sábado, 5 de novembro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 15


 

Leandro Bertoldo Silva (Pois é…)


— Oi, amiga! Vi que você está on-line. Está podendo falar?

— Oi, amiga! Claro, está tudo bem?

— Mais ou menos… Eu vou ter que digitar* porque o meu filho, o Artuzinho, está perto de mim e eu não quero que ele ouça. Nossa, menina… Estou muito preocupada com ele.

—O que ele tem?  Está doente?

— Não, bem, eu acho que não…

— Então o que foi?

— Você acredita que o Artuzinho agora deu para perder tempo com bobagens?

— Perder tempo com quê?

— Bobagens! Perder tempo com bobagens.

— Que bobagens?

— O Artuzinho está lendo. Livros!

— Jesus!

— Pois é… Você sabe que desde pequenininho ele sempre foi assim meio diferente… Mas agora deu pra isso! Passa o dia inteiro com um livro pra cima e pra baixo lendo. Até na escola!

— Até na escola?! E você procurou a diretora pra ver o que está acontecendo?

— Pensei nisso sim. Mas quando cheguei lá, nem foi preciso conversar. Estava tudo absolutamente normal.

— Normal como?

— Todos os alunos estavam com seus celulares conectados, antenados no mundo.

— E o Artuzinho?

— Na biblioteca.

— Misericórdia! E você ainda fala que estava normal?

— Normal com todo mundo, menos com o Artuzinho. Como ele pode perder tanto tempo?

— Pois é…

— Coloquei a melhor internet em casa, assinei vários canais de filme, futebol, tudo que os meninos da idade dele gostam e nada.

— Não só os meninos, não é amiga? Todo mundo.

— Por isso estou preocupada. Ele tem tudo e está deixando a vida passar. Só fica com aquele livro na mão. Sabe, estou pensando em procurar um psicólogo.

— Por isso não. Tem um aplicativo ótimo que resolve esse problema. É só você baixar e colocar todos os dados da pessoa e digitar no campo “assunto” o que está ocorrendo que ele dá o diagnóstico e indica o tratamento. E o melhor é que a pessoa, no caso o Artuzinho, nem precisa saber de nada.

— Mas isso é maravilhoso!! Ai, amiga… Eu sabia que seria ótimo falar com você. Sempre tão antenada, bem diferente do Artuzinho. Tá vendo as coisas maravilhosas que ele perde?

— Pois é…

— Ai, Nossa!

— Que foi?

— Ele está fazendo caras e bocas!

— Caras e bocas?

— Sim! Lendo o livro e fazendo caras e bocas.

— Isso tá ficando sério…

— Ai, ai, ai!!

— Que foi, que foi?

— Ele colocou a mão no rosto, balançou a cabeça e não tira os olhos do livro.

— Amiga, baixa logo o aplicativo e começa o tratamento.

— Vou fazer isso assim que terminar de falar com você.

— Você consegue ver o que está escrito na capa do livro?

— Daqui está um pouco difícil, mas… deixa ver… Ai, não!

— O quê?

— Tem a palavra “crime” escrita lá.

— Minha nossa! Consegue ver mais alguma coisa?

— Espera um pouco… “castigo”… Crime e castigo… É o que está escrito: “Crime e castigo”.

— Hummm…. Isso não é nada bom. Consegue ver o nome de quem escreveu essa coisa?

— Olha… Nem se eu tentar acho que consigo decifrar.

— Digita aqui letra por letra.

— Boa ideia. D-O-S-T-O-I-É-V-S-K-I.

— Misericórdia! Nunca vi isso em lugar nenhum. Parece um código.  Olha direito. Deve ter um nome lá.

— “Fiódor”.

— O quê?

— É o que está escrito: “Fiódor”. Em cima do código.

— Nunca ouvi falar.

— Nem eu e nem quero, Deus me livre.

— Tem mais alguma coisa?

— Um desenho. Ai, que coisa horrível! Tem um desenho lá.

— Desenho de quê?

— De um rosto com olhos enormes.

— Amiga, a coisa tá muito séria.

— Oh, meu Deus! Por que esse menino não é normal igual aos outros?

— Calma, calma… Não faça movimentos bruscos. Finja que está tudo bem e vai saindo de fininho.

— Mas é o Artuzinho, meu filho!

— Eu sei, amiga. Mas pode ser perigoso. Ele tem feito algo estranho ultimamente, além de ler livros?

— Não sei. Você sabe como é, não tiro os olhos do celular.

— Claro que não! Você é como todo mundo! Tem uma vida normal. Ele ainda está fazendo caras e bocas?

— Ai, não amiga! Ele está fazendo algo pior!

— Pior? O quê?!

— Ele colocou o livro do lado, sacou um caderninho e começou a…. Meu Deus!

— Fala, fala!!

— Escrever! O Artuzinho está escrevendo!!

– Amiga, esquece o tratamento do aplicativo. Fique aí e não se mexa. Vou acionar a viatura e chamar o SAMU.
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* Para melhor compreensão, as mensagens desse texto foram cuidadosamente traduzidas do internetês para a linguagem coloquial.

Fonte:
https://arvoredasletras.com.br/2022/06/04/pois-e/

Silmar Böhrer (Croniquinha) 66


Tarde plena no trecho, descendo a conversar com o riacho viandante, companheiro de águas e pensares, esgueirando na mata. Cronista dos quase nadas com olhares atentos, observando, auscultando pássaros e animais que fazem daqui o seu habitat - curucacas, saracuras, nambus e quero-queros - a bebericar algum sustento no banhadinho.

Somos dois, dois somos, eu e o rio  juntos à mata ciliar, um a correr, outro a divagar. Este a conduzir a folha que já foi verde um dia, e agora navega sua crônica de vida entre pedras e redemoinhos. O outro, a observar os torvelinhos que agitam o pocinho, onde as águas não só descem, sobem também, pondo a navegar em círculos, em retorno, os pequenos arbustos e as folhas que se vão na planície.

Seria esse o retrato dos verdissecos, galhinhos e pequenas folhas que fazem a viagem final rio a baixo no rumo do mar? Crônica de já, não vidas, em pura mansidão, pelos meandros do insólito caminho que leva ao fim?

A magia da vida caminha, rasteja, navega pelas veredas do insondável, como bem nos mostram os mestres, não é mesmo Braguinha ? E quem escreveria com maestria a crônica dos sertões, senão Guimarães Rosa ? Mundinhos dentro deste vasto mundo, mundo vasto cantado pelo outro mineirinho, Drummond.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lucília Alzira Trindade Decarli (Inquietude) 1


Penso até que água tem alma…
da fonte lança o seu véu,
chega ao rio e, então, se espalma,
dá-se ao mar… e sobe ao céu!


ALMA... E CORAÇÃO!

Há quem afirme que água não tem alma...
Provo o contrário sem qualquer receio;
no copo, embora esteja sempre calma,
vou revelar, agora, porquê veio...

Brota na fonte e vai buscar a palma,
dos vitoriosos ela traz o anseio,
“a intrepidez da flor que ao vento espalma
as delicadas pétalas do seio.”

Precipitada ao chão, torrencialmente,
servindo a tudo e a todos, plenamente,
refaz seu ciclo sem jamais parar.

E liquefeita é quando mais resiste:
é fonte, é riacho, é rio, e não desiste;
só sobe ao céu depois que abraça o mar!
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O tempo, marcas deitou
entalhadas em meu rosto,
mas o amor, que perdurou,
minimiza o meu desgosto!


MARCAS DO TEMPO

Do escuro túnel de um tempo passado,
ressurge, audaz, o amor adormecido!
Relembro alguém sorrindo, e do meu lado,
mas que perdi sem querer ter perdido.

Em transe está meu ego e, arrebatado,
canta o passado em ode, destemido,
indo aportar num tempo afortunado
que conheci, porém, sem ter vivido.

Ao desalento o meu amor resiste,
tento esquecer reminiscência triste,
marcas do tempo em minha pele impressas...

O meu viver, repleto de saudade,
exige agora: vem felicidade,
liberta o meu destino das avessas!...
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Contendo temas diversos,
lirismo a se sobrepor,
deixo claro os meus versos,
muito mais, falam de amor!...


MEUS VERSOS

Meus simples versos surgem, de repente,
sem revelar-me a nítida intenção...
Parecem ser um sussurrar na mente,
que toca o ouvido e, ali, ganha expansão.

Pego papel, caneta e, fielmente,
sem preocupar-me com erudição,
vou encadeando-os feito uma corrente,
um elo das palavras em vazão...

