quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Labirintos de passagens)


ENQUANTO PEQUENO, tudo bem. Nada de anormal ou qualquer situação fora de controle que carecesse maiores cuidados. Os embaraços tiveram início quando, aos cinco anos, entrou para a escola pública da comunidade onde nascera. Logo na primeira semana, se descobriu superior. Tinha dentro de si trinta diabinhos marotos. Quebrou a cara de um garoto. Os pais foram chamados. A partir daí outras desavenças reboaram (1). Em face de sangue nas guelras, brigas e confusões constantes, precisaram mudar de endereço e, de estabelecimento de ensino. Não adiantou. Os engasgos foram juntos, grudados na pele, arrimados na alma, misturados no sangue, acorrentados no coração.

Nova transferência de localidade e de educandário. E o guri, impertinente, sempre que lhe chamavam, fosse para participar de “peladas”, um simples papo descontraído entre amigos na pizzaria, aos domingos, ou para estudos na biblioteca, a confusão, de pronto, se fazia presente e, pior, cada vez mais forte e acirrada.  Chegou então a fase do distanciamento. A ponto de coisa séria. Com isso, ninguém lhe dirigia a palavra. Todos lhe viraram os rostos. As meninas que nutriam por ele um sentimento mais forte, em vista de seu aspecto elegante impressionar mais que cartão de crédito sem limite de gastos, acabaram dando atenção a outros moleques.

O recuo constante e inevitável, passou de forte e mirrado para um divórcio litigioso, sério e agravoso. Do fraco espaçamento, às peripécias desandaram para as sendas do insuportável. Com o passar dos anos, virou egressão (2) disjungida (3). E, como tal, o mal não estancou. Ao oposto, evoluiu. Se fez pesado, áspero, malfadado, azarento e obviamente sem nenhuma previsão de retrocesso ou de reocupação ao estado normal. Um dia, aos quinze, na constância de amigos os mais diversos, convivendo sobre o chão de uma nova matrícula em sequência aos aprimoramentos dos estudos, conheceu o Bira7. Um adolescente que diziam as línguas ferinas, vivia em sociedade com as margens da lei. Seria tão endiabrado que se dependuraria num trapézio da altura de um prédio de dez andares, e o faria pelos dentes, sem usar rede de proteção.

Por conta, para completar, o piá (4) vivia envolvido com armas pesadas e tráfico de drogas. O infeliz lhe vendeu uma Ponto 40. Com ela, se sentindo seguro e dono de si, colocou no vazio da cabeça, a maligna ideia que rezava na sua cartilha particular.  “Se alguém vier me “tirar sarro” ou me motivar “a sair do sério”, em consequência do ataque ao meu patronímico, mandarei o infeliz para a cidade dos pés juntos, com passagem só de ida para a estação final situada nos quintos do inferno”. Aos dezoito, depois de ter ganhado uma partida de futebol (verdade seja dita, o rapaz jogava melhor que o atacante Neymar), um mané lhe fez um convite cordial.

Tomar com os demais partícipes das peladas, “umas cerveja” no restaurante do Gilmar”. O restaurante do Gilmar ficava na entrada do bairro onde fora morar sozinho, depois que resolveu sair definitivamente da casa dos genitores. Aceitou, de pronto o convite. Todavia, ao chegar na porta do estabelecimento, àquela hora cenário de atividades frenéticas, o Luizão Pescoço de Girafa (justamente o técnico que procurava e preparava os novos jogadores), ao vê-lo espichando os olhos em procura dos demais membros da galera, sem querer ofender, de boa, o chamou para a “rodada” onde se achavam reunidos. O grito estridente que o Luizão Pescoço de Girafa emitiu, ecoou como uma pedrada certeira em sua parte desumana, apesar do salão imenso se fazer envolto num mar de conversas e gargalhadas entrelaçadas às nuvens das fumaças dos cigarros consumidos:

— Ei, estamos aqui. Vem pra cá, Noa.

Bailou a gota que deu o salto quântico em seu lado obscuro, fazendo transbordar o copo cheio de ódio que trazia dentro de si. No instante seguinte, da sua lareira interior, crepitou um fogo enorme. Embebido em seus intuitos maléficos, um resto de serenidade se fez verter em fúria repentina. À respiração colérica, puxou da Ponto 40 que carregava na cintura e abriu fogo. Apesar das hordas (5) dos curiosos, a debandada se fez iminente e inesperada. Por conta dos disparos, os amigos, em alvoroço, e diante de uma ameaça de maior porte, trivializaram a cena. Vazaram, como se homiziados (6). Aqueles que se achavam mais próximos dos acessos fáceis, se projetaram para a calçada como prisioneiros tentando escapar de uma rebelião organizada aos reveses do “salve-se quem puder”.  

Outros, aos tropeços, correram para os banheiros. Alguns pularam janelas e meia dúzia se enfiou como possível, por debaixo das mesas. Apesar disso, um dos projéteis acertou a cabeça de Luizão Pescoço de Girafa. O infausto caiu morto, a face alegre repousando em meio a uma enorme poça de sangue. Alguém chamou a polícia. Noa saiu preso e algemado conduzido por vários militares às barbas da delegacia. À autoridade de plantão, Noa explicou ao ser inquirido, “não aguentava mais. Estava, na verdade, cansado de ser chamado de “barquinho””. O adjunto olhou para Noa meio enviesado. Sem entender bulhufas, pediu esclarecimentos:

— Como assim, meu rapaz?  Não entendi a sua colocação. Barquinho?!

Nesse interregno, veio de outra sala, a escrivã que lavraria o flagrante. Com a voz rouquenha conduziu Noa pelo braço:

— Meu rapaz, o delegado vai lhe fazer perguntas.  Se quiser ligar para algum parente, ou advogado, fique à vontade. O doutor é gente fina, apesar de transmitir a aparência de um gorila enjaulado.  Sorriu e, em seguida, apontou uma cadeira ao lado da mesa onde seu depoimento seria levado à termo:

— Venha pra cá, Noa. Senta aqui e fique à vontade...

Noa foi à espadilha (7). Virou fera. Ao invés de se acomodar, pulou, furioso e possesso no pescoço da agente:

— Canoa, sua vagabunda... canoa é a senhora sua mãe.
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Notas de rodapé:
1 – Reboaram – Ecoaram com estrondo, retumbaram de forma desordenada.
2 – Egressão – Afastamento, ou distanciamento.    
3 – Disjungida – Soltar, se desprender, se desanexar.
4 – Piá –  Moleque, criança, menino, guri.
5 – Hordas – Bandos de aventureiros, ou grupos de bêbados.     
6 – Homiziados – Aqueles que se escondem de alguma coisa, notadamente da justiça. 
7  – Espadilha – No sentido do texto, o personagem foi à espadilha. Foi à arma, partiu para o tudo ou nada. Termo usado por Gregório de Matos na “Crônica do Viver Baiano Seiscentista”, Editora Record, Rio de Janeiro 1992. O termo também se fez presente em “Várias histórias”, contos de Machado de Assis, em edição publicada em 1886.

Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

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