terça-feira, 11 de outubro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (No tapa)


O GILBERTO VENESIANO e a sua mulher Penélope, resolveram, antes de embarcarem para a casa da filha (que havia ganho o primeiro bebê) darem uma passadinha no dentista. Como ficariam fora, pelo menos uns quinze dias, rumaram para o consultório do especialista. Na sala de espera, amargaram uns quarenta minutos em face de um cliente que precisou colocar às pressas dois dentes interinos em vista de tê-los perdidos numa briga de vizinhos.

Estavam, pois, às portas de desistiram da empreitada, quando, finalmente, a secretária mandou que entrassem:

— O doutor Cunegundes os espera. Queiram me acompanhar, por favor. Desculpem a demora.

Assim que se viram diante do estilista bucal, Penélope, soltando fogo pelas ventas, se adiantou e botou as mãos nas cadeiras, fazendo pose de mandona:

— Doutor Cunegundes, ouça com muita atenção. Quero que atenda a um pedido meu...

O doutor Cunegundes, até aquele instante, calmo e sereno, como sempre, se abriu em mesuras:

— Bom dia para a senhora também, dona Penélope — respondeu sorrindo. Claro que atenderei ao seu pedido. Aqui o cliente tem sempre razão. Obviamente, se a sua requisição a ser feita estiver ao meu alcance...

Dona Penélope não tinha papas da língua. Era uma criatura chata, avoada, sem noção. Sem se importar com o bom dia do doutor, a mulher alterou ainda mais a voz, se fazendo meio que descontrolada e fora de si:

— Tenho certeza que o senhor acatará o que tenho em mente...

Sem mais delongas, a mulher voltou a encarar o odontólogo dentro dos olhos. Mantendo a voz tonitruante esclareceu:

— Seguinte. Arranque esse maldito dente que lhe trouxe na mais profunda aflição. Todavia, desde logo, torno claro o desejo veemente de passar bem longe da anestesia. Não quero nenhum paliativo para estancar a dor. Estamos entendidos?    

Em resposta, o doutor Cunegundes coçou a cabeça. Diante da estranha solicitação da cliente observou, meio que ressabiado:

— Dona Penélope, entenda. Sem o procedimento da anestesia, a senhora sofrerá o diabo. Sem levar em conta que poderá passar mal, desmaiar... precisar ser levada para um hospital. Perceba, não é um simples pedido, como a senhora colocou. A coisa não funciona bem assim.

— Não importa — vociferou a mulher. Assumo as consequências do meu ato. Vamos em frente. Sem anestesia...

— Posso saber da senhora, pelo menos, os motivos da tal dispensa?  Acaso medo da agulha?

— Doutor —, estou... desculpe, estamos, eu e meu marido, com muita pressa. Entende, agora, o motivo da minha, digo, da nossa afobação desordenada? Pior, meu nobre, da maldita e intrépida impaciência que nos acelera os fundilhos da alma e as pregas do coração?

O dentista franziu o cenho. Boquiaberto e sem ação, se viu, de repente, no mato sem cachorro:

— Por certo eu entendo a sua situação... mas dona Penélope, eu...

— Doutor Cunegundes... por favor, sem qualquer outro argumento que por ventura possa querer trazer à baila.

Fez uma parada básica e acrescentou:

— Estamos com o tempo apurado. Sem contar o desrespeito de quase uma hora, ou mais, que mofamos como duas múmias paralíticas sentadas na sua recepção e a sua secretária, colada na droga do celular, sequer nos ofereceu uma água, menos ainda um café...

O doutor Cunegundes procurou aparentar uma serenidade que começava a voar longe de seus brios. Por dentro, tinha a impressão que explodiria:

— A senhora quer um café?  Seu Gilberto, aceita uma água?

Dona Penélope se adiantou de novo e retrucou, se contrapondo ao consorte:

— Doutor Cunegundes, o Gilberto não quer nada. Nem eu. Somente que o senhor faça o seu trabalho.

— Sem anestesia?

— Fui bastante clara quanto a isso. Como disse, e volto a frisar, sem anestesia. Estamos, como diria, meio que desembestados.  Queremos que nos livre do incômodo do dente, que cobre pelo seu trabalho e nos libere. A essa altura, deveríamos estar quase chegando ao nosso destino.

O doutor Cunegundes, perdeu, de vez a paciência. Nessa fase do campeonato, se mostrou deveras nervoso. Na verdade, além do semblante completamente desfigurado, danou a tremular as mãos. “Que mulher encapetada, essa”. Pediu licença, foi ao banheiro e lá, depois de beber um copo de água e um calmante forte com o restante de café da garrafa, se preparou para o atendimento:

— Quero que saiba, de antemão, a coisa vai doer horrores. A senhora sofrerá o diabo. Confesso, estou pasmo, dona Penélope. Devo acrescentar que a senhora é muito corajosa. Parabéns pela sua bravura e sangue frio.

Tirou do bolso um lenço, secou o suor, se benzeu:

— Sente-se, por favor. Seja o que Deus quiser. Qual é o dente?    

Dona Penélope, então se virou para o marido e, com um sorriso bailando nos lábios sensuais, se dirigiu a ele e mandou a ordem:

— Gilberto, meu amor, o doutor vai, enfim, nos levar a sério. Eu sabia que não criaria nenhum tipo de embaraço. Lembra do que lhe falei, quando vínhamos para cá? Que o doutor Cunegundes é cabra da peste e porreta...

Dona Penélope fez uma breve pausa. Estava satisfeita. A sua vontade, com a anuência do especialista a deixou acesa e saltitante. Para não perder mais nenhum segundo, concluiu, a sua fala, observando:

— Além de porreta, o nosso doutor tem convicção e sabe que os clamores vindos de clientes antigos, não podem ser contestados. OK, meu ilustre doutor. Nosso bate papo se estendeu além do tempo que eu havia previsto.  Gilberto, meu amor, seja macho. Senta na cadeira e mostra o dente “dodói” para o nosso salvador da pátria.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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