Métrica e rima, às vezes lhes imponho,
sem deturpar a realidade ou sonho
daquela inspiração, com muita calma,

pois, mais do que um capricho de momento,
ou atitude vã do pensamento,
sei que os meus versos partem de minha alma!
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Nas lágrimas derramadas,
transbordantes de emoção,
essas águas são chamadas
torrentes do coração!…


MURALHAS DA RAZÃO

Às vezes nem sabemos como nasce
tamanha angústia vinda, de repente,
e ao deslizarem lágrimas na face,
nos surpreende a súbita vertente.

Encurralados diante deste impasse:
— ver descoberto o nosso ser carente!...
Dentro de nós, talvez, algo ultrapasse
o escrúpulo insalubre e prepotente.

Lágrimas brotam, soltas, sem disfarce,
e o coração consegue apoderar-se
de um sentimento sufocado em vão.

Mas quando o pranto silencia um grito
pronto a lançar seu eco no infinito,
não derrubou muralhas... da razão!
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O joão-de-barro, a paineira,
e a casinha, ali construída...
Na infância, sobremaneira,
deram-me exemplo de vida!


REMINISCÊNCIA

"São Carlos"... Era o nome da fazenda,
com primaveras, pássaros, paineira...
O cafezal em flor, cena estupenda:
— recordação para uma vida inteira!

No terreirão, na grama em verde renda
- eu com dez anos quanta brincadeira!
Na casa simples, mesa com merenda;
dali se via o véu da cachoeira!...

Lembro o balanço no chorão... — Saudade!
Naquele pasto o gado em liberdade;
farto pomar, coqueiro carregado...

Apenas meses e eu nunca esqueci,
da infância a fase que passei ali:
— um tempo mágico do meu passado!

Fonte:
Lucília Alzira Trindade Decarli. Inquietude. Bandeirantes/PR: Sthampa, 2008.
Livro entregue pela poetisa.

Bruno Antonio Picoli (Memória escolar)


1992, classe do pré-escolar da professora Cleusa. Eram duas turmas no Colégio Estadual Gomes Carneiro: os da “Tia Cleusa” e os da “Tia Neiva”. Eventualmente as turmas eram reunidas e nessas ocasiões o desconforto tinha até cheiro, algo como casca de ovo misturado com cola tenaz.

No espaço contíguo a sala fazíamos o recreio. Era um terreno acidentando, um barranco inclinado o bastante para não ser possível ficar parado muito tempo, mas que permitia uso por aquelas crianças que não podiam desfrutar das quadras esportivas logo acima, tomadas pelos maiores que praticavam um futebol criativo em que tudo podia ser bola.

No recreio não monitorado a brincadeira consistia num desenho complexo em que cada turma formava um reino, com rei, generais e todo o resto. O objetivo era capturar os membros da outra casa real. Eu, é claro, era um soldadinho. O “nosso” rei era sempre o mesmo menino, até um dia que ele cansou da brincadeira. Como todos queriam ser rei e não chegamos a nenhum consenso, decidimos revezar no cargo: cada dia seria um rei diferente, para que fosse justo.

A coisa parecia promissora. Um dia o Rei regressou, queria brincar de novo, e, lógico, na condição de rei. Foi aclamado pelos demais. Menos por mim, aquele era o meu dia de ser o rei.

“Tia” Cleusa tinha um método próprio de avaliar as atividades de seus alunos: simpáticos carimbos que mantinha sobre sua mesa e pomposamente afagava na almofada. As figuras dos carimbos eram simples, bonecos palitos que portavam em seus finos braços figuras: o quadrado para um trabalho regular, o triângulo para um bom e uma estrela de cinco pontas para um ótimo.

Naquele dia entreguei meu desenho à profe Cleusa. Ela o mediu com os olhos, me fitou, deteve-se novamente sobre o papel. Abriu a gaveta e de lá retirou um carimbo. Senti um frio que começou nos meus calcanhares e instantaneamente se apoderou de minha coluna. Ela, mantendo o ritual pomposo, descansou o carimbo sobre a almofada. Não sei se por mais tempo que o normal ou se foi o próprio tempo que para zombar de mim passou mais devagar, mas aquilo não tinha fim. Eu, de pé, ao lado de sua mesa, esperando o veredito.

Sem dizer uma palavra e sem olhar para mim, ela levantou o carimbo, marcou o papel e o entregou em minhas mãos suadas. Respirei fundo, pronto para pedir uma nova chance, garantindo que iria me esforçar mais na próxima oportunidade, se me fosse concedida. Pousei meus olhos sobre a folha e vi um boneco de palito segurando uma estrela de seis pontas. Pálido olhei para ela que sorriu e me disse para ir me sentar em meu lugar.

No dia seguinte mudei de escola, e isso em nada tem a ver com os fatos narrados, é que uma aluna maior tinha o hábito de me bater no trajeto de volta para casa. Não sei se houve rebelião no reino, se o rei caiu, foi decapitado ou permaneceu intocável. Não sei se o carimbo novamente foi retirado de seu descanso gavetal. Mas essas duas experiências me atravessam até hoje e fazem parte da pessoa que sou. Desde 1992 sei que a injustiça viceja onde quer que não se mantenha firme a disposição pelo que é justo. Sei também da importância de uma professora justa para a autoestima de um menino que nunca pôde ser rei.

Fonte:
Revista LiteraLivre v. 6 - n. 32 – Jacareí/SP, março/abril de 2022.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Alfama


Fado é Alfama. Vadio e cantado ao desafio. Nos restaurantes minúsculos onde os turistas se deliciam com sardinha assada, ou nas rascas de pedra, nas escadinhas das ruelas íngremes, ou nos becos mais escondidos. Como se o tempo tivesse parado neste pedaço de Lisboa.

UM BAIRRO DE MARINHEIROS

Alfama, bairro velho da Capital, conserva ainda os traços característicos da Lisboa antes da conquista aos mouros. Nem o sismo de 1755, que devastou boa parte da Capital de Portugal, nem as exigências da evolução dos tempos modernos conseguiram alterar o seu estilo. Nascido fora da alcáçova* do castelo, o Bairro de Alfama, transformou-se, a partir do século XlV, num local marinheiro, frequentado por marinheiros, frequentado por pescadores, mareantes e trabalhadores das fainas do rio ou do mar.

No seu labirinto de escadinhas, becos e ruelas, Alfama possui grandes riquezas de uma arquitetura única, onde, ainda hoje, se encontram gravados nas pedras sinais que indicam as casas de pilotos e capitães do mar. Nestes sítios de traços singulares é possível tocar nos telhados através das janelas rendadas e dos estendais de roupa a enxugar, tantas vezes, retratados pelos homens das artes.

No “Chafariz de Dentro”, dono de um invejável caudal, recolhia-se a água que abastecia as naus que atracavam no Tejo. Toda a sua vida era feita em função do rio e do mar. Mesmo as práticas religiosas eram influenciadas pela atividade marítima. Assim foram surgindo capelas e irmandades, como a dos Remédios e do Espírito Santo.

Ninguém a descreveu melhor que o jornalista e olisipógrafo* Norberto de Araújo que tem o seu nome numa das ruas do bairro de Alfama. Este apaixonado por Alfama descrevia-a ao pormenor: “Labiríntica, confusa, aglomerada, polícroma, torturosa, contorcida, cheia de abraços de ruelas e de beijos, arcos, alfujas*, becos, escadarias e planos, serventias e pátios, um único Rossio: o “Chafariz de Dentro”; uma única Avenida: Os “Remédios”; um único Monumento: a “Torre de São Pedro”; postigos, quintas, cunhais, muros floridos, brasões, balcões, poiais*; cruzes de ermida, registros de azulejos, lápides foreiras, siglas, grades, portais esquecidos, colunas, pedras soltas, restos de muralha; em penas em bico, andares de ressalto, varões de apoio, frestas, balaústres, janelas arrendadas, janelas geminadas, janelas de reixa*; mil baiúcas*, exércitos de gatos, coros de pregões, tumulto e resignação, arraial perpétuo de roupas estendidas (...); gentes do mar, gentes das oficinas, vendilhões, nuvens de meninos (...)"

A Marcha de Alfama é promovida desde 1983 pelo Centro Cultural Dr. Magalhães de Lima. Já obteve resultados excelentes, entre eles, quatro primeiros lugares, dois segundos e dois terceiros. Fundada em 1975, esta coletividade pretende servir, sobretudo, os jovens do seu bairro, desenvolvendo várias atividades culturais e desportivas: A sua ação junto dos moradores do bairro mereceu o reconhecimento público com a distinção de Membro da Ordem da Liberdade, entregue por Mário Soares, na altura Presidente da República de Portugal.
 
MARCHA DE ALFAMA
Letra e Música de Amadeu do Vale e Carlos Dias

“Alfama não envelhece
E hoje parece
Mais nova ainda
Iluminou a janela
Reparem nela
Como está linda.

