sábado, 29 de outubro de 2022

Carlos Drummond de Andrade(Trem de Contos) Vagões 76, 77 e 78


EXPERIÊNCIA


O arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e cassetete eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.

Contudo, a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente, não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo, onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos, que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:

— Daqui por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher dele.

O arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e fazia coisas sem sentido.
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FURTO DE FLOR

Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava, e eu furtei a flor.

Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida. Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem.

Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via morrer.

Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:

— Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!
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GÊMEOS

Paulo nasceu gêmeo, embora sua mãe só houvesse dado à luz um filho. São dessas coisas da vida. Paulo sentia-se profunda, visceralmente gêmeo e, por falta de irmão visível, considerava-se gêmeo de si mesmo. Os pais achavam estranha essa conduta e esforçavam-se por dar um irmão a Paulo. Não veio. Adotaram um menino. Paulo não quis tomar conhecimento dele.

Especialistas norte-americanos foram consultados, e a todos Paulo respondia, convicto:

— Sou gêmeo, e daí?

Tratava-se a si mesmo como dois, convidava o irmão para passear, estudavam juntos, brigavam, faziam pazes, tinham duas namoradas distintas, que não compreendiam nada, e às vezes trocavam de Paulo para Paulo. Que diferença fazia?

Um dia Paulo decidiu separar-se do outro. Gêmeos se cansam. A separação foi dolorosa, com arrependimento, reconciliação, novos conflitos. Os dois que havia em Paulo já não se entendiam mesmo. E Paulo teve uma ideia sinistra: eliminar o outro. Logo se arrependeu e preferiu eliminar só a si próprio. O outro não deixou. Paulo chorou, emocionado. O outro era tão melhor do que ele!

— Nem tanto — confessou o outro. — Se você se matar, eu fico sem existência possível, isso não me convém. Sejamos egoístas, Paulo.

— Mas ficou tão chata essa vida a dois.

— Tenho uma ideia. E se nos tornarmos trigêmeos? Assim a conversa fica mais variada.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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