História de um povo triste e de um rei que se viu ameaçado por uma terrível profecia. Neste capítulo vamos encontrar um rei que só criou juízo no dia em que resolveu enlouquecer.
I
Conta-se que existiu outrora, na Índia, entre o Indo e o Ganges, um país tão grande que uma caravana, para atravessá-lo de um extremo ao outro, era obrigada a repousar setenta e sete vezes.
Era esse país governado por um rei, chamado Talif, filho de Camil, Camil filho de Ludin, Ludin filho de Maol, o Forte.
Certo dia, o rei Talif chamou o seu grão-vizir Natuc e disse-lhe:
— Tenho notado, meu bom amigo, que os meus súditos, desde o mais humilde remendão ao mais opulento e prestigioso emir, de há algum tempo a esta parte, andam todos tristes e abatidos. Desejo vivamente saber qual é a causa dessa epidemia de tristeza e abatimento que oprime meu povo!
— Rei magnânimo e justo — respondeu o judicioso Natuc — que o Distribuidor (1) vos conceda todas as graças que mereceis! Sou forçado a dizer-vos a verdade, embora tenha certeza de que ela vai causar-vos grande desgosto! O povo anda triste e abatido porque dentro de poucos dias deverá ser festejado em todo o reino o trigésimo quinto aniversário de vossa existência!
— Pelo manto do Profeta! — exclamou o rei Talif. — Que absurdo é este? Não vejo que relação possa existir entre o meu aniversário e a melancolia dessa gente!
— Bem sei que ignorais ainda — explicou o grão-vizir — que esse dia tão ansiosamente esperado, do vosso aniversário natalício, será para o reino o mais calamitoso do século!
— Calamitoso? Positivamente, ou tens o juízo fora da cabeça, ou terás, em breve, a cabeça fora do corpo. Já vai a tua audácia além do que eu poderia tolerar.
— Espero, ó rei magnânimo, me perdoeis a licença das expressões ao contar-vos a razão delas.
E o dedicado Natuc narrou ao soberano da Índia o seguinte:
— Uma semana depois do vosso nascimento, mandou o saudoso rei Camil, sobre ele a bênção de Alá!, chamar o famoso Ben-Farrac, o sábio astrólogo de maior prestígio do mundo, e pediu-lhe que lesse nas estrelas visíveis e nos astros invisíveis do firmamento o futuro de Talif, o novo príncipe do Islã. O grande Ben-Farrac, sobre ele a misericórdia de Alá, depois de consultar os voos dos pássaros, as constelações e a marcha dos planetas mais propícios, declarou que o filho de Camil subiria ao trono aos vinte e um anos de idade, e durante quatorze outros governaria, com agrado de todos, o novo reino herdado de seu pai. No dia, porém, em que completasse trinta e cinco anos, o rei Talif seria acometido de um ataque de loucura! Se ao atingir essa idade fatal, escrita no céu pelos astros luminosos, não apresentasse o rei sintomas de demência, uma grande e indescritível calamidade, que não pouparia nem mesmo as palmeiras do deserto, devastaria o país de norte a sul! E até agora, ó rei do tempo! Não houve uma só previsão de Ben-Ferrac que fosse tida por falsa ou errada. O povo tem assistido já a realização completa de várias delas!
E, depois de pequena pausa, o grão-vizir continuou:
— Eis aí, glorioso senhor, a causa da tristeza de vossos dedicados súditos. No próximo dia do vosso aniversário seremos vítimas de uma desgraça: ou a loucura apagará para sempre a luz de vossa inteligência, ou uma calamidade, que ainda não teve igual na história, devastará o país de norte a sul!
O bondoso rei Talif, ao ter conhecimento desse triste augúrio que pesava ameaçadoramente sobre seu futuro, ficou tomado da mais profunda tristeza e sentiu invadir-lhe o coração piedoso uma onda de amargura.
— Bem triste é a minha sina! — lamentou o rei depois de longo e penoso silêncio.
— Certo estou, ó vizir, de que não poderei fugir aos decretos irrevogáveis do destino. Apelo, meu amigo, para o teu esclarecido espírito e longa experiência! Não haveria um meio de atenuar-se a grande desgraça que paira presentemente sobre o meu povo e sobre mim mesmo?
— Só vejo um meio — respondeu sem hesitar o grão-vizir — e nele venho pensando há muito tempo. Segundo a previsão formulada pelo astrólogo, se ficardes louco no dia do vosso aniversário, o país não mais terá a temer futuras calamidades. Assim sendo, no dia do vosso natalício, logo pela manhã, fingireis, por vários atos absurdos, que o destino vos privou da luz da razão. Não deveis, porém, com a simulada loucura, deixar que desapareça, ou mesma diminua, a confiança que o povo deposita em vós. Para isto, penso que os vossos atos de falsa demência deverão ser de molde que não tragam qualquer perigo ou a menor perturbação à vida dos vossos súditos. O povo depressa poderá verificar que o rei, apesar de louco, continua a exercer o governo do país com justiça e tolerância. É preferível, poderão dizer todos, um rei demente, piedoso e justo, a um soberano de espírito lúcido, mas perverso e vingativo! E, assim, a vida de todos nós continuará, como até agora tem sido, calma, tranquila e feliz!