Vestiu a blusa clarinha
Que a da vizinha
É mais modesta
E pôs a saia garrida
Que é só vestida
Em dias
de festa.
(Refrão)

Becos escadinhas
Ruas estreitinhas
Onde em cada esquina
Há um bailarico.
Trovas tão singelas
E em todas elas
Perfume de mangerico.

Rios, gargalhadas,
Fados, desgarradas,
Hoje em Alfama é o demônio
E em cada canto,
O suave encanto,
Dum trono de Santo Antônio.

Já se não ouvem cantigas
E as raparigas
De olhos cansados
‘Inda aproveitam o ensejo
Pra mais um beijo
Dos namorados.

Já se ouvem sinos vibrando
Galos cantando
À desgarrada,
Mas mesmo assim dona Alfama
Não vai para a cama
Sem ser madrugada.
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NOTAS
Alcáçova – local fortificado; fortaleza.
Alfujas – lugares frequentados por gente desclassificada; antros.
Baiúcas – bodegas, tabernas
Olisipógrafo – estudante das temáticas culturais, históricas, sociais e económicas que versam sobre a cidade de Lisboa.
Poiais – assentos de pedra junto à parede, na entrada de uma casa.
Reixas – Grade para proteção de portas, janelas para barrar a passagem de folhas e outros detritos em água corrente.


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 8: Saudade Intensa

 

Cecy Barbosa Campos (A Colheita)


A terra se abria com a face sulcada de anciã infértil. O homem ajoelhado, inutilmente, molhava com suas lágrimas aquele solo ressecado que fora, um dia, tão promissor.

Lembrava quando ali chegara, jovem e cheio de esperança. Trazia consigo a mulher-menina, sua companheira de infância, e que seria sua companheira por toda a vida.

Conseguira, com muito esforço e muita força dos braços e das pernas, juntar um dinheirinho para comprar o pequeno barraco e o pedaço de terra, onde pretendia viver com a sua princesa e criar os filhos que viriam no futuro.

Poderia, com o tempo, melhorar o barraco que, com a ajuda das mãos laboriosas da mulher, se transformaria num castelo.

Chegaram felizes e, em alguns meses, Jovina prenhe, cantava e cuidava de seu reino, enquanto a terra deixava que crescessem em seu útero, as sementes que o Tônico lançara. No momento certo, a terra fecundada traria à luz aquelas germinadas e, também, a semente plantada em Jovina surgiria em busca de vida e da luz do sol.

Assim aconteceu e, com a colheita, Tonico pode até comprar um berço para o bebê que ele não queria em caixote faz de conta.

O menino crescia, robusto e saudável, aproveitando bem do leite de Jovina, que ria e cantava, dando seu peito ao filho guloso, a cada vez que ele choramingava, mesmo que não fosse de fome.

Deitado na relva forrada com um pano limpinho, que Jovina estendia para não dar coceira no menino, ele brincava, movendo os bracinhos, sempre que uma borboleta passava ou um beija-flor se achegava, atraído pelas flores bem cuidadas que tinham sido plantadas à frente do barraco.

E Tonico chorava, pensando no dia em que seu menino fraquinho e doente, não teve remédio para se recuperar. Se foi a água, não sabia. Gente da redondeza falava que a água do açude fazia muita doença. O menino gordinho foi murchando e nada ficava em sua barriga que inchava apesar de vazia.

Chegar ao povoado, buscando ajuda levava tempo, mas Jovina e o marido foram andando com o filho nos braços, até que no posto falaram que não tinha mais jeito, e que o menino não voltaria com eles para casa.

Voltaram sozinhos com sua amargura, sem falar nem chorar. Depois de chegar, a dor silenciosa de Jovina ainda mais machucou o marido que, com o peito apertado, abraçou a mulher sem nada dizer.

Depois daquele dia, Jovina nunca mais falou. Olhava o vazio, sentava no banco em frente do barraco e ali ficava, como se estivesse pondo atenção no menino que brincava na relva.

A terra ressequida não mais germinou e nova colheita não mais existiu. Tonico tentou: Quem sabe a terra fecundada traria Jovina de volta pro mundo, tirava ela daquela paradeira e até trazia um outro menino pros dois?

Porém, a chuva não veio e a água do açude não era suficiente para molhar o solo e dar vida às sementes que o Tonico lançara. Nem o amor de Tonico foi bastante para fertilizar o útero ressecado de Jovina, que ficara estéril de tanta tristeza.

E Jovina foi sumindo, sumindo, magrinha e quieta, sem mais cantar, até que um dia. sentada no banco, olhando o lugar onde o menino ficava brincando na relva, morreu como um passarinho.

Tonico chorando, caiu de joelhos molhando com suas lágrimas, inutilmente, aquela terra que deixara de ser mãe.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 4


CONFITEOR


Sinto que não sou mau, nem tampouco sou bom.
Sou o que posso ser, igual aos homens todos.
Na ribalta da vida, entre aplausos e ápodos*,
canto salmos a Deus e salvos a Mamon!

Como o lírio que exsurge alvo e puro de lodos,
de eco simples que fui, tento chegar a som.
Sou um tanto Marat e outro tanto Danton,
um misto de Platão com vândalos e godos!

Não sou bom nem sou mau. Sou apenas humano.
Entre o instinto e o ideal, o sagrado e o profano,
minh’alma conturbada e atônita, vacila...

Por sentir que, afinal, em síntese perfeita,
para o Céu, que desejo, a porta é muito estreita,
para o Inferno, que temo, é muito longa a fila!
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* ápodos = gracejos, chalaças, zombarias.
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DEUS E O HOMEM

Do nada Deus fez Tudo a Seu critério e jeito:
o céu, a terra, o mar, o rio, a várzea, o monte,
as serras colossais que azulam no horizonte,
tudo fez o Senhor e viu que era perfeito!

Veio o homem, porém, e em tudo achou defeito.
Fez o muro e o curral; cercou o pasto e a fonte;
pôs esquadras no mar e sobre o rio a ponte,
e fez do egoísmo lei, da força fez Direito.

A marca de Caím foi-lhe estampada à testa.
Ventura já não tem, de Deus pouco lhe resta,
perdido das paixões no báratro* profundo...

Pelas leis naturais é de ninguém a terra!
Um só dia de paz vale as glórias da guerra,
um minuto de amor cura os ódios do mundo!
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* báratro = abismo.
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ENTRE O CÉU E O INFERNO

Já era o mundo mau antes do cataclismo
oriundo do Céu, que destruiu Sodoma...
Veio a Assíria depois - a fera que ninguém doma-
entre os homens e Deus mais alargando o abismo!

Na Grécia de Platão, a cicuta e ostracismo.
A pompa imperial dos Césares de Roma.
Entre Meca e Medina o alfange da Mafoma,
e as mil perseguições contra o Cristianismo.

Sempre o ódio e o terror, a vilania, o crime!
E o ouro que abastarda, e miséria que oprime,
tudo em nome do Bem, pela glória do Eterno...

E assim os homens vão sobre a face da Terra,
entre os hinos da Paz e os tambores da Guerra,
de olhos fitos no Céu, a caminho do inferno!
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VERSOS A UM POETA

Sufoca a tua dor! Cala o teu desalento
e mostra-te feliz, sem que no entanto o sejas.
Que não saibam, jamais, das íntimas pelejas
que te fazem perder todo o contentamento!

O que importa é sorrir em meio ao sofrimento,
levando o bom humor por onde quer que estejas.
Quanto gente, afinal, sem ter o que desejas
vive alegre e feliz como palmeira ao vento!

Deixa a vida correr sem mágoas e pesares,
como o altivo condor que desafia os ares
e fende o espaço azul das celestes planuras...

Como poeta és rei de um reino de magias!
Transforma, pois, em riso as tuas agonias
e em poemas de amor as tuas desventuras!
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VERSOS E ESTRELAS

Há no murmúrio humilde de um regato,
ou na fúria do mar que se escapela,
a mesma força poderosa e bela
que vibra exata, num sentido exato!

É da divina essência um substrato
Tudo o que a natureza nos revela.
Da rosa de Istambul à flor singela,
desde o condor ao sabiá do mato!

Do Eterno Ser tudo provém e emana.
Da pedra bruta à inteligência humana
tão só quem as criou pode entende-las.

Pois sendo Deus o Artista do Universo,
bem mais depressa do que escrevo um verso
compõe, no céu, Lusíadas de estrelas!

Fonte:
Athos Fernandes. Ofir. 1977.
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.

