terça-feira, 11 de outubro de 2022

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) XLVII


NÃO TRAGAS FLORES, QUE EU SOFRO

 
Não tragas flores, que eu sofro...
Rosas, lírios, ou vida...
Tênue e insensível sopro.
O céu que não olvida!

Não tragas flores, nem digas...
Sempre há de haver cessar...
Deixa tudo acabar...
Crescem só urtigas.
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NÃO VENHAS SENTAR-SE À MINHA FRENTE, NEM A MEU LADO
 
Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.
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NA PAZ DA NOITE, CHEIA DE TANTO DURAR
 
Na paz da noite, cheia de tanto durar,
Dos livros que li,
Que os li a sonhar, a mal meditar,
Nem vendo que os vi,
Ergo a cabeça estonteada
Do lido e do vão
Do ler e vazio que há e quis na noite acabada -
Não no meu coração.
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NAS ENTRESSOMBRAS DE ARVOREDO
 
Nas entressombras de arvoredo
Onde mosqueia a incerta luz
E a noite ocupa a medo
O incerto espaço em que transluz…
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NÁUSEA. VONTADE DE NADA
 
Náusea. Vontade de nada.
Existir por não morrer.
Como as casas têm fachada,
Tenho este modo de ser.

Náusea.  Vontade de nada.
Sento-me à beira da estrada,
Cansado já no caminho
Passo pra o lugar vizinho.

Mas náusea.  Nada me pesa
Senão a vontade presa
Do que  deixei de pensar
Como quem fica a olhar...
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NA VÉSPERA DE NADA
 
Na véspera de nada
Ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada
Durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via,
Ninguém aqui chegou.

Mas talvez não chegar
Queira dizer que há
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.
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NA VÉSPERA
 
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,  
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!  
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros  
Por isto tudo, ter pensado o tudo  
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens!  Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

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