— Grande e talentoso amigo! — exclamou o rei Talif, movido por sincero entusiasmo — Como admiro a tua sagacidade, como aprecio a tua dedicação! É, na verdade, uma solução admirável para o meu caso; fazendo-me passar por louco farei com que se realize a terrível previsão do maldito astrólogo, e restituirei a calma e o sossego ao meu povo!
E desta sorte, tendo assentado com o grão-vizir os planos para a curiosa farsa que devia representar — fingindo-se louco —, ordenou o rei Talif que o seu trigésimo quinto aniversário fosse condignamente festejado em todas as cidades e aldeias do reino. Chegado que foi o dia, todos os vizires, nobres e ricos mercadores foram, conforme o tradicional costume, levar as felicitações e os votos de prosperidade ao régio aniversariante.
Ordenou o rei Talif fossem os seus ilustres homenageantes conduzidos à sala do trono e recebeu-os de pé, tendo numa das mãos uma caveira e à cintura longa corrente de ferro a cuja extremidade vinha presa uma figura, feita de barro, que representava um gênio infernal de horripilante aspecto.
Os ricos, nobres e vizires, ao verem a estranha e descabida atitude do rei Talif, concluíram logo que o soberano da Índia havia enlouquecido. Aqueles que ainda tinham dúvida sobre o desequilíbrio mental do rei depressa se convenceram da dolorosa verdade, quando o ouviram declarar que estava resolvido a caçar elefantes no fundo do terceiro mar da China!
E quando um dos honrados vizires ponderou sobre as dificuldades de tal empresa, o rei pôs-se a enunciar frases sem nexo.
— Qual peso é excessivo aos esforçados? Que é diante ao perseverante? Que país é estranho aos homens da ciência? Quem é inimigo dos afáveis?
— Está louco o rei! — murmuraram todos. — De dois males o menor. Estamos livres da calamidade que devia devastar o país de norte a sul!
E o povo festejou nesse dia, com demonstrações de grande alegria, o trigésimo quinto aniversário do rei Talif, apelidado o Louco.
Desde logo, porém, compreenderam todos que a branda loucura do rei Talif em nada prejudicava a marcha natural dos múltiplos negócios do governo. Na verdade, os atos provindos da demência do monarca eram inofensivos. Ora decretava o casamento de uma palmeira com um coqueiro, ou assinava uma lei ridícula pela qual tomava posse de uma parte da Lua, ou de uma nuvem pardacenta do céu.
Quis Alá, o Exaltado, que o inteligente plano concebido pelo talentoso grão-vizir Natuc desse o melhor resultado. O país continuou a prosperar e o povo da Índia vivia tranquilo e feliz, embora tivesse no trono um rei privado da luz da razão.
II
Um dia, afinal, inspirado talvez pelo Demônio (Alá persiga o Maligno!), resolveu o rei Talif sair do seu palácio, disfarçado em mercador, a fim de ouvir o que diziam a seu respeito os homens do povo.
Bem oculto por hábil disfarce, entrou num grande khã (2) onde se reuniam, à noite, viajantes, peregrinos e aventureiros, vindos de todos os cantos. Um cameleiro, que se achava a seu lado, murmurou com voz pesarosa:
— Pobre do nosso rei Talif! Depois do seu último aniversário ainda não recuperou a razão! Ainda hoje praticou nova insensatez! Concedeu o título de emir ao rio Ganges!
— Meus amigos — replicou um velho de venerável aspecto, que fumava silencioso a um canto. — Creio bem que o povo deste país anda treslendo! Estamos diante de um dos casos mais singulares que tenho observado em minha vida. Julgam todos que o rei Talif enlouqueceu no dia em que completou trinta e cinco anos, mas exatamente o contrário sucedeu! Foi nesse dia, precisamente, que o soberano recuperou o juízo!
— Como assim? — perguntaram os mais curiosos. — Não é possível! Como explicar os disparates e as ridículas decisões do rei?
— Já observei — continuou o ancião — que os últimos atos praticados pelo rei são inofensivos e servem apenas para divertir o povo. Antes, porém, de seu último aniversário, o rei Talif só procedia como louco ditando leis que eram profundamente prejudiciais aos interesses e ao bem-estar do país!
E, ante a admiração de todos, o velho hindu continuou:
— Não se lembram daquela estrada que o rei, há dois anos, mandou abrir, pelas montanhas de Chenab? Foi isto um ato de inconcebível loucura, visto como a tal estrada, que tantos sacrifícios nos custou, lá está abandonada sem utilidade nem valor algum. E aquele grande castelo mandado erguer no meio do lago de Magdalane? Foi outro ato de insânia do nosso soberano. Na primeira cheia do lago as águas invadiram impetuosamente a ilha e derrubaram todas as obras de arte que já estavam quase concluídas!