Milton S. Souza (Loucuras do amor)


Tudo tem limite. E ela já vinha ultrapassando todos os limites há bastante tempo. Abraços longos e apertados que mexiam com os meus sentidos. Beijos no rosto, mas tão pertinho dos lábios que eu até podia sentir o gosto do seu batom. E mãos atrevidas que deslizavam por todos os caminhos do meu corpo, numa brincadeira infernal e audaciosa. E eu sempre  puxando o freio: afinal, ela era minha grande amiga, uma mulher casada e, para aumentar a distância, muito mais jovem do que eu. Mas tudo tem limite. Naquela noite, ela chegou sem avisar. Eu estava sozinho no escritório, trabalhando com a porta fechada por causa do calor e do ar condicionado ligado. E ela já entrou passando a chave na porta. Pela primeira vez, me premiou com um longo beijo na boca. O resto aconteceu ao natural...

O velho sofá serviu de leito para a nossa primeira noite de amor. Depois das cortinas fechadas, nos livramos rapidamente das roupas e mergulhamos naquela tão inesperada (ou esperada?) aventura. Uma tempestade de desejos soprou forte e levou para longe alguns raros receios que ainda permaneciam nos nossos corações. E nos entregamos totalmente, como se fôssemos dois adolescentes saboreando as loucuras que as nossas mentes inventavam e desinventavam. O tempo parou. E nós nos descobrimos depois, muitas horas mais tarde, ainda abraçados, como se os nossos corpos estivessem tentando manter para sempre a magia daquele instante. Em silêncio, nos vestimos e permanecemos de mãos dadas, olhos nos olhos, tentando dizer com o olhar tudo aquilo que as nossas palavras não conseguiam...

Esta foi a nossa primeira vez. Depois disso, vieram muitas outras. E sei que muitas outras ainda virão. Tenho certeza disso, porque o meu coração sempre muda de ritmo quando ela chega pertinho de mim. E quando nos abraçamos, sinto que o coração dela também está batendo apressadamente. É claro que sabemos os riscos que estamos correndo, pois este amor que inventamos para nós é proibido aos olhos do mundo. É por isso que vamos mantendo as aparências e agindo sempre como velhos e bons amigos. Mas naquelas horas em que conseguimos nos livrar de tudo o que nos rodeia, quando conquistamos alguns momentos só para nós dois, repetimos novamente, e com mais força ainda, todas as loucuras daquela primeira vez. E quando, por fim, nos separamos, já ficamos contando os dias, as horas e os minutos que faltam para que a gente possa estar novamente nos braços um do outro, para trocar e multiplicar este amor tão louco e tão nosso.

Exposição de Poesia e Fotografia "O Jardim da Felicidade" (Em Curitiba, 6 de novembro)

 

Em 06 de novembro (domingo), a partir das 10h30m, na Feira do Poeta de Curitiba (rua Coronel Eneas, 30, Largo da Ordem), será inaugurada a exposição de Poesia e Fotografia "O Jardim da Felicidade".  

Participam  poetas e contistas da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia), Sheina Lee Leoni Handel (Presidente), Elciana Goedert (Vice-presidente), Daniel Mauricio, Primeiro Secretário, Decio Romano, Segundo Secretário, e a Conselheira  Isabel Furini.

Os acadêmicos da Avipaf também foram convidados para participar do evento.

Enviaram poemas ou minicontos para a exposição: José Feldman e Maria Antonieta Gonzaga Teixeira, Luciano Dídimo. Solange Rosenmann, Amaury Nogueira, Devora Dante, Miriam Maria Santucci, Maria da Glória Colucci,  Marli Terezinha Andrucho Boldori, Rita Delamari, Atilio Andrade, Vanice Zimerman Ferreira, Igor Veiga,  Ilario Ieteka, Sonia Cardoso, Vera Lucia Cordeiro.

Elciana Goedert terá a seu cargo a organização do evento e do Sarau.  Daniel Mauricio será o Mestre de cerimônias. As fotografias que farão parte da exposição, são do poeta e fotógrafo Decio Romano. Na inauguração serão lidos e declamados poemas da exposição e de autoria dos participantes. A poeta Elciana Goedert convidará a todos os presentes para participar desse Sarau lendo ou declamando poemas.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Alcântara


Nas docas, as velhas fragatas e as canoas foram substituídas por veleiros e iates e os antigos armazéns do peixe recebem, agora, a visita dos notívagos da Capital. Mas, pelas vielas mais interiores, a Alcântara castiça – do Tejo e do Fado – continua a tentar resistir.

UMA PONTE DE CULTURAS

Uma “ponte” tinha de marcar o destino deste populoso bairro lisboeta. Na verdade, o seu nome vem do árabe e “Alcântara” significa ponte. Essa tal ponte fazia a ligação entre duas margens de uma ribeira que corria sob o que hoje é a Avenida de Ceuta, desaguando no Tejo.

Curiosamente, nos nossos dias, Alcântara é marcada por uma outra ponte: a ponte 25 de Abril. Alcântara foi local da batalha perdida por D. António Prior do Crato contra as tropas castelhanas, em 1580. E foi, a partir do início da expansão ultramarina, lugar procurado pelos monarcas e fidalgos. Primeiro, como ponto de passagem para Belém. Mais tarde, porque acharam ali locais privilegiados para casas de campo e centro de caçadas.

Foram, então, surgindo os principais edifícios do sítio que viria a ser o bairro popular e operário que conhecemos. Foi o caso do Palácio Real (no Calvário), da Igreja das Flamengas, dos Conventos do Calvário e do Livramento, da belíssima Capela de Santo Amaro, assim como o Palácio das Necessidades. Alcântara, cujas águas cristalinas terão atraído os povoadores, estava repleta de hortas, azenhas, e sulcada de vinhedos.

A Revolução Industrial trouxe-lhe a implantação de fábricas e de muitas habitações para os respectivos trabalhadores, transformando Alcântara num bairro operário e marinheiro. Ali se instalou uma das primeiras escolas industriais do país, a “Escola Marquês de Pombal”. Também ali, a rainha D. Amélia criou um dispensário, a partir do qual se iniciou a campanha contra a tuberculose em Portugal.

Alcântara participa das marchas desde 1932, com o patrocínio de SFAE – Sociedade Filarmónica Alunos Esperança, sediada neste bairro, na Rua de Alcântara. Devem-se à SFAE alguns dos grandes nomes do teatro amador, bem como de artistas que representam a coletividade na Grande Noite do Fado, organizada pela Casa da Imprensa. As suas atividades desportivas, em várias modalidades, constituem uma ocupação dos tempos livres dos jovens residentes no bairro, destacando-se o tênis de mesa, tendo a SFAE organizado o 1º torneio de Lisboa.
 
MARCHA DE ALCÂNTARA
“Alcânt’ra é diferente”

Música de Constantino Menino
Letra de Martinho da Silva

“Que linda Alcântara
Vem hoje a desfilar
Bonitas vão
As suas carvoeiras
Lisboa, Lisboa
Alcânt’ra sabe a mar
É moça gaiata
Nos gestos e maneiras.

Seus olhos são fogo
Que aquece o coração
calor que’spalha
Pelas ruas da cidade
Certinho compasso
Tem a sua canção
Alcânt’ra que canta
Lisboa sem idade.
(Refrão)

Olhai
Olhai p’rás carvoeiras
Alfacinhas brejeiras
Gaivotas a voar
Cantai
Cantai com o coração
Os tempos que lá vão
D’Alcânt’ra à beira mar.

A noite é de festa
Meu bairro é Alcânt’ra
Alcânt’ra é Lisboa
Alegre e sorridente
Voando, voando
A marcha que encanta
É mais popular
Alcânt’ra é diferente.

Na garganta o cantar
Do arrais pelo convés
Cantigas de amor
São trovas feitas ao Tejo
Bela carvoeira
traz ondas das marés
a alma se acalma
Lisboa ao dar-lhe um beijo”.
(Refrão)
 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 17

 

Álvaro Posselt (Diário de Instantes) 1


a letra A tremeu na base
ao topar com outro A
teve uma crÀse
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Aqui tudo pode
Até a cabra
fica de bode
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A vida é o agora
Se alguém chegar atrasado
vai ficar de fora
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A vida não tem fim
Entre túmulos e flores
uma caveira acenou pra mim
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Curitiba não nos poupa
Ontem eu tomei sorvete
Hoje eu tomo sopa
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Escrever sem consulta
O bom é obedecer
à norma oculta
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Esta vida é um mistério
Perto da maternidade
também tem um cemitério
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Eu juro de pé junto
Com o calor na capela
suava até o defunto
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Gritei na caverna
Lá dentro
meu grito hiberna
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Inteligência não me falta
Veja como é elevado
o meu QI em caixa alta
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Literatura clássica
Seu Zé tenta ler a lista
da cesta básica
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Meu Deus, que desânimo!
Hoje quem vai trabalhar
é o meu heterônimo
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Meu violão me intriga
Morre de tanto rir
quando lhe coço a barriga
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Não cresceu com fermento
Para o pão ficar grande
usei lentes de aumento
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Não se empolgue
Na minha feijoada
só a orelha do Van Gogh
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Nas entrelinhas
destas linhas
só há estrelinhas
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Ninguém me liga
nem desliga
Ando meio stand by
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Nossa relação é quente
Toda noite na cama
um gato entre a gente
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Páginas do orkut
Essa tal de gramática
naum c diskut
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Para não perder o clima
peguei o verso de baixo
e rimei com o de cima.
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Pode ser a métrica
Para moldar estes versos
só com serra elétrica
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Reunião de família
Os ponteiros se ajustam
com o horário de Brasília
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Sentado no banco
o gato finge
que é uma esfinge
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Traiçoeira
Só dorme com o machado
Livro de cabeceira
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Fonte:
Álvaro Posselt. Tão breve quanto o agora. Curitiba: Blanche, 2012.
Livro enviado pelo autor.

