quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Artur de Azevedo (A cozinheira)


Capítulo I

Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia.

— Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! - Maricas!

Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente - e interpelou-a:

— Então, o jantar.

— Pois sim, espera por ele!

— Alguma novidade?

— A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo!

Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias!

— Diabo! dizia ele irritadíssimo; diabo!

E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinquenta escadas à procura de uma cozinheira!

Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! — Papapá! — Quem bate! — Foi aqui que anunciaram uma cozinheira? — Foi, mas já está alugada. — Repetiu-se esta cena um ror de vezes!

— Vai a uma agência, aconselhou Maricas.

— Ora muito obrigado! — bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior.

E enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador...

— Oh! como é lindo! exclamou extasiada diante de uma magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto!

E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava-se beijar friamente, repetindo sempre:

— Diabo! diabo!...

— Não te amofines assim por causa de uma cozinheira.

— Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra.

— Se queres, irei; não me custa.

— Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo.

Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse:

— Ora, adeus! Vamos jantar num hotel!

— Apoiado! Em qual há de ser?

— No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada.

— Está dito: vamos ao Daury.

— Vai te vestir

Às oito horas da noite Araújo e Maricas voltaram do Daury perfeitamente jantados e puseram-se à fresca.

Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso.

Às dez horas recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas.

À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la.

A uns cinquenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou à medida que o dono da casa se afastava...

Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou...

Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos.

Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois entrava numa casinha de aparência pobre.

Capítulo II

Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada. O esposo deu-lhe o beijo convencional , um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa.

— Venho achar-te acordada: isso é novidade!

— É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças.

— Oh, senhor! é sina minha andar atrás de cozinheiras!

— Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra.

— Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas!

Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente:

— E o meu chapéu? perguntou; compraste-o?

— Que chapéu?

— O chapéu que te pedi.

— Ah? já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado...

— É que o outro já está tão velho...

— Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois...

— Bom... quando puderes.

E adormeceram.

Logo pela manhã a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira. Os pequenos ficaram na escola.

Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico.

A amante vivia num bonito chalé, a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali os guardanapos eram de linho; aqui os lençóis de algodão. Na rua do Matoso havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão muitas vezes faltava o necessário.

Araújo prontamente arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e à meia noite encontrou a esposa muito satisfeita:

— Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira!

— Sério?

— Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa.

Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola.

— Eh! eh! meu amo, é vosmecê que é dono da casa?

Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas!

— Cala-te, diabo! Não digas que me conheces!

— Sim, sinhô.

— Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein?

— Mentira sé, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora!

— Oras essa! Por que?

— Ela me xingou pro via das compra, e eu ameacei ela de dizê tudo a vosmecê.

— Tudo, o que?

— A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vosmecê sai.

— Cala-te! disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho.

O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem dona Ernestina.

Tomou juízo e vergonha.

Fonte:
Artur de Azevedo. Contos Fora da Moda. Publicado originalmente em 1894,

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