O bom monarca, que tudo ouvia, pálido de espanto, sentia-se obrigado a reconhecer que as palavras do desconhecido eram a expressão da verdade. A estrada e o famoso castelo tinham sido, realmente, erros lamentáveis de sua administração.
— E não foi só — acrescentou ainda o velho. — Há cerca de três anos o rei Talif mandou demitir o governador de Bhavapal, homem honesto e digno, para pôr no lugar um nobre protegido, que fora sempre um sujeito desonesto e mau. Só um rei insensato é que procede assim! E mais ainda. De outra feita o rei Talif, a pretexto de aumentar o salário dos servidores do reino...
Não quis o rei Talif continuar a ouvir a análise imparcial que o velho hindu fazia de todos os erros que ele praticara. Sem proferir uma só palavra, levantou-se e saiu vagarosamente do khã.
“É singular e espantoso”, pensava ele, enquanto vagava a esmo por vielas desertas e mal iluminadas. “É espantoso e singular o que sucedeu comigo! Creio bem que sou fraco para governar o meu povo. E no tempo em que julgava ter perfeito juízo pratiquei tantas loucuras, o que não terei feito agora que resolvi passar por demente?”
Absorto em profunda meditação, voltava o rei para o palácio quando, ao atravessar uma praça, encontrou um árabe que chorava desesperado sentado junto a uma fonte.
— Que tens, meu amigo? — perguntou-lhe o monarca. — Qual é a causa de tua grande tristeza?
O desconhecido, sem reconhecer na pessoa que o interrogava o poderoso rei da Índia, respondeu:
— Sou um infeliz, ó muçulmano! Há perto de um ano que procuro falar ao rei Talif e não consigo chegar à sala do trono nos dias de audiência pública.
— E que queres dizer ao nosso bom soberano? — insistiu curioso o rei hindu. Respondeu o desconhecido:
— Quero transmitir-lhe uma importante mensagem que recebi há tempos de meu saudoso pai, o astrólogo Ben-Farrac!
E, como o rei quedasse pouco menos que atônito ao ouvir o nome do fatídico astrólogo, o árabe continuou:
— Pouco antes de morrer, meu pai chamou-me e disse: “Meu filho, vou contar-te uma história singular intitulada: ‘O Rei Insensato’. Peço-te que repitas fielmente essa história ao rei Talif, quando o nosso monarca festejar o trigésimo quinto aniversário. Se, por qualquer motivo, não atenderes a este meu pedido, que tem unicamente por fim salvar o rei, serás mais infeliz do que o mais desprezível dos mamelucos!”(3) Eis a causa do meu desespero; não vejo um meio de chegar à presença do rei Talif, filho de Camil, e receio que a maldição paterna venha a pesar sobre mim!
Ao ouvir tais palavras, não mais se conteve o rei Talif. Arrancando, no mesmo instante, as grandes barbas postiças e a negra cabeleira que lhe alteravam completamente a fisionomia, apresentou-se ao filho do astrólogo no seu verdadeiro aspecto, e gritou-lhe enérgico e ameaçador:
— Fica sabendo, ó infeliz!, que eu sou Talif, o rei. Exijo que me contes imediatamente essa história que para transmitir-me ouviste, há tantos anos, de teu pai, o astrólogo Ben-Farrac!
O árabe, ao reconhecer naquele simples e modesto mercador a pessoa sagrada e respeitável do rei, ajoelhou-se humilde, beijou a terra entre as mãos e assim falou:
— É bem possível, ó Rei do Tempo, que o simples conhecimento da narrativa a que me referi seja suficiente para causar graves e profundas alterações em vossa vida. Desse momento em diante, porém, os nossos destinos estão ligados por laços inquebráveis. Tal é a sentença ditada pela sabedoria do astrólogo Ben-Farrac, meu saudoso pai. Sereis, ó glorioso Talif, responsável pela minha vida e, mais ainda, responsável também pela vida de meus filhos e de meus amigos mais caros.
— Afirmo, sob juramento — declarou, logo, o rei —, que nada farei de mal contra ti, nem contra qualquer amigo ou parente teu!
— Agradeço-vos a inestimável garantia que as vossas palavras traduzem — retorquiu o filho do astrólogo. — Vejo-me, entretanto, forçado a exigir outro penhor e outra segurança de vossa parte.
— Que segurança é essa? — indagou nervoso o monarca aproximando-se de seu jovem interlocutor.
— O aviso que me cumpre fazer — explicou o enviado — é o seguinte: não deveis, sob pretexto algum, interromper a narrativa que, dentro de breves instantes, vou iniciar. Graves e desastrosas seriam as consequências de um gesto de impaciência ou protesto de vossa parte.
— Juro, pelas cinzas de meus antepassados — retorquiu gravemente o monarca —, que ouvirei a tua narrativa em absoluto silêncio!
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continua…
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Notas
1 Distribuidor – Um dos muitos nomes com que os muçulmanos se referem a Alá.
2 Khã — lugar onde se reúnem viajantes e mercadores.
3 Mameluco ou mameluj – escravo. O plural seria mamelik.
Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.
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