Malba Tahan (9a. Narrativa das Mil Histórias sem Fim)


Meu nome é Sind Mathusa. Poucos homens têm havido, na Índia, mais ricos do que meu pai e não sei de um só que o excedesse em inteligência, bondade e prudência. Sentindo-se, certa vez, assaltado de grave enfermidade, e na certeza de que os dias que lhe restavam na vida podiam ser contados pelos dedos da mão, meu pai chamou-me para junto de seu leito e disse-me:

— Escuta, ó jovem desmiolado! Atenta bem no que te vou dizer. És pela lei o herdeiro único de todos os bens que possuo. Com o ouro que te vou deixar poderias viver regaladamente, como um rajá, durante duzentos anos, se a tanto quisessem os deuses prolongar a tua louca e inútil existência. Como sei, porém, que és fraco para resistir aos vícios, e forte em seguir os maus exemplos, tenho a triste certeza de que muito mal empregarás a riqueza que vai em breve cair-te nas mãos. Quero, assim, fazer-te agora um pedido: se for atendido morrerei tranquilo e não levarei para a vida futura o tormento de uma angústia.

— Dizei-me, meu pai — respondi —, qual é o teu desejo. Quero ser mais repelente do que um chacal se deixar de cumprir a tua vontade!

— Meu filho, quero arrancar de ti um juramento. Vês aquele turbante cinzento que ali está? Vais jurar pela imaculada pureza dos ídolos e pelas asas de Vishnu (1) que se algum dia te sentires desonrado procurarás imediatamente a reabilitação que a morte concede aos infelizes, enforcando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao enfermo. Jurei pelos ídolos e pelos complicados deuses da Índia que se me visse, no futuro, ferido pela mácula da desonra, procuraria a morte ao enforcar-me no turbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meu pai, fechando os olhos para a vida, integrou-se no Nirvana. Vi-me, de um momento para o outro, senhor de inúmeras propriedades, das quais auferia uma renda que chegava a causar inveja e insônia ao orgulhoso xá da nossa província. Passei a ostentar uma vida de luxo e dissipações; rodeavam-me, dia e noite, falsos amigos e bajuladores da pior casta que me induziam a praticar toda a sorte de leviandades e loucuras.

Uma noite, tendo reunido em minha casa, como habitualmente o fazia, em grande festa, vários e divertidos companheiros da nossa laia, um deles chamado Ishame, que adquirira considerável riqueza vendendo camelos e elefantes, convidou-me para uma partida de jogo de dados. A princípio a sorte me foi favorável; cheguei a ganhar num golpe o meu peso em marfim. Cedo, porém, perseguido por uma triste fatalidade, entrei a perder e os meus prejuízos excederam de mais de cem vezes o lucro inicial.

Com a esperança de recuperar o dinheiro perdido redobrei as paradas. Perdi novamente. Na progressiva loucura do jogo, já alucinado, arrisquei nos azares da sorte as minhas joias, escravos e propriedades. Mais uma vez perdi, e ao nascer do sol sobre o Ganges nada mais me restava da herança de meu pai. Na certeza de que poderia contar com a generosidade e auxílio daqueles que me rodeavam, fiz, com a garantia da minha palavra, uma grande dívida de honra, ao perder a última partida.

Procurei um jovem brâmane, filho de opulenta família e que sempre vivera a meu lado, no tempo da fartura, e pedi-lhe que me emprestasse algum dinheiro.

— Meu caro Sind — disse-me o brâmane conduzindo-me para o interior de sua rica vivenda —, chegas em péssima ocasião. Fui obrigado a enviar ontem, para resgatar uma dívida de meu pai, cerca de duas mil rúpias para Benares. Encontro-me inteiramente desprevenido. Lamento, portanto, não poder servir a um amigo tão querido.

Olhei para as pratarias que se amontoavam por todos os recantos de sua casa. Havia narguilés riquíssimos e bandejas com inscrições que deviam valer alguns milhares.

— Nada disso é nosso — acudiu logo o brâmane, apontando para os adornos e enfeites. — É desejo de meu pai casar minhas irmãs com homens de boa casta, e para atrair os pretendentes alugou toda essa prata e esses tapetes bordados a ouro. Todos acreditam, desse modo, que somos ricos e que vivemos na fartura e na opulência.

Irritado com o cinismo daquele falso amigo, disse-lhe com calculada frieza:

— Bem sabes que sou descendente de nobres e que meus avós pertenciam à mais alta linhagem da Índia. Declaro, pois, que para fugir da situação em que me encontro, estou disposto a casar com uma jovem fina e educada. Peço, pois, a tua irmã mais moça em casamento.

Sorriu o brâmane:

— Pedes em casamento uma jovem que não conheces e que talvez não te aceite para esposo. Em nossa família os casamentos não são ditados pelos interesses pessoais; a mulher deve ser ouvida e suas inclinações pessoais levadas em linha de conta. Se desejas pagar dívidas de jogo com o dote de minha irmã mais moça, sinto dizer-te que estás equivocado, jamais aceitaria, como cunhado, um homem que se arruinou em consequência de uma vida desregrada e pecaminosa!

E, conduzindo-me até a porta de seu palácio, empurrou-me delicadamente para a rua.

Apesar desse péssimo acolhimento, não desanimei. Fui ter à casa em que morava um mercador chamado Meting, que era assíduo frequentador de minha mesa. De mim havia Meting recebido inúmeros obséquios e finezas, e muito dinheiro para ele eu perdera no jogo.

— Que desejas de mim? — perguntou-me. Disse-lhe que precisava de pequeno auxílio.

— Julgas que eu sou algum imbecil da tua espécie? — respondeu-me. — De mim não terás nem um thalung (2) de cobre!

Desesperado, vendo-me repudiado por todos, e sem recursos para pagar o imenso débito que contraíra, abandonei o palácio e fui ter a um grande bosque nas vizinhanças da cidade. Era meu intento cumprir o juramento que formulara junto ao leito de meu pai.

Escolhi, portanto, entre muitas, uma belíssima árvore. Subi pelo nodoso tronco, sentei-me em um dos galhos mais altos, desenrolei o longo e belo turbante cor de cinza, amarrei uma das suas extremidades em outro galho que estava a meu alcance e fiz na outra extremidade um laço seguro em torno do pescoço. Todos esses preparativos trágicos executei-os com a maior calma, sentindo, embora, o coração opresso pela mais imensa tristeza.

Já ia deixar cair o corpo no espaço, quando, ao reforçar o laço fatal que me estrangularia, notei que havia na ponta do turbante, por dentro, qualquer coisa de muito resistente. Que seria? Na esperança louca de encontrar ali qualquer coisa que me pudesse salvar, rasguei o turbante. Embora pareça incrível, senhor, devo contar: de dentro dele retirei uma carta de meu pai redigida nos seguintes termos:

Estás desligado do teu juramento. Vai à casa de Kashiã, o tecelão, e pede-lhe a caixa de areia. Quem se salva por um milagre da desonra e da morte deve evitar o erro e procurar o caminho reto da vida.

Ébrio de alegria saltei da árvore e quase a correr fui ter à choupana onde morava o pobre Kashiã, apelidado “o tecelão”; recebi das mãos desse pobre homem a lembrança que meu pai ali deixara para me ser entregue.

Ao abrir a misteriosa caixa quase desmaiei, tão grande foi o meu assombro. Estava repleta de brilhantes, pérolas e rubis — alguns dos quais valiam mais que as coroas dos príncipes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza, não soube dominar a tensão de que fui presa e chorei. Lembrei-me de meu bom pai, sempre generoso e prudente, que ao prever a minha desgraça usara daquele artifício para salvar-me. Era evidente que eu só poderia obter a caixa com auxílio da carta, e a existência desta só chegaria ao meu conhecimento se o turbante fosse por mim próprio desmanchado.

