– Sua ama está em casa, rapariga?
– Está, sim, senhor. Tenha a bondade de dizer quem é.
– Diga-lhe que é a pessoa que ela espera para jantar.
– Ah! Pode subir… Minha ama vem já.
Entrei e reconheci a saleta, onde eu dantes fora recebido tantas vezes pela viuvinha do general.
Quanta recordação! Vira-a uma noite no Clube de Regatas; apresentou-me um jornalista então em moda; dançamos e conversamos muito. Ao despedir-nos, ela, com um sorriso prometedor, disse-me que costumava receber às terças-feiras os amigos em sua casa e que eu lhe aparecesse.
Fui, e um mês depois éramos mais do que amigos, éramos amantes.
Adorável criatura! simples, inteligente e meiga. No entanto, o meu amor por ela fora sempre um tanto frouxo e preguiçoso. Aceitava e desfrutava a sua ternura como quem aceita um obséquio de cortesia. Teria eu porventura o direito a recusá-la?…
Mas, assim como nasceram, acabaram os nossos amores; uma ocasião cheguei tarde demais à entrevista; de outra vez lá não fui; depois esperei-a e ela não se apresentou; até que um dia, quando dei por mim, reparei que já não era seu amante.
Seis meses já lá se iam depois disto, e eis que uma bela manhã, ao levantar-me da cama, entregaram-me uma carta.
Era dela.
Meu amigo.
Sei que conserva as minhas cartas e peço-lhe que me as restitua. Venha jantar comigo, mas não se apresente sem elas. É um caso sério, acredite.
São vinte. Não me falte e conte com a estima de quem espera merecer-lhe este último obséquio.
Afianço que será o último. Sua amiga,
LAURA.
Para que diabo queria ela as suas cartas?… Teria receio de que as mostrasse a alguém?… Impossível!
Principiavam-me estas considerações, quando se afastou a cortina da saleta e a viuvinha do general surgiu defronte de mim.
– Com efeito! disse ela. Só assim o tornaria a ter em minha casa! Bons olhos o vejam!
Beijei-lhe a mão.
– Trouxe?… perguntou.
– Suas cartas? Pois não! Bem sabe que para mim as suas ordens são sagradas…
– Ainda bem. Sente-se.
Sentamo-nos ao lado um do outro. Ela recendia uma combinação agradável de cananga do Japão e sabonete inglês; tinha um vestido de linho enfeitado de rendas; e na frescura aveludada do seu colo destacava-se um medalhão de ônix.
– Então, que fantasia foi essa?… interroguei, depois de um silêncio em que nos contemplamos com o mesmo sorriso.
E no íntimo já estava gostando de haver lá ido. Achava-a mais galante; quase que me parecia mais moça e mais bonita.
– Que fantasia?…
– A de exigir as suas cartas…
Ela fez do seu meio sorriso um sorriso inteiro.
– Tinha receio de que alguém as visse?… perguntei, tomando-lhe as mãos entre as minhas.
– Não! Suponho-o incapaz de tal baixeza…
– Então?…
– Mas para que deixá-las lá?… Está tudo acabado entre nós.
E retirou a mão.
Eu cheguei-me mais para ela.
– Quem sabe?… disse.
Laura soltou uma risada.
– Você há de ser sempre o mesmo!… Não se lembraria de mim se não recebesse o meu bilhete, e agora… Tipo!
– Não digas tal, que é uma injustiça!
– Espere! Tire a mão da cinta! Tenha juízo!
– Já não te mereço nada?…
– Deixe em paz o passado e tratemos do futuro. Eu quero que você seja meu amigo…
Dizendo isto, erguera-se e fora abrir uma janela que despejava sobre o jardim.
– Está então tudo acabado?… Tudo? inquiri, erguendo-me também, e envolvendo-a no meu desejo, que ela fazia agora reviver, maior do que nunca.
É que incontestavelmente o demônio da viuvinha estava muito mais apetitosa. Nunca tivera aqueles ombros, aquele sorriso tão sanguíneo e aqueles dentes tão brancos! Seus olhos ganharam muito durante a minha ausência, estavam mais úmidos e misteriosos, quase brejeiros! O seu cabelo parecia-me mais preto e mais lustroso; a sua pele mais pálida, com uma cheirosa frescura de magnólia. Todos os seus movimentos adquiriram inesperada sedução; e o seu quadril havia enrijado de um modo surpreendente; o seu colo tomara irresistíveis proeminências que meus olhos cobiçosos não se fartavam de beijar.
– Então, tudo acabado, hein?…
– Tudo!
– Tudo? tudo?…
– Absolutamente!
– Para sempre?
– Você assim o quis, meu amigo! Queixe-se de si!
Ia lançar-lhe as mãos e fechá-la num abraço; ela, porém, desviou-se, ordenando-me com um gesto muito sério que me contivesse, puxou duas cadeiras para junto da janela e pediu-me que a ouvisse com toda a atenção.
– Sabe por que lhe exigi as minhas cartas?…
– Por quê?
– Porque vou casar…
– Como? A senhora disse que ia casar?!
– Dentro de dois meses.
– Com quem, Laura?
E fiquei também eu muito sério.
– Com um negociante de madeiras.
– Um madeireiro?
Ela meneou afirmativamente a cabeça; eu fiz um trejeito de bico com os lábios e pus-me a sacudir a perna.
– Está bom!
– Que quer você?… Uma senhora nas minhas condições precisa casar!…
– Ora esta! Um madeireiro!…
– Que me ama muito mais do que você me amou, tanto assim que está disposto a fazer o que você nunca teve a coragem de imaginar sequer! E juro-lhe meu amigo, que saberei merecer a confiança de meu marido! Serei em virtude o modelo das esposas!…
Olhei-a de certo modo.
