O marido - que era um santo marido, como todos os enganados - deixou o escritório mais cedo e passou no "Seu Morais" para comprar sorvete de gabiroba, uma das taras de sua mulher. A mulher tinha muitas, mas o marido pensava que a única tara dela fosse sorvete de gabiroba.
Então o marido chegou e foi entrando em casa sem assobiar, o que é um perigo. Todo marido enganado devia entrar em casa assobiando, para evitar certas coisas, mas os maridos enganados que ainda não sabem não assobiam, é lógico e por isso mesmo ele entrou sem assobiar.
Estava colocando o sorvete no freezer (a surpresa seria na hora do jantar) quando ouviu a voz da mulher lá dentro. Ela dissera qualquer coisa e depois dera uma gargalhada, dessas gargalhadas assanhadinhas que certas mulheres dão quando o marido não está perto. Ele estranhou aquilo e foi até o quarto, onde encontrou Leonor deitada na cama, seminua, falando ao telefone.
A mulher, quando viu o marido, ficou com um ar assim meio sobre o de quem achou mosca no pirão. Logo se recompôs de fisionomia, e se dizemos de fisionomia é porque o resto ficou à mostra. Foi o marido, pouco depois, que teve o cuidado de dobrar o lençol por cima dela, escondendo o principal.
Antes, entretanto, ficou ali, parado na porta, sem entender direito, com aquele olhar ausente que crioulo faz quando vai andando pela rua com rádio transistor colado ao ouvido.
A mulher - dizia eu - recompôs-se com certa facilidade e continuou a falar no mesmo tom de voz:
- Mas, Regininha, essa anedota que você acabou de me contar é ótima!... e riu de novo, mas já sem aquele leve tom sexy da primeira risadinha que ele ouvira lá da cozinha, de gabiroba na mão, isto é, com o sorvete aquele.
Tirou um lenço do bolso, limpou os dedos e veio sentar na beirinha da cama, enquanto a mulher dava-lhe um adeusinho e continuava a conversar pelo telefone:
- Pois é isso, Regininha... nós precisamos marcar uma biriba para uma noite destas. Não, Regininha. O quê, Regininha? Tá bem, Regininha.
O marido pôs-se a sorrir de si mesmo. Por um momento suspeitara da pobre mulher. Não sabia explicar por que. Apenas, quando ouvira a sua voz, sentiu um leve calafrio a percorrer sua espinha, desde a nuca até a ZM (Zona Morta). Talvez porque não fosse aquele o tom de voz que sua mulher usava para o trivial havia já muito tempo. Mas, agora, tudo se dissipava. Era a Regininha.
- Você leu o artigo de Jacinto de Thormes de ontem, Regininha? - continuava a mulher: - Divino, Regininha, simplesmente divino.
Foi nesse pedaço que ele a cobriu com o lençol.
- Então tá, Regininha. Ele vai bem. Acaba de chegar aqui. (TAPANDO O FONE.) - Está mandando um abraço para você. OK, Regininha. Outro para você, Regininha.
E, ao desligar, antes que o marido abrisse a boca, tentou explicar o óbvio:
- Era a Regininha.
Deram-se um beijo mixuruca e o marido já ia para o banheiro, quando a campainha da porta tocou.
Era a Regininha.
Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Rosamundo e os outros. Publicado em 1963.
Stanislaw Ponte Preta. Rosamundo e os outros. Publicado em 1963.
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