Como louco que se salva de um abismo ao fundo do qual se atirara, assim me vi naquele momento. Depois de lançar aos pés do velho Kashiã um punhado de preciosas gemas, tomei a caixa e encaminhei-me para a cidade. Era minha intenção pagar todas as minhas dívidas e readquirir as minhas antigas propriedades. Quis, porém, a fatalidade que tal não acontecesse.

Ao atravessar um pequeno e sombrio bosque nas margens do Elir, encontrei sentada sob uma grande árvore uma jovem de deslumbrante formosura. Os seus olhos azuis tinham um pouco do céu da Índia com os reflexos mais verdes do mar de Omã. As faces eram como as da terceira deusa do templo de Yhamã. Os lábios da linda criatura tinham um encanto a que talvez não pudesse resistir o faquir mais puro e mais santo da terra. Com essas comparações não exagero a beleza da desconhecida; ao contrário, fico muito aquém da verdade.

A jovem chorava. Os seus soluços vibravam em ondas de indizível angústia.

— Que tens, ó jovem? — perguntei-lhe carinhoso, aproximando-me dela. — Qual é o motivo do teu pranto? Se para o teu mal há remédio, dentro dos recursos humanos, certo estou de que saberei livrar-te de qualquer desgosto!

Isso eu dizia tendo sob um dos braços a preciosa caixa, cheia de cintilantes pedras que me dariam ouro, fama e poderio.

Sem interromper o seu copioso pranto, a jovem olhou com surpresa para mim, segurou com os lábios o belo manto de seda que lhe caía sobre os ombros, e, puxando-o para o lado, deixou a descoberto o colo e os braços mais alvos, ambos, do que as penas das garças sagradas de Hamadã.

Recuei horrorizado. A infeliz tinha as duas mãos cortadas junto aos pulsos!

— Ó desditosa criatura! — exclamei, a alma oprimida pela maior angústia. — Qual foi o bárbaro autor de tamanha crueldade? Conta-me a causa de tua desgraça, e fica certa de que poderás armar o meu braço com o ódio que a vingança te souber inspirar.

A desditosa jovem, entre soluços, narrou-me o seguinte:
= = = = = = = = = = = = =
continua…
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Notas
1 Vishnu = Uma das muitas formas que os hindus atribuem às divindades. Vishnu é representadopor dez formas diferentes.
2 Thalung = moeda de ínfimo valor.


Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.

Jaqueline Machado (Joana D'arc: a guerreira menina, mulher)


Ela nasceu como nascem todas as crianças. Veio ao mundo para ensinar como se vive, para ensinar como se batalha.

Ó Joana, criança querida, que por meio dos seus pensamentos, com os anjos conversava. E conversava porque sabia ouvir o seu destemido coração. Na sua breve juventude foi chamada para defender seu povo e com bravura seguiu o seu destino.
 
Tinha Joana, doce menina, que expulsar os ingleses que estavam tomando uma terra, uma pátria, uma história que não lhes pertenciam. Costume comum dos homens da Terra, desejar vitória por meio de ganância e conflito. Mas Joana não pensava assim. Foi feita de coragem, esculpida de estratégia para a justiça servir. Procurou a ajuda de um experiente guerreiro, que devia enviá-la até o Delfim. Mas ele não confiou na sua missão e, de princípio, negou apoio. Mas passados alguns dias, vendo os arredores de sua aldeia sendo sitiados pelos invasores ingleses, chamou por Joana, lhe deu cavalo, armadura e uma carta para ser entregue a Delfim. Chegando ao destino, ela contou de sua missão e o Delfim concedeu uma tropa para vencer o povo inimigo, devolver a coroa ao seu rei e libertar o seu povo.
 
Aos 18 anos, a menina se fez guerreira. Uma guerreira que protegeu o seu próprio rei e que foi capaz de derrubar as estratégias dos renomados generais para colocar em prática as suas, e com seus guerreiros vencer os quase invencíveis ingleses. Libertou Orleãs e viu o Delfim receber de volta a coroa que um dia foi a ele confiada, e que por suas dispersões a deixou cair no chão para que o inimigo a apanhasse e brigasse por ela como se tivesse algum direito.

A festa da coroação marcou um grande momento de glória da menina valente, que amou e confiou por inteiro na sua trajetória. Pouco depois Joana foi pega por Borgonheses, inimigos que a venderam para os ingleses e que a aprisionaram. Mesmo presa, ela continuou firme, certa de que tudo seria como deveria ser. Dali saiu para o tribunal. Na tribuna foi acusada por supostas práticas de bruxaria. Os juízes, a ela perguntaram três vezes qual era o seu pacto com o demônio. E por três vezes Joana acendeu a chama do seu coração dizendo que não tinha pacto algum com o mal. Era a sua chance de liberdade.

Porém, ao ouvir a sua sentença de morte, humanamente se viu numa enorme agitação. E com a sua voz doce disse que confessaria o que desejassem. Joana, sufocada em meio a tanta impiedade e injustiça. quase desistiu da luta. Mas os seus anjos não a abandonaram. E em verdade nem ela tinha os abandonado. Voltou atrás e se entregou à justiça.

Com os olhos fixos a uma cruz, incorporou o seu corpo às chamas de uma fogueira em plena praça. E naquelas chamas, renasceu. Joana que na ocasião em questão tinha apenas 19 anos, podia fugir e viver sua juventude, não fugiu. Persistiu, defendeu seu povo dos invasores. Ela que pelo fogo renasceu para todo sempre ser: Joana D'Arc, a guerreira menina, mulher!

Fonte:
Texto enviado pela autora.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Isabel Furini (Poema 35): A gatinha malhada e a idosa

 

Francisco Pessoa (A Menina e sua máquina)


Vivíamos um maio da década de sessenta. Não sei se 1962 ou 1963. A idade já me embaça a memória.

Carolina, uma taciturna menina-moça, tinha como hobby a arte de fotografar. Um vistoso diploma de curso de fotografia por correspondência — talvez pela importância que ela desse ao mesmo —, era o único enfeite de paredes que tinha em seu quarto. Aluna do curso ginasial, destacava-se entre os colegas por sua aplicação nos estudos. Em toda solenidade de encerramento do ano letivo, abiscoitava uma medalha de ouro. Já se somavam quatro que ela guardava com cuidado extremo, envolvendo-as numa flanela, escondendo-as da ação oxidante da temida maresia que se alastra por todo o Mucuripe.

Dois anos haviam passado que ela iniciara um tratamento clínico para controlar uma enfermidade cardíaca tipo congênita. Talvez o seu jeito reservado de ser se justificasse por isso. Sentia-se em plena felicidade quando nos finais de semana empunhava sua máquina e pegava carona no vento em busca de uma folha morta que flutuasse a esmo ou, quem sabe, de uma borboleta mesmo das não tão belas mas que se mostrasse repousando sobre uma linda flor. A morte e a vida eram fielmente registradas pelas lentes da sua Olympus.

A cada dia, aos menores esforços, um cansaço se fazia mais presente, tomando-lhe as rédeas do seu estado de saúde e de espírito. Ou seria, através da extensão do telefone, uma conversa entre seu médico assistente e sua mãe, Dona Allzira. Fez questão de abaixar o fone quando um ilativo "Só transplante" feriu seu tímpano e ecoou, magoando o âmago do seu ser.

Não frequentava mais a escola, a laureada aluna campeã de notas. Enclausurava-se. Abatida, esperava resposta para os seus insistentes "porquês" endereçados a Deus. Certo domingo, talvez o derradeiro, ombreou sua Olympus e, a passos lentos, tomou o rumo do vasto campo junto à sua casa em busca da foto tirada no momento certo, aquele em que uma folha se desprende do caule e voa e cai, assim como a borboleta que perdeu as asas.

