segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Filemon Martins (Traquinices de Menino)


Quando meu pai se transferiu com a família da Vila de Morpará para Ipupiara, eu tinha apenas 7 anos de idade. Morpará fica às margens do Rio São Francisco e Ipupiara, antigo Jordão de Brotas, fica mais para o agreste da Chapada Diamantina. Criança, não foi difícil minha adaptação à nova vida, nova escola, novos amiguinhos, novas brincadeiras na pequena cidade.

Em Ipupiara meu avô Gasparino Martins era proprietário de algumas roças, onde plantava e criava algum gado. Entre outras, havia o chamado Sítio do seu Doutor, como a população o chamava. Era um paraíso para as crianças, quando tudo nessa fase da vida é uma festa. Ali me criei, brincando, correndo e chupando mangas, laranjas. Um pouco mais crescido veio a fase de capturar e criar pássaros em gaiolas, tipo canários, pássaros-preto e papagaios ou periquitos.

Tornei-me fabricante de dois tipos de armadilhas usadas no interior da Bahia: arapuca e enxó. A arapuca é feita com varetas de galhos de árvores e arame. A base deve medir aproximadamente 40cm X 40cm. Daí em diante as varetas vão diminuindo seu tamanho e afunilando até o teto da arapuca. Sempre amarradas com arame para não se soltarem com o movimento da possível presa. Objetiva pegar pássaros, inhambus, codornas, juritis... Já a enxó é feita com tábua de tamanho aproximado de 40cm x 16cm. Um buraco (escavação) na terra medindo mais ou menos 17cm x 17cm e profundidade de 40 a 50 cm. São colocadas em ambos os lados uma tira de madeira comprida e estreita com um preguinho que ultrapassa a madeira e se encaixa na tábua, de tal forma que fique flexível para se movimentar para baixo e para cima quando necessário. Essa tábua e as duas madeiras estreitas devem ficar rente a terra coladas com massa de barro.

Feito isso, testa-se a armadilha colocando-se um peso equivalente a uma ave no local que fica o buraco previamente preparado. A enxó deve se mover e jogar o peso dentro do buraco, voltando em seguida para a posição original. Por fim, coloca-se terra do próprio local para encobrir a tábua e enganar a presa. É adequada para capturar inhambus ou Nhambus, como se diz na Bahia, codornas, juritis, preás e eventualmente alguma coisa indesejável. Foi o que aconteceu comigo.

Essas atividades me obrigavam a levantar cedo para ver se havia capturado alguma caça, porque outros moleques invadiam o Sítio e poderiam, antes de mim, levar a caça. De longe você poderia ver se pegou alguma coisa na arapuca, devido ao seu formato, mas na enxó isso não acontecia.

Certa feita, lá cheguei para conferir e observei que a enxó havia se movido, o que significava que peguei algo. Olhei próximo a armadilha e não vi nenhum rastro de ave, mas havia sinais de que algo rastejante passou por ali. Entendi a senha e com cautela e medo fui descendo a tábua devagarinho.

Pronto. Lá estava toda enrolada uma cobra coral. Pedi socorro a um adulto para que a retirasse de lá. De imediato mudei minha armadilha para outro caminho. Hoje, sabe-se conforme especialistas, que há a coral falsa e a verdadeira, ambas parecidíssimas. Mas, como saber se é venenosa ou não? Prefiro, ainda hoje, sair correndo…

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

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