segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Athos Fernandes ( Caderno de Poemas) 2


DESEJO INÚTIL


Eu sinto às vezes um desejo ardente
de percorrer as ruas da cidade,
e abraçar toda a gente,
num transporte sincero de amizade!

E de estender as minhas mãos cansadas
a todos que encontrar pelo caminho.
Às almas desgraçadas,
e aos que ostentam riqueza ou pergaminho!

E de dizer aos cresos e aos mendigos,
à porta dos palácios e choupanas,
que os quero como amigos
na identidade das paixões humanas!

Mas... quem, deseja as minhas mãos vazias?
Quem as quer estreitar nas suas mãos?
Tão só nas fantasias
ricos e pobres podem ser irmãos.

Num mundo de misérias e temores,
de tão tremendas lutas sociais,
os homens sofredores
como os dedos das mãos, não são iguais!
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NO PALCO DA VIDA

Na infância as travessuras são ruidosas...
Correr, brincar, ter sonhos multicores,
ir ao pomar colher frutas cheirosas
e nas escola zombar dos professores!

Depois, a mocidade! Enfim, garbosas,
as almas vivem desejando amores,
sorrindo sempre à vida, esperançosas,
vendo em tudo no mundo lindas cores.

Por fim, quando a velhice vem chegando,
em nossos corações vão-se abrigando
a nostalgia atroz e o desengano...

Foi-se o viço das folhas tão queridas!
Vem a morte ceifando nossas vidas,
neste palco de dor - descendo o pano!
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NUNCA MAIS

Viver só por viver, sem escopo, sem mira,
vazio de ideais, indigente de beijos,
imune o coração de afeto e de desejos,
quem há que em tal estado a morte não prefira?

Apátrida do amor, pobre vate sem lira,
nuvem que não tem céu, fonte sem rumorejos,
para que serve a asa a quem não tem adejos,
de que vale a vestal a quem não tem pira?

Eis o que me restou, saudosa amada minha!
Pois que ao partir levaste as ilusões que eu tinha
deixando-me a sofrer tormentos infernais...

E a sentir, como Poe, sobre o busto de Palas,
no silêncio do quarto ou no esplendor das salas,
negro corvo augural grasnando o “Nunca mais!”
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SE QUERES SER FELIZ

Se queres ser feliz, basta-te crer somente
e a ventura virá bater à tua porta!
Quem crê supera o Mal! E o resto pouco importa,
pois só vive feliz o que feliz se sente!

O que passou, passou. Cuidemos do presente,
já que é ele tão só que agora nos conforta.
Há, por falta de fé, tanta gente morta,
tanta gente infeliz, amigo, tanta gente!...

O futuro será conforme nossa crença:
bem melhor ou pior, segundo o preparemos
pela força da fé ou pela indiferença.

E o amor também virá, - no momento propício,
na exata proporção do quanto o merecemos,
como prêmio do bem ou cruz de sacrifício.
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TEMPO-VIDA

Todos nós temos na vida
tempo certo de viver...
E a gente, despercebida,
gasta o tempo sem prever
que toda hora perdida
sem algo de bom fazer,
mais rasa torna a medida
do bem que iremos colher
na hora da despedida,
quando é tempo de morrer!

Toda esperança falida
não torna a enriquecer,
tal como a flor ressequida
não logra reverdecer;
- assim, também, nossa vida
ao que foi não volta a ser.
Mal principia a partida
já se começa a perder.
Contra o tempo, na corrida,
ninguém consegue vencer!

Se a árdua luta intimida,
é bom ninguém se esquecer
que a fé sempre dá guarida
àquele que sabe crer.
Que a virtude apetecida
é ter gana no querer,
é ser forte na descida,
é ser justo no poder.
Quem malversa o Tempo-Vida,
tempo algum merece ter.

Fonte:
Athos Fernandes. Shangri-La: Poesias. Publicado em 1979.

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