No dia seguinte, partiria no momento certo, sem sua máquina.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXV


A água que dá vida aos rios
e ao mar, forma de oceano,
pode causar arrepios
no indefeso ser humano.
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A idade não vem sozinha,
sempre vem acompanhada,
bem vestida, tal rainha,
mas na essência, esfarrapada.
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As plantações não garantem
colheita farta e serena,
a menos que todos plantem
sementes de vida plena.
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A vida, Deus o homem veste
e uma advertência lhe faz:
– Da terra, um dia vieste
e à terra retornarás...
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Do teu papel, não te abstenha
de exercê-lo com orgulho,
embora o que desempenhas
só tenha papel de embrulho.
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Entre mistérios e enigmas
o homem se encontra repleto
e por não ter paradigmas,
segue um eterno incompleto.
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Fruto de longa amizade,
a amarga dor incontida,
resultado da saudade
que fica após a partida.
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Mata à dentro ou campo a fora,
mata e preda, o caçador,
por que não deixar a flora
com fauna e sem predador?
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Na terra, tal passarinho,
o homem voa em liberdade,
seu fim: construir um ninho,
nos ramos da eternidade.
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Ninguém nasceu para a morte,
mas essa o mundo lhe deu
vida, sempre um grito forte,
que nunca, o fraco escondeu.
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Ninguém parta sem destino,
ou temer nunca chegar,
seja mais que um paladino,
alguém sempre a labutar.
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No contexto da razão,
toda emoção se rebela,
por saber que a decisão
poderá não ser a dela.
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No inverno, pela invernada,
sob um tenebroso frio,
cobre a relva, a alva geada
e o bafo vindo do rio.
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Nunca menospreze as flores,
nem delas tenha ciúme,
Deus ao conceder-lhe as cores
também lhes cede o perfume.
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O homem cria muitas lendas
revestidas da verdade,
que não passam de legendas,
sem qualquer profundidade.
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Ouvindo a chuva incessante
caindo sobre o telhado,
lembra o campo verdejante
sendo por ela molhado.
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Pomos muralhas nas terras
temendo o bicho feroz,
não sei se os bichos são feras
ou, se as feras somos nós.
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Quando na comunidade
partilhar se torna um fato,
com certeza, à humanidade,
será dado outro formato.
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Quem teu gesto interpretar
que o faça com discrição,
para não se equivocar
na sua interpretação.
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Queres conhecer alguém?
Concede-lhe algum poder!
Verás, mais do que ninguém,
quem procuras conhecer.
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Se à dor faltam atenções.
pode a tensão se acirrar.
E a melhor das soluções
é impedi-la a conspirar.
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Se os ventos sopram trapaça,
e no campo há espessa bruma,
segue em frente e jamais faça
das caminhadas, mais uma.
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Se um quarto estiver trancado
nem hesite em vê-lo abrindo,
porque nele, sossegado,
pode alguém estar dormindo.
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Tem medo o homem ao partir,
mais temor sente ao voltar,
lembrando que ao repetir
volta à tona a dor de andar.
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Uma alternativa apenas
tens de mostrar teu valor,
é fazer de obras pequenas
enormes gestos de amor.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Ajuda


No topo de uma das colinas de Lisboa encontra-se o bairro da AJUDA . Entre a fresca brisa do Tejo e os rumores das árvores do Monsanto. Ruelas castiças e casario simples que tornam o bairro um dos mais agradáveis da capital.

Outrora, considerada arrebalde de Lisboa, e caracterizada pela floresta e pela atividade pastorícia, a Ajuda ficou, desde cedo, ligada à realeza, transformando-se numa zona onde se misturavam as residências aristocráticas e as moradias populares. Segundo a lenda, a Ajuda começou a ser povoada quando se espalhou a notícia de uma aparição da Virgem a um pastor que lhe tinha pedido ajuda. Os devotos chamaram-lhe Nossa Senhora da Ajuda e a Rainha Catarina, mulher de D. João lll, mandou erigir uma ermida no local da aparição.

A freguesia nasceu no século XVl, com características tipicamente rurais. Rebanhos e pastores deambulavam por aqueles campos e os moinhos davam um cunho particular à paisagem. Foi D. João V quem procedeu à aquisição de três quintas na zona de Belém. Passando, assim, a pertencerem à Coroa muitas das terras que hoje cercam a Calçada da Ajuda. Porém, só com D. José l se fixaria ali uma morada real, devido ao terremoto de 1755. O monarca levou um susto com os estragos no Paço da Ribeira e mandou construir uma morada em madeira, mas esta não resistiu e cedeu. Em 1802, foi mandado construir o Palácio da Ajuda. E tão majestoso era o projeto que, do plano primitivo, só foi construída uma das suas quatro fachadas.

Atualmente, é nos seus esplêndidos salões que se realizam os grandes banquetes e festas oferecidos pelo Chefe de Estado ao corpo diplomático ou a outros visitantes oficiais. Ao lado do palácio, ergue-se o “Galo da Ajuda”, torre sineira cujo relógio começou a trabalhar em 1776. Foi também depois do terremoto que o Marquês de Pombal mandou plantar o Jardim Botânico, o primeiro de Lisboa, datado de 1768. Neste espaço foram plantadas espécies vegetais desconhecidas da população citadina e que suscitaram a curiosidade de vários investigadores. Hoje, o jardim está sob os cuidados do Instituto Superior de Agronomia.

Desde 1934, o Ajuda Clube assumiu a responsabilidade pela organização da marcha popular da Ajuda, que é ensaiada no Pátio do Bonfim. É também neste pátio que se realiza, todos os anos, o arraial. Um acontecimento que já é característico das populações locais. O Ajuda Clube foi fundado em 22 de Outubro de 1912. A sua sede situa-se na Rua do Jardim Botânico, nº 02 e, ao longo dos anos, tem desenvolvido atividades na área do desporto e da cultura, merecendo especial referência o “caratê”, o futebol de salão, a dança jazz, o tênis de mesa e o grupo de teatro.

MARCHA DO BAIRRO DA AJUDA

Letra de Raúl Ferrão
Música de Raúl Ferrão

“Ajuda bairro modesto
Mora na parte mais alta
Dava da grandeza o gesto
Se tivesse o resto
Que ainda lhe falta
Se um dia a sorte muda
Adeus brilhante passado
Nem há esperança que o iluda
Se o bairro da Ajuda
Não for ajudado.

Não faz bem quem se demora
Nem quem vai cedo demais
Sei que vais à Boa-Hora
Mas vê agora
A que horas vais.
Passas ao pátio das Damas
E p’las Damas perguntas
Elas sabem que as não amas
Se por uma chamas,
vêm todas juntas.

Quem passar pelo Cruzeiro
E cruzar com os olhos teus
Acautele-se primeiro
Que há jogo matreiro
Nesses dois judeus.  
Quando vou p’lo miradouro
Ponho-me a mirar a rua
Não há por meu desdouro
Para meu namoro
cara como a tua.
(Refrão)

Ajuda é sempre bairro da alegria
Que a luz dia primeiro beija
Aonde a mocidade a golpes de vontade
Defende aquela graça que o bafeja
Conservar uma beleza primitiva
É tão altiva
que em nada muda
Seu nome anda a mostrar
Que é mau quem se gabar
Que nunca precisou ter uma ajuda “.

Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

Nilto Maciel (À Beira do Cais)


A lua bruxuleava nas ondas. Alfonso não parava de fumar, e a luz do cigarro às vezes semelhava outra lua. Figuras de contornos vagos surgiam e desapareciam nas águas. Sereias ou iemanjás. Quando apareceu Maria. Pediu cigarro e propôs beberem. “Besando al marinero que te quiere mármol amante nadador y puro, que por ti rasga el mar y en ti se muere.” Ela riu e gargalhou. Ora, não esperava conhecer naquela noite um estrangeiro.

Há muito tempo Alfonso Ordóñez se dedicava aos irmãos Pinzón. Acreditava em suas descobertas. Sobretudo no descobrimento do Brasil por seus compatriotas.

No bar pediu para sentar-se voltado para o mar, o cais. Ali, no Mucuripe, há 458 anos, Vicente Yáñez Pinzón plantou uma cruz. Maria riu de novo. Ora, tinha um irmão também chamado Vicente. Coitado, havia morrido. Plantaram-lhe uma cruz no lugar onde o mataram. A lua beijava o mar. A melodia das águas embalava os olhos de Alfonso. “!Rómpete, luna! En diez espejos rota...”

Chegado de Madri há poucos dias, Ordóñez planejava conhecer todo o litoral cearense, Aracati, o cabo Santa Maria de la Consolación e, sobretudo, pisar e fotografar a ponta do Mucuripe, o Rostro Hermoso, exatamente onde estiveram Vicente Pinzón e Diogo de Lope. No rádio um locutor driblava a língua com Garrincha, rolava bolas com Mazola, em delírio com Didi, êxtase nos pés de Pelé. No entanto, Maria bebia muito e anunciava o fim da noite. Junto ao bar havia uns quartos, e cama, sossego e banho. Pois, logo mais, José, seu homem, ressurgiria.

Alfonso bebia e falava, o tempo todo, de navegadores de antigamente. Escrevia um livro monumental — O Descobrimento do Brasil pelos Espanhóis.

Bêbados gritavam “Brasil, Brasil”. Mulheres pediam bebidas e se enroscavam nas pernas dos homens. Uma delas se pôs a dançar. Queria música. O jogo havia acabado. O dono do bar pôs um disco na vitrola: “Dolores Sierra vive em Barcelona à beira do cais”. Maria falava de dinheiro. Quanto o gringo lhe daria? Pois José não se conformava com ninharias. Chegava a surrá-la, quando ela não conseguia bom dinheiro.

