involuir a corrente e operar um corte no ano 33, a ver se apanhamos essa cena histórica...

— Realmente é uma ideia, minha filha, e mais curiosa do que o exame da Groenlândia, onde, como diz cá o amigo, o urso gréla a foca...

CAPITULO V
Tudo Éter que Vibra


Saí daquele almoço com as ideias mais desnorteadas do que nunca. Um elemento novo contribuía para isso; miss Jane, criatura singularmente perturbadora, pois, além de agir sobre meus fragílimos nervos como todas as moças bonitas, ainda me tonteava com a sua mentalidade de sábio. De tudo quanto a jovem disse só me ficou claro no espirito a história dos passarinhos do pomar. Até ali pareceu-me uma criatura tal as outras, mas depois do "corte anatômico" tudo se complicou e passei a ve-la qual um misterioso ídolo de divindade dupla, mixto de Afrodite e Minerva.

Depois do almoço levou-me o professor a ver os laboratórios. Atravessei numerosas salas e pavilhões cuja composição entendi menos que a do gabinete. Quanta maquina esquisita, tubos de cristal, ampolas, pilhas elétricas, bobinas, dínamos — extravagâncias de sábio! Eu conhecia varias oficinas mecânicas, mas nelas nunca me tonteava. Tornos, maquinas de cortar e furar, bigornas, martelos automáticos, laminadores, fresas, tudo isso eu via e compreendia, pois apesar de complicados na aparência evidenciavam logo uma função esclarecedora. Mas ali, santo Deus! Que caos! Não consegui entender coisa nenhuma e mesmo depois que o velho sábio mas explicou manda a verdade confessar que fiquei na mesma.

Isto aqui, disse ele na primeira sala, são aparelhos eletro-radioquimicos, na maioria criados ou adaptados por mim e que constituíram o ponto de partida da minha descoberta. Se o amigo Ayrton fosse técnico, eu os explicaria um por um, mas será difícil fazer-me entender por quem não possui uma solida base de ideias científicas. Resumirei dizendo que neste velho laboratório consumi os trinta anos da minha mocidade em pesquisas pacientíssimas, culminantes na construção daquela antena que o amigo lá vê no alto da torre.

Olhei e vi uns fios entrecruzados formando um desenho geométrico.

— Parece uma teia de aranha! murmurei.

— E é de fato uma teia de aranha. A aranha sou eu. Com essa teia apanho a vibração atômica do momento.

— "Vibração atômica do momento"... repeti, fazendo um furioso esforço mental para compreender a novidade.

— Sim. A vida na terra é um movimento de vibração do éter, do átomo, do que quer que seja uno e primário, entende?

— Estou quasi entendendo. Já li um artigo no jornal onde um sábio provava que só há força e matéria, mas que a matéria é força, de modo que os dois elementos são um, como os três da Santíssima Trindade tambem são um, não é isso?

— Mais ou menos. Nomes não vêm ao caso. Força, éter, átomo: denominações arbitrarias de uma coisa una que é o principio, o meio e o fim de tudo. Por comodidade chamarei éter a esse elemento primário. Esse éter vibra e, conforme o grau ou intensidade da vibração, apresenta-se-nos sob formas. A vida, a pedra, a luz, o ar, as árvores, os peixes, a sua pessoa, a firma Sá, Pato & Cia.: modalidades da vibração do éter. Tudo isso foi, é e será apenas éter.

Não pude deixar de sorrir lembrando-me da cara que fariam os senhores Sá, Pato & Cia. se ouvissem as palavras do sábio. Éter, eles...

— Mas não há somente éter no mundo, continuou o mestre. Se só houvesse éter e fosse de sua essência vibrar, a vibração seria uniforme e tornaria impossível a manifestação de formas de vida. Seria o estatismo eterno.

— Sei, um zum-zum, uma zoada de não acabar mais.

— Muito bem, está compreendendo. A vibração do éter, pois, sofreu a interferência... Sabe o que é interferência?

— Uma coisa que se insinua pelo meio; intrometer a colher torta na conversa dos mais velhos deve ser, cientificamente, uma interferência.

— Perfeitamente. Sofreu a interferência do que cá no vocabulário que criei com minha filha chamo — o Interferente. Isto de palavras não tem importancia, como já disse. Só vale a ideia. O Interferente poderá para outros ter o nome de Deus, por exemplo, ou de Vontade. Os filósofos que filosofam com palavras passam a vida a debater qual a melhor palavra a aplicar ao meu Interferente, como se palavras jamais esclarecessem alguma coisa.

— Vai indo muito bem, professor. Há o éter que vibra e há o Interferente que se mete no meio...

— Isso. Interfere e provoca a variação vibratória. Essa variação cria correntes que se chocam umas com as outras, modificam-e se dão origem a todas as formas de vida existentes. A vida, pois, não passa da vibração do éter modificada pela ação do...

— Interferente! concluí, glorioso.

Parece que o professor Benson mudou a ideia que formava de mim. Viu que o discípulo aprendia depressa e, voltando atrás, como se valesse a pena instruí-lo mais a fundo, passou a explicar-me dezenas de coisas do seu laboratório, na intenção de confirmar-me nos princípios que o levaram á dedução da formula: Éter + Interferência = Vida.

