I
Uma noite o Leopoldo das Neves encontrou no Passeio Público o Viriatinho da Estrada de Ferro, um bom camarada que há muito tempo não via. E, como os dois amigos se encaminhassem para o terraço, o Viriatinho chamou a atenção do outro para uma bonita mulher que descia a escada em companhia de um sujeito gordo.
— Oh! diabo! é a Clotilde! exclamou o Leopoldo das Neves.
E, levando o amigo pelo braço, embarafustou com ele pela sombria alameda que contorna o lago.
— Que é isso? Foges daquela mulher?
— Como o diabo da cruz.
— Por que?
— Porque me amola; se me visse, eu seria amanhã obrigado a explicar-lhe o que vim fazer ao Passeio Público!
— Amola-te? Ora essa! Eis ali o caso de dizer que dá Deus nozes...
— Perdão, tenho muito bons dentes!
— Nesse, és difícil!
— A Clotilde não é o meu tipo.
— Pois é bonita como seiscentos diabos!
— Não nego! mas o meu ideal é outro. Quisera que a minha amante fosse alta, magra, loura, alva, de olhos azuis, e tivesse vinte e quatro anos, quando muito. Quisera também que fosse viúva, conhecesse um pouco a Europa, e, sem ser literata nem artista, gostasse das letras e das artes.
— Quiseras muitas coisas juntas!
— A Clotilde é o contrário de tudo isso: é mais baixa que alta, é mais gorda que magra, é morena, tem olhos castanhos, e já completou a idade exigida para a senatoria...
— Do Império?
— Não; da República. É a digna esposa daquele negociante anafado e suarento que viste passar; adormece no Lírico ouvindo o Otelo; dá o cavaquinho pelos cromos de Guimarães Ferdinando, e delicia-se com a leitura de Xavier de Montepin, — traduzido, note-se, porque nem ao menos sabe francês!...
— E as tuas relações com ela têm tido caráter platônico... ou... positivo?
— Ah, meu amigo, eu dei-lhe, infelizmente, amplo direito de perseguir-me...
— Maganão!
— Quem principiou fui eu. Que queres?... a curiosidade... o vício... a poesia do adultério... Como isso foi? Não sei. Um encontro numa soirée familiar... um aperto de mão mais forte... uma valsa... durante a valsa uma troca de lenços... no lenço dela um perfume capitoso e enervante... uma carta minha que ficou sem resposta... outra... outra ainda...outra, que foi respondida afinal... uma entrevista concedida depois de uma luta homérica entre duas fomes de beijos...
— Bonito!
— Uma entrevista em casa de uma cartomante da rua da Assembleia... Duas horas de prazer, e quatro anos de cativeiro e arrependimento!
— Quatro anos?
— Sim, meu Viriatinho, há quatro anos que isto dura; há quatro anos hipotequei a minha liberdade, o meu sossego, e o meu bom humor; há quatro anos vivo aguilhoado a essa mulher, que se encontra comigo de oito em oito, de quinze em quinze dias, furtivamente, às pressas, mas que me escreve todos os dias, e me atormenta com protestos, exigências, lamúrias, ameaças!...
E Leopoldo das Neves interrompeu a lista das impertinências de Clotilde, batendo violentamente com a bengala na relva:
— Quatro anos! Há quatro anos — calcula! — tenho o coração nas mãos, receoso de que de um momento para o outro o marido descubra tudo, ponha-a na rua a pontapés, e eu seja obrigado a ficar com aquela trouxa às costas!...
— Vejo que já não a amas.
— Nem nunca a amei. Foi um capricho... Quinze dias depois da nossa primeira entrevista em casa da cartomante, já eu me sentia farto e aborrecido!
Os dois amigos encaminharam-se para o terraço.
A noite estava esplêndida. Não havia luar, mas os astros brilhavam intensamente na profunda escuridão do céu. As ondas, derramando-se na praia, pareciam alvíssimas rendas franjando uma enorme colcha azul.
— Queres um conselho, Viriato? Foge das ligações dessa espécie.
— Ah! de que me serve o teu conselho?
— Por que?