Nas ondas do mar a lua bruxuleava ainda. Alfonso bebia e fumava e falava da cruz plantada por Pinzón. Ali, no Mucuripe, há 458 anos. No entanto, a seleção brasileira de futebol caminhava para a conquista da Copa do Mundo. “Viva o Brasil!”.

Maria não queria mais saber de antiguidades nem de futebol. Precisava ir logo para o quarto. José não gostava de muita conversa. Gostava dela, sim, porém do seu dinheiro também. Dolores Sierra um dia partiu para conhecer Dom Pedrito, que prometeu e não cumpriu. Aqui e ali ainda estouravam artifícios de fogo. Mulheres pediam bebidas aos homens. Os garçons corriam para lá e para cá. “Brasil, Brasil”. Dolores Sierra sorriu para um homem e ganhou a primeira peseta. Alfonso Ordóñez ria, de olho na lua. “Rostro Hermoso. ¿Qué mar hubiera sido capaz de no llorarte?”

E então Maria estremeceu. À porta do bar um vulto se plantou na penumbra, feito uma cruz de horror.
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N.A.: Os versos em espanhol são de Rafael Alberti, extraídos dos poemas “Narciso”, “El arquero y la sirena” e “Platko”, todos de Cal y Canto.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Varal de Trovas n. 571

 

Filemon Martins (Traquinices de Menino)


Quando meu pai se transferiu com a família da Vila de Morpará para Ipupiara, eu tinha apenas 7 anos de idade. Morpará fica às margens do Rio São Francisco e Ipupiara, antigo Jordão de Brotas, fica mais para o agreste da Chapada Diamantina. Criança, não foi difícil minha adaptação à nova vida, nova escola, novos amiguinhos, novas brincadeiras na pequena cidade.

Em Ipupiara meu avô Gasparino Martins era proprietário de algumas roças, onde plantava e criava algum gado. Entre outras, havia o chamado Sítio do seu Doutor, como a população o chamava. Era um paraíso para as crianças, quando tudo nessa fase da vida é uma festa. Ali me criei, brincando, correndo e chupando mangas, laranjas. Um pouco mais crescido veio a fase de capturar e criar pássaros em gaiolas, tipo canários, pássaros-preto e papagaios ou periquitos.

Tornei-me fabricante de dois tipos de armadilhas usadas no interior da Bahia: arapuca e enxó. A arapuca é feita com varetas de galhos de árvores e arame. A base deve medir aproximadamente 40cm X 40cm. Daí em diante as varetas vão diminuindo seu tamanho e afunilando até o teto da arapuca. Sempre amarradas com arame para não se soltarem com o movimento da possível presa. Objetiva pegar pássaros, inhambus, codornas, juritis... Já a enxó é feita com tábua de tamanho aproximado de 40cm x 16cm. Um buraco (escavação) na terra medindo mais ou menos 17cm x 17cm e profundidade de 40 a 50 cm. São colocadas em ambos os lados uma tira de madeira comprida e estreita com um preguinho que ultrapassa a madeira e se encaixa na tábua, de tal forma que fique flexível para se movimentar para baixo e para cima quando necessário. Essa tábua e as duas madeiras estreitas devem ficar rente a terra coladas com massa de barro.

Feito isso, testa-se a armadilha colocando-se um peso equivalente a uma ave no local que fica o buraco previamente preparado. A enxó deve se mover e jogar o peso dentro do buraco, voltando em seguida para a posição original. Por fim, coloca-se terra do próprio local para encobrir a tábua e enganar a presa. É adequada para capturar inhambus ou Nhambus, como se diz na Bahia, codornas, juritis, preás e eventualmente alguma coisa indesejável. Foi o que aconteceu comigo.

Essas atividades me obrigavam a levantar cedo para ver se havia capturado alguma caça, porque outros moleques invadiam o Sítio e poderiam, antes de mim, levar a caça. De longe você poderia ver se pegou alguma coisa na arapuca, devido ao seu formato, mas na enxó isso não acontecia.

Certa feita, lá cheguei para conferir e observei que a enxó havia se movido, o que significava que peguei algo. Olhei próximo a armadilha e não vi nenhum rastro de ave, mas havia sinais de que algo rastejante passou por ali. Entendi a senha e com cautela e medo fui descendo a tábua devagarinho.

Pronto. Lá estava toda enrolada uma cobra coral. Pedi socorro a um adulto para que a retirasse de lá. De imediato mudei minha armadilha para outro caminho. Hoje, sabe-se conforme especialistas, que há a coral falsa e a verdadeira, ambas parecidíssimas. Mas, como saber se é venenosa ou não? Prefiro, ainda hoje, sair correndo…

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 9 –


ASA BRANCA

"Em nossa terra já se houve a voz da pomba."
(Ct. 2.12)


Asa-branca do sertão,
Foste, um dia, aprisionada,
Impiamente lacerada,
Por abutre sanguinário;
Teu encanto fora em vão,
Tua meiguice deprimiu-se,
Teu espírito extinguiu-se,
- Este abutre é funerário.

A tristeza a dor suscita,
A campina chora a flor,
E saudade de um odor
Que se esvai em crime bárbaro.
Asa-branca, ressuscita!
Onde estás, ó ave rara?
Vem trazer doçura cara!
- Este abutre é sangue tártaro.

Asa-branca depenada,
- Que tragédia tenebrosa!
Esta garra criminosa
Faz do cão vil animal.
Tua candura - avermelhada...
Como é triste a tua face!
A vergonha é teu impasse!
- Este abutre é irracional.

Asa-branca, ressuscita!
Por ti chora a cachoeira,
Vê: Murchou a quaresmeira
Nas encostas dessas águas;
Até a pobre parasita
Abre os braços com ternura,
Esperando a rola pura
Vir calar as suas mágoas.
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ESTRELA D'ALVA
'"Mais deliciosos que o vinho são teus amores."
(Ct. 4.10)


O amor é sem fronteira,
Diz sempre o coração;
Fragrâncias seresteiras
- O amor é uma canção.

Mil dias são passados,
Momentos definidos;
No amor somos regados,
No amor fomos unidos.

E quando, em solidão,
Eu busco a luz que salva,
Contemplo na amplidão
A minha Estrela-d'alva.

Formosa é minha Estrela,
Igual não há no céu:
Eu quero sempre vê-la
Daqui do meu vergel.

Qual chama de uma vela,
Sou eu sempre a queimar;
Se não sonhar com ela,
Vou logo me apagar.

O olhar de quem me salva
Eu quero sempre ter;
Ó doce Estrela-d'alva,
Por ti vale o sofrer!

E eterna em pensamento
A Estrela em seu brilhar;
Mil preces - doce alento -
Nas ondas deste mar.
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MARÍLIA
"É gracioso o teu pescoço entre os colares de pérola.”
(Ct. 1.10)


... E tanto sonhou,
Donzela inocente,
Em ter um amor,
Sublime e clemente,
Que fosse exclusivo
Com muito calor,
De puro romance,
Só mesmo de amor.

Sonhou com amor,
Menina inocente,
E um novo Dirceu
Surgiu-lhe na frente,
Com seiva de vida
- Real salvador -
De puro romance,
Só mesmo de amor.

De um sonho visão,
Idílio de amor,
Beleza do lírio,
Rosáceas de odor.
Poema d'aurora,
Do autor juvenília,
Essência da ópera,
Oh, nova Marília!

O amor encontrou
Paixão neste amor,
Suspiros em versos,
Canção de louvor;
Se és a Marília,
Sou todo Dirceu,
Assino meu nome,
Marília, sou Eu!
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Marília: Personagem do romantismo poético de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), grande poeta da Inconfidência Mineira.
Dirceu: Personagem romântico da poesia de T. A. Gonzaga.
Juvenília: Obras ou escritos da mocidade de um autor.

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RECEIO
"Foge... como a gazela sobre os montes perfumados."
(Ct.8.14)

Dúvidas tenho e muito receio,
Quando te vejo fugindo assim;
Não há magia de olhar algum
Que possa, então, apresar-te a mim.

Chateado penso comigo mesmo,
Quando te vejo fugindo tanto:
E coração expulsando amor,
Que mal eu posso esconder meu pranto.

Que há contigo, meu grande sonho,
Pra estar assim a me repudiar?
Que crime foi que te cometi?
- Eu bem te quis... eu te quis amar.

Quando à tardinha caindo está,
Pra mim, voando, vem a saudade;
Sinto em minh'alma tua grande ausência,
Naquelas horas de eternidade.

Quando amanhece, nem posso crer,
Vou procurar-te - por Deus suplico;
Pra disfarçar este amor que dói,
Bem solitário a esperar-te eu fico.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.