– Não seja tolo! – disse ela em resposta ao meu olhar.
E fugiu lá para dentro, sem consentir que eu a acompanhasse.
Só nos tornamos a ver meia hora depois, já a mesa do jantar.
– E as cartas? reclamou ela.
Tirei o maço do bolso, desatei-lhe a fitinha cor-de-rosa que o atava; contei as cartas, estavam todas as vinte metodicamente numeradas, com as competentes datas em cima escritas em letra boa.
Mas não tive ânimo de entregá-las.
– Olhe! disse, trago-lhas noutro dia… Se as restituir agora, que pretexto posso ter para voltar cá?…
– Hein? Como? Isso não é de cavalheiro…
– Não sei! Quem lhe mandou ficar mais sedutora do que era?
– Está então disposto a não entregar as minhas cartas?…
– E até a servir-me delas como arma de vingança!
Laura franziu a sobrancelha e mordeu os beiços.
Tínhamos já cruzado o talher da sobremesa e bebíamos, calados ambos, a nossa taça de champanhe.
O silêncio durou ainda bastante tempo. Ela só o quebrou para perguntar, muito seca, se eu queria mais açúcar no café.
E continuamos mudos.
Afinal, acendi um charuto e arrastei minha cadeira, para junto da sua.
– É melhor ser minha amiga… segredei passando-lhe o braço na cintura.
– Não desejo outra coisa, balbuciou ressentida e magoada. Peço-lhe justamente que me proteja como amigo, em vez de pôr obstáculos ao meu futuro. Que diabo! eu preciso casar!…
– Eu lhe entrego as cartas… Descanse.
– Então dê-mas!
– Com a condição de prolongar a minha visita até mais tarde…
– Mas…
– E fazermos um pouco de música ao piano como dantes. Está dito?
– Jura que me entrega depois as cartas?…
– Dou-lhe a minha palavra de honra.
– Pois então fique.
Às onze e meia, Laura apresentou-me o chapéu e a bengala.
Repeli-os e declarei positivamente que não lhe entregaria as cartas, se ela não me concedesse por aquela noite, aquela noite só gozar ainda uma vez dos direitos que dantes o meu amor me conferia tão solicitamente.
Ela a princípio não quis, mostrou-se zangada; mas eu insisti, supliquei, jurei que seria a última vez, a última!
E não saí.
Pela manhã, depois do almoço, Laura exigiu de novo as suas cartas.
Tirei o pacotinho da algibeira, abri-o, contei dez.
– É a metade. Aí ficam!
– Como a metade?…
– Pois, Laura, você me acha tão tolo que te entregasse logo todas as tuas cartas?… E depois, em troca do que te pediria que prolongasse um outro jantar como o de ontem?…
– Isso é uma velhacada!
– Que seja!
– Estou quase não aceitando nenhuma!
– Daqui a uma semana vir-te-ei trazer as outras dez. Está dito?
Daí a uma semana, com efeito, lá ia eu, com as dez cartinhas na algibeira, em caminho da casa de Laura. E nunca em minha vida esperei com tanta ânsia a hora de uma entrevista de amor. Os dias que a precederam afiguraram-se-me intermináveis e tristes. A viuvinha também se mostrava ansiosa, quando menos por apanhar as suas cartas.
Mas, coitada! não recebeu as dez, recebeu cinco.
Pois se a achei ainda mais arrebatadora nesta segunda concessão que na primeira!…
E na seguinte semana recebeu apenas duas cartas, e nas outras que se seguiram recebeu uma de cada vez.
Ah! mas também ninguém poderá imaginar a minha aflição ao desfazer-me da última! um jogador não estaria mais comovido ao jogar o derradeiro tento! Eu ia ficar completamente arruinado; ia ficar perdido; ia ficar sem Laura, o que agora se me afigurava a maior desgraça deste mundo!
Arrependi-me de lhe ter dado dez logo de uma vez e cinco da outra. Que grande estúpido fora eu! Esbanjara o meu belo capital, quando o podia ter feito render por muito tempo!…
Então o espectro do madeireiro surgiu-me à fantasia, como eu o imaginava: bruto, vermelho, gordo e suarento. E Laura, ao meu lado, no abandono tépido da sua alcova sorria triunfante, porque tinha rasgado o único laço que a prendia a outro homem. Estava livre!
Rasguei a carta ao meio.
– Tratante!
– Aqui tem, disse passando-lhe metade da folha de papel. Ainda me fica direito a um almoço e metade de uma noite em sua companhia… Peço-lhe que me deixe voltar..
Ela riu-se, e só então reparei que meus olhos estavam cheios d’água.
– Queres que te passe de novo o baralho?… perguntou-me enternecida, cingindo-se ao meu peito.
– Se quero!… Isso nem se pergunta!
– Mas agora é a minha vez de pôr a condição…
– Qual é?
– Só tornaremos a jogá-lo depois de casados, serve-te?
– E o madeireiro? Ele não tem cartas tuas?
– Tranquiliza-te que, além de meu marido, eu só amei e escrevi a um homem, que és tu!
– Pois aceito com todos os diabos! E, como ainda tenho jus a um almoço, não preciso sair já!
Uma semana depois, Laura dizia-me à volta da igreja:
– Mas, meu querido, como queres tu que eu te mostre uma pessoa que não existe ?.
– Como não existe?… Então o teu ex-noivo, o célebre madeireiro, cujo retrato trazias no medalhão de ônix…
– Qual noivo! Aquela fotografia é de um jardineiro que tive há muitos anos e que morreu aqui em casa.
– Então tudo aquilo foi…
– Foi o meio de arrastar-te para junto de mim, tolo! e reconquistar o teu amor, que era tudo o que ambicionava nesta vida!
Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.
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