— Aqui onde me vês, estou ralado de inveja!
— De inveja?
— Sim, confesso-te que guardo dentro esse sentimento ignóbil. Invejo a perseguição de que te dizes vítima e, — palavra! — tenho ciúmes, ciúmes incoerentes, dessa mulher que não é minha, que não conheço, apenas entrevi... Eu dava dez anos de vida — vê tu lá! — pelo prazer de entrar com ela furtivamente em casa de uma cartomante misteriosa e hospitaleira!
Leopoldo das Neves encarou fixamente o outro, e, depois de uma grande pausa, perguntou-lhe, segurando-o por um botão do casaco:
— Viriatinho, és meu amigo?
— Certamente.
— Queres prestar-me um grande serviço?
— Qual?
— Um serviço que não te será desagradável.
— Que ordenas tu?
O amante de Clotilde recuou uns passos, apontou para o lado da rua, e declamou o verso de D. Salustio: De plaire à cette femme et d’être son amant! (Para agradar esta mulher e ser seu amante!)
O Viriatinho soltou uma gargalhada tão cristalina e vibrante que chamou a atenção das pessoas que passavam.
— Não te rias! estou falando sério!...
— Mas isso é lá possível! Tirar-te do lance, eu!... E ela tão apaixonada por ti!...
— Conheço-a como as palmas das minhas mãos; dar-te-ei as instruções necessárias... Desde que estejas munido de todos os recursos estratégicos, desde que saibas como atacar a praça, a vitória não será difícil.
— Olha que sou um péssimo general!
— Deixa-te de modéstias! Vamo-nos embora... Pelo caminho irei te desenvolvendo o plano do ataque.
— Vamos lá!
Os dois amigos tomaram a direção da escada.
— Não calculas como vais ser útil! disse Leopoldo das Neves, descendo.
— “Útil inda brincando”, acrescentou Viriatinho, descendo também, e apontando para o desgracioso Cupido que desde 1783 dá de beber aos fluminenses.
II
Mês e meio depois desse encontro no Passeio Público, Leopoldo das Neves estava sozinho em casa, e sentia um aborrecimento de morte. Era uma noite chuvosa e fria. Tentou escrever, e não conseguiu alinhar quatro palavras; quis ler um livro interessante, que ainda não conhecia, e fechou o volume logo depois da segunda página; sentou-se ao piano, e sentiu as mãos pesadas como se fossem de chumbo. Acendeu um charuto, e deitou-se na cama a fio comprido, contemplando os bicos dos pés.
Tinham-se já passado quarenta dias depois que ele apresentara Viriatinho a Clotilde, numa soirée, em casa de um tal comendador Freixo. Leopoldo tratara Clotilde com muita indiferença, passando a noite a jogar o voltarete com o marido dela, um major de engenheiros e um médico. De vez em quando o Viriatinho lhe aparecia na sala de jogo, e, por gestos, o informava de que tudo corria às mil maravilhas.
Terminada a soirée, os dois amigos saíram juntos e, na rua deram cinquenta passos ao lado um do outro sem falar.
Leopoldo quebrou o silêncio:
— Então, César? Chegaste, viste e venceste?
Por única resposta o Viriatinho tirou da algibeira um pequenino lenço e apresentou-o a Leopoldo, dizendo:
— Vê se conheces este perfume.
— Bravo!... as coisas chegaram à cerimônia, meio maometana, da troca dos lenços?
— Tal qual como contigo. Primeiro que tudo, e modéstia à parte, não há dúvida que lhe fiz certa impressão. É que naturalmente me achou parecido com algum herói de Xavier de Montépin. O resto já tu sabes: uns olhares ardentes e expressivos... uns apertos de mão durante a primeira quadrilha... logo em seguida uma valsa, e a troca dos lenços... Depois de amanhã lhe escreverei uma carta...
Os dois amigos separaram-se, e, desde essa ocasião, Leopoldo não mais esteve com o Viriato. A correspondência de Clotilde cessou completamente.
