Marcelo foi transferido para Mutarara, cidade que ficava para além de todo outro lugar. A mulher, Nurima, ficou sozinha, tomando conta das coisas e da restante vida. A espera é uma tecedura, a gente cria presenças com materiais de ausência. Os dedos de Nurima desinventavam dias, em desconto de saudades. A esposa: habituada, não habitada.
Até que, uma certa tarde, chegou de Mutarara a inesperada visita. Era Florlinda, familiar sem parentesco certo. Entrou, sentou, espraiou aqueles silêncios que antecedem as grandes falas. Depois, disse:
— Quero lhe avisar: há cartas.
Nurima não entendeu mas aparentou impavidez. Não é de bom tom reclamar faltas de entendimento. Mandam as boas normas que se aguarde, pondo silêncios em fila indiana. Nurima esperou que a visitante se explicasse. Florlinda, de fato, prosseguiu: que havia cartas circulando entre as mulheres de Mutarara. Essas cartas relatavam sobre Marcelo, o solitário marido.
— Marcelo? E o que dizem essas cartas?
— Nem deseje saber, Nurima. Essas cartas são uma ameaça para a senhora e sua pessoa.
Então, ela versou sobre o conteúdo das missivas: pedia-se nesses escritos que as mulheres, as mais belas de Mutarara, amassem o dito Marcelo. Pedia que o tratassem nas palmas e nas mãos, que lhe adocicassem a vida e lhe entornassem as mais melosas ternuras. Nurima enxugou a garganta mas não exibiu gesto nem desgosto. No fim de uma pausa, inquiriu:
— E Marcelo, ele sabe dessas cartas?
— Do que posso testemunhar, a vida dele é serviço e casa, tudo a horas pontuais.
E as duas, tu-aqui, tu-ali, se colocaram a par. O tempo se antecipou e a noite encerrou a conversa. Nurima, na despedida, deixou sussurrar uma ansiedade:
— Me avise, se encontrar caso disso.
— Vou pensar numa maneira de travar essas cartas. Fique tranquila.
Nurima lhe segurou o pulso querendo, quiçá, confessar alguma intimidade. Mas ela ficou às portas do corpo, sem chegar a dizer nada. E a visitante se adentrou na noite.
Passaram-se semanas e Florlinda revisitou a amiga. Beberam chá, pilaram assuntos de nenhuma importância. Fingiam não haver um tema, ignoraram o nó em suas gargantas. Até que Florlinda, resoluta, lhe expôs o seu plano para eliminar a pouca vergonha de tais cartas. Ela relatou suas maquinações, divertindo-se com detalhes.
Nurima não acompanha o entusiasmo da amiga, estranhamente ausente. Até que interrompeu Florlinda:
— Não faça nada disso.
— Mas, então, e Marcelo, seu marido?
— Não faça nada, lhe peço... Deixe as cartas sossegadas.
— Mas como posso deixar?
— Eu lhe explico. Fui eu que escrevi essas cartas.
— Você, Nurima?
— Sim, fui eu que as envelopei e as enviei, por mão de um qualquer miúdo, a todas essas mulheres.
— Você? E porquê fez isso?
— Porque o meu Marcelo é um homem bom. Tão bom, tão doce que não merece castigo de ausência.
— E se ele escorregar com alguma dessas inavergonhadas?
— Se isso acontecer ele irá descobrir, no final, que nenhuma mulher lhe ama tanto como eu.
Florlinda está indeferida para juízo. Ela despondera, sacode a cabeça, encolhe os ombros. À despedida, confessa:
— Nurima: quero dizer uma coisa. Mas prometa que não se zanga.
— Zangar? E porquê?
— Porque eu fui essa mulher, a primeira a receber a carta fui eu. E eu, Nurima... nessa noite mesmo, eu dormi com seu marido.
— Eu já sabia, Florlinda. Soube isso desde sua primeira visita.
— Eu vim porque.. .
Nurima, maternamente, lhe cola o dedo sobre os lábios. Um mando de silêncio, para que a outra não prossiga. Mas tudo desempenhado com carinho como se não restasse senão oculta gratidão.
— Eu sei por que você veio...
Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.
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