Todo bairro tem suas histórias, seus mitos, seu fabulário. O nosso Jardim Nazaré ou Palha Seca não foge à regra.
Recentemente, ao ver uma notícia inusitada circulando na internet, lembrei-me de uma história acontecida por cá, nos estertores finais da década de oitenta. Que o leitor me permita relatar aqui esta resenha na qual nosso Renato é tão somente um reles coadjuvante...
Em frente à minha casa morava com sua família cidadão de fácil amizade, mineiro como minha mãe, dado porém a uma vida irregular, mantida à base de escambos (o famoso troca-troca de mercadorias). Era um passarinho por uma carroça, uma carroça por uma geladeira e mais um dinheirinho de volta, uma geladeira por um trezoitão capenga da Taurus... E assim esse “malandro”, na boa acepção do termo, ia sobrevivendo.
Para auxiliar nas despesas trazidas pelos quatro filhos (um rapaz, duas moças e uma menininha quase temporã), o bom vizinho abrira uma vendinha, uma birosca, uma “barraca”, como chamávamos, naqueles idos, aqueles pequenos comércios de bairro.
Ao lado disso, o nosso empreendedor palhassequense, desconhecedor ou desrespeitador da lei, esse misto de salvaguarda social e grande estraga-prazeres, resolveu iniciar, dentro de sua casa e no convívio de sua família, uma, depois duas mesas de jogo. Isso mesmo: o homem das transações resolvera instalar um “cassino” em pleno Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica purrinha, jogos que eram praticados à exaustão, indo por vezes madrugada adentro, e sempre valendo dinheiro.
Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga, sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua casa... Nosso anti-herói Renato foi um dos tais a escapulir – ou ser ejetado para a sarjeta da rua – liso, tesado e como veio ao mundo...
Bem, toda essa confraternização era regada à muita cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos. Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra um caldo ou mocotó.
Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má) sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada: Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O benemérito dissera ter matado três das galinhas do quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.
Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza, bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua própria sala – também se serviram a gosto.
Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir, na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali, um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém, sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes fornira com tão saboroso e farto repasto:
– Ô Gambá, você não vai comer não?
Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo alegou:
– Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava cozinhando. Tô legal...
– Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você chegou não comeu nada, e sempre come bem...
– Que nada, meu cumpadre, comi bastante em casa mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu, bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.
Ao longo de todo o seu período de permanência ali no “estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto, um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo) era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.
Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o embriagado Gambá, que passara da conta habitual valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida, emendou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de porco...
Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande e encardida panela, estando todos já afogados nos humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o argumento de Ciço:
– Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem um pedaço...
Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva eu diria, brincadeira:
– Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne que preparei para vocês não era bem das galinhas da mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que matei ali na Ponte Caída.
E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença pudessem manifestar suas máscaras características na audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel entregou a sordidez de alguns detalhes:
– Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na panela de pressão! – completou, explodindo numa gargalhada carnavalesca.
Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo. Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma grande brincadeira.
Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a única porta do casebre...
O que se seguiu foi uma prolongada sessão – desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel, medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais.
Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou forças para o linchamento; talvez do próprio Satã. Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na rua de chão.
Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais deveria passar pela rua principal do Palha Seca – justamente o único caminho que ele tinha para ir trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão dura – mas saborosa, alguns depois o confessaram – carne.
Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e anos andando não dois, mas (agora na direção contrária) coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula, onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.
Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma, nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de humor de seus antigos companheiros de jogatina...
Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
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