Durante os primeiros dias ele sentiu-se feliz, aliviado — uf! — daquela pesada algema que durante quatro anos penosamente arrastara. Depois vieram-lhe... como direi?... remorsos. Recordava-se do passado; saudosas cenas se renovavam no seu cérebro inquieto.
Clotilde aparecia-lhe agora com toda a sua meiguice, como todo o seu ardor de mulher que fecha os olhos e se entrega resolutamente a um homem, como se mergulhasse no oceano. Depois, ele passou todas noites consecutivas a sonhar com ela: via-a muito alta, muito magra, muito loura, de olhos azuis, a tocar harpa, dizendo-lhe: — Aqui me tens! Agora, sim, agora sou o teu ideal!...
Naquela noite chuvosa e úmida, Leopoldo sentia-se mais do que nunca envergonhado do seu procedimento. Por fim de contas,. Clotilde era uma bonita mulher, e uma boa rapariga, que só tivera um defeito: amá-lo exageradamente. E que fez ele? Uma canalhice: entregou-a ao Viriatinho, ao Viriatinho da Estrada de Ferro, um pulha, uma besta que com certeza não saberia apreciá-la.
O ingrato monologava esta interrogação terrível: — Já teriam indo à rua da Assembleia? — quando ouviu bater à porta.
Foi abrir. Era o Viriatinho, que entrou alegre e radiante.
— Está chovendo: tinha certeza de encontrar-te em casa. Venho trazer-te notícias da minha conquista... Fomos hoje à cartomante!...
Leopoldo estremeceu, teve um sorriso contrafeito, e agarrou-se a um móvel para não cair.
— Arre! Custou! Escrevi nada menos que de seis cartas! As três primeiras ficaram sem resposta. Afinal foi ela própria quem me indicou o bom retiro da rua da Assembleia... Talvez o mesmo quarto, hein?
— Talvez...
— Olha: sobem-se duas escadas... abre-se uma grade de pau... entra-se num corredor… primeira alcova à direita... com uma janela que dá para uma área... Embaixo uma casa de fumos... É isso?...
As palavras de Viriatinho penetravam no coração de Leopoldo das Neves como outras tantas punhaladas. O pobre diabo teve ímpetos de agarrar uma bengala, e por pela porta a fora, a pauladas, o seu substituto; mas — que diabo! — o culpado de tudo não tinha sido ele próprio?... ele próprio não lhe indicara os meios de seduzir Clotilde?... não era esse o resultado fatal de uma combinação infame, proposta espontaneamente por ele?...
O Viriatinho observou:
— Mas... valha-me Deus! acho-te assim a modo de contrariado... Estás arrependido?
— Eu?... que ideia!... murmurou Leopoldo sufocado; que ideia!...
— Olha, se queres que te diga, acho que tinhas muita razão... A Clotilde é bonita, isso é, mas que mulher vulgar, que espírito acanhado!... Não tem por onde se lhe pegue!...
— Não te dizia? acudiu vivamente Leopoldo, regozijado por essa opinião; a Clotilde não vale nada!
— Sabes? não estou disposto a aguentar aquilo quatro anos, como tu... Nada! na primeira ocasião desfaço-me dela! Quis apenas prestar-te um serviço, e folgo de ter sido “útil inda brincando”.
Alguns minutos depois, o Viriatinho saiu, e Leopoldo das Neves ficou aniquilado pelo desgosto.
Foi para o seu quarto de dormir, abriu um armário, e tirou um vidro de perfumaria, o extrato predileto de Clotilde, há três anos esquecido no fundo daquele móvel. Ensopou o lenço, aspirou longamente aquele perfume “capitoso e enervante” como se quisesse anestesiar-se; depois, atirou-se à cama, enterrou a cabeça no travesseiro, e numa crise de nervos, começou a chorar desesperadamente, soluçando o nome dela.
Passou assim toda a noite.
III
Ela enviuvou há um ano. Eles casaram-se há seis meses.
Quando se encontram com o Viriatinho da Estrada de Ferro, fingem que o não conhecem.
Fonte:
Artur de Azevedo. Contos Fora da Moda. Publicado originalmente em 1894,
Artur de Azevedo. Contos Fora da Moda. Publicado originalmente em 1894,
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