Depois que me viu já bem seguro das suas teorias, continuou:

— Preste atenção agora, que este ponto é capital. O interferente não interfere sempre. O Interferente interferiu uma só vez!

Parei um pouco atordoado.

— Espere, doutor. Dê-me tempo de assentar as ideias. O Interferente veio, interferiu e parou de interferir. É isso?

— Perfeitamente. Quebrou a uniformidade da vibração, perturbou o unissonismo...

— O zum-zum!

— ...e desde então o fenômeno vida, que tambem podemos denominar universo, desenvolve-se por si, automaticamente, por determinismo. As coisas vão-se determinando...

— Uma puxa a outra.

— Isso. Uma determina a outra. Daí vem falarem os velhos filósofos em lei da causalidade, "todo efeito tem uma causa", "toda causa produz efeitos", etc.

—Aristóteles. . . ia eu arriscando.

—Deixe Aristóteles em paz. Estamos na determinação universal, e a vida, ou o universo, é para nós o momento consciente desta determinação.

—"Momento consciente"... repeti forçando o cérebro.

—O senhor Ayrton, por exemplo, é um momento consciente da determinação universal ás 13 horas e 14 minutos do dia 3 de janeiro do ano de 1926, aos 22.° e 35' de latitude S. e 35.° e 3' de longitude ocidental do meridiano do Rio de Janeiro.

—Admirável! exclamei com entusiasmo e cheio de orgulho, compreendendo afinal a minha verdadeira significação na vida. Mas o futuro, doutor? Muito mais que a definição científica do que sou, interessam-me as suas visões do futuro.

—Para lá chegar temos que ir por este caminho. Começamos do éter inicial, admitimos a Interferência e estamos na Determinação, que é o que os filósofos chamam presente... O futuro é a Predeterminação.

Franzi os sobrolhos. A palavra era nova para mim e a ideia muito mais. O professor Benson expô-la com luminosa clareza e mostrou-me o maravilhoso do determinismo. Em certo ponto da sua exposição lembrei-me do amigo corretor e da sua comparação do 2 + 2 = 4. Fingi que era minha a imagem e arrisquei:

— Dois mais dois igual a quatro.

O professor Benson entreparou, com a fisionomia radiante. Em seguida estendeu-me a mão.

— Meus parabéns! Vejo que o senhor Ayrton é muito mais inteligente do que a principio supus. Nessa imagem está toda a minha filosofia; 2 + 2 significa o presente; 4 significa o futuro. Mas, assim que escrevemos o presente 2 + 2, o futuro 4 já está predeterminado antes que a mão o transforme em presente lançando-o no papel. Aqui, porém, são tão simples os elementos que o cérebro humano, por si mesmo, ao escrever o 2 + 2, vê imediatamente o futuro 4. Já tudo muda num caso mais complexo, onde em vez de 2 + 2 tenhamos, por exemplo, a Bastilha, Luis 16, Danton, Robespierre, Marat, o clima de França, o ódio da Inglaterra além Mancha, a herança gaulesa combinada com a herança romana, o bilhão de fatores, em suma, que faziam a França de 89. Embora tudo isso predeterminasse o "quatro" Napoleão, esse futuro não poderia ser previsto por nenhum cérebro em virtude da fraqueza do cérebro humano. Pois bem: eu descobri o meio de predeterminar esse futuro — e ve-lo!

— Mas é assombroso, professor! É a mais espantosa descoberta de todos os tempos! exclamei de olhos arregalados. Entretanto, permita-me uma duvida. Se esse futuro ainda não existe, como o pode ver?

— O 4 antes de ser escrito tambem não existe; no entanto o amigo o vê tão claro no presente 2 + 2 que o escreve incontinente.

O argumento calou fundo. Pisquei sete vezes, com a testa fortemente refranzida.

— O futuro não existe, continuou o sábio, mas eu possuo o meio de produzir o momento futuro que desejo.

Tonteando pelo tom categórico daquela afirmativa não ousei duvidar, e estava ainda apalermado com a maravilhosa revelação quando miss Jane apareceu, esplêndida de formosura. Esqueci toda aquela altíssima ciência que já me dava dor de cabeça e regalei os olhos na sua imagem perturbadora. Saudou-me com um gesto amável e disse, dirigindo-se ao
professor:

— Tinha razão, meu pai. Já fiz o corte e lá só vi as eternas brancuras da neve.

E voltando-se para mim:

—Tem aprendido muita coisa, senhor Ayrton?

—Mais que em toda a minha vida, miss Jane, e começo a bendizer o acaso que me fez vitima de um desastre.

—E está tão no começo ainda! Quando entrar no segredo de tudo e puder ver diretamente uns cortes, o seu assombro vai ser ilimitado.

—Já prevejo isso, senhorita, e...

E engasguei-me. Miss Jane olhara-me nos olhos e eu não era criatura que suportasse de frente um olhar assim. Cheguei a corar, creio, o que inda mais aumentou a minha perturbação. Felizmente a boa criatura, vendo que eu me calava, voltou-se para o professor Benson e disse:

— Mas agora, meu pai, tréguas ás revelações. O café está na mesa e com uns bolinhos tentadores que eu mesma fiz. Senhor Ayrton, vamos...
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continua… VI – O Tempo Artificial

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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