ENCONTRO
O personagem de Lúcio Cardoso hospedou por algumas semanas o personagem de Cornélio Pena. Nunca se viam, porque um dormia pela madrugada e o outro ao anoitecer. Não se encontravam à mesa, mas ambos diziam “bom dia”, sozinhos, referindo-se ao companheiro.
O personagem de Guimarães Rosa, encontrando aberta a porta da casa, entrou, não viu ninguém, deu tiros para o alto. Um buriti cresceu na sala de jantar, a vereda fluiu suas águas. Os personagens de Lúcio e de Cornélio acudiram ao mesmo tempo, surpresos. Ouviu-se a viola de Miguelão entoar modinhas do Urucuia. Todos beberam muito, e a noite acabou em antologia mineira, com ilustrações de Poty.
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EPISÓDIO VENEZIANO
A duquesa de Arrivabene apaixonou-se por um gondoleiro de Veneza e, para não deixá-lo um só momento, acompanhava-o no trabalho. Frequentemente manejava o remo, deixando a cabeça do namorado repousar em seu colo alabastrino.
Era ciumenta a duquesa, e Paolo tinha de recusar passageiras cujo sorriso parecia demasiado promissor. Com o tempo, nem mais os homens eram admitidos na gôndola, que vogava ao sabor do capricho feminino, entre beijos que se diria capazes de inflamar a água do canal.
Paolo, exausto, quis fugir, mas sua amante ameaçou afundar com ele e com a embarcação, em derradeiro enlace amoroso.
A gôndola envelheceu, os dois também. Se já não se amavam como antigamente, é porque tinham chegado a formar uma só individualidade, meio carne meio madeira. Um dia o barco afundou, levando consigo os dois amantes, não se sabe se ainda vivos ou mumificados. Desde então os gondoleiros temem o amor das duquesas e preferem não transportá-las, pretextando que a gôndola está com defeito.
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EXCESSO DE COMPANHIA
Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.
Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.
Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.
— Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.
Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
O personagem de Lúcio Cardoso hospedou por algumas semanas o personagem de Cornélio Pena. Nunca se viam, porque um dormia pela madrugada e o outro ao anoitecer. Não se encontravam à mesa, mas ambos diziam “bom dia”, sozinhos, referindo-se ao companheiro.
O personagem de Guimarães Rosa, encontrando aberta a porta da casa, entrou, não viu ninguém, deu tiros para o alto. Um buriti cresceu na sala de jantar, a vereda fluiu suas águas. Os personagens de Lúcio e de Cornélio acudiram ao mesmo tempo, surpresos. Ouviu-se a viola de Miguelão entoar modinhas do Urucuia. Todos beberam muito, e a noite acabou em antologia mineira, com ilustrações de Poty.
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EPISÓDIO VENEZIANO
A duquesa de Arrivabene apaixonou-se por um gondoleiro de Veneza e, para não deixá-lo um só momento, acompanhava-o no trabalho. Frequentemente manejava o remo, deixando a cabeça do namorado repousar em seu colo alabastrino.
Era ciumenta a duquesa, e Paolo tinha de recusar passageiras cujo sorriso parecia demasiado promissor. Com o tempo, nem mais os homens eram admitidos na gôndola, que vogava ao sabor do capricho feminino, entre beijos que se diria capazes de inflamar a água do canal.
Paolo, exausto, quis fugir, mas sua amante ameaçou afundar com ele e com a embarcação, em derradeiro enlace amoroso.
A gôndola envelheceu, os dois também. Se já não se amavam como antigamente, é porque tinham chegado a formar uma só individualidade, meio carne meio madeira. Um dia o barco afundou, levando consigo os dois amantes, não se sabe se ainda vivos ou mumificados. Desde então os gondoleiros temem o amor das duquesas e preferem não transportá-las, pretextando que a gôndola está com defeito.
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EXCESSO DE COMPANHIA
Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.
Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.
Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.
— Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.
Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
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