sábado, 18 de fevereiro de 2012

Ademar Macedo (Carnaval em Trova e Soneto)


Sambando quase pelada
no Bloco do “Vai sem Medo”,
Paulete foi mais cantada
que o refrão do samba-enredo!
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Durante o pagode inteiro,
foi aquele repeteco:
ela - agitando o pandeiro;
e eu atrás... no reco-reco!
–ANTONIO C. TEIXEIRA PINTO/DF–

Já que hoje tudo é modismo,
sem se trocar, a Maria
vai da praia de nudismo
para o baile-à-fantasia!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Na fantasia de Diabo,
gastou ínfima quantia...
Só comprou tridente e rabo,
que os chifres já possuía!
–EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ–

O Cornélio – Que ironia! –
vai de touro ao carnaval!
O couro é da fantasia...
mas o chifre... é original!
–HELOISA ZANCONATO PINTO/MG–

Sem máscara e fantasia
cuca cheia, já doidão,
lá se vai o Zé Maria
no bloco do garrafão...
–JOSÉ MOREIRA MONTEIRO/RJ–

Foi visto pegando a “bicha”
na terça de carnaval...
- Não julgue e nem faça rixa...
Ele estava em Portugal!
–JOSÉ ROBERTO RODRIGUES/PA–

No carnaval se proteja,
Se previna e se controle,
Pois sob ação da cerveja
Pode aumentar sua prole.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Assustado, constatou,
após dias de folia,
que a bruxa de quem gostou
não usava fantasia.
–MARIA BICALHO BRANDT/MG–

No carnaval, tem mania
de se vestir de ladrão;
mas, tirando a fantasia,
não muda de profissão!...
–RODOLPHO ABBUD/RJ–

Na fantasia que usava,
de “Brasil”, no Carnaval,
volta e meia ela mostrava
o “distrito federal”!
–VANDA F. QUEIROZ/PR–

Desfilou lá na Avenida
Marquês de Sapucaí,
bebeu tanto, sem medida,
que acordou na UTI !!!
–VÂNIA SOUZA ENNES/PR–

Minha mulher é nanica,
mas na cama é colossal:
ronca mais do que cuíca
na terça de carnaval!...
–WANDA DE PAULA MOURTHÉ/MG–

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–EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ–
A FANTASIA

O carnaval chegava alegremente,
e o bloco, preparando alegorias,
reuniu seu enorme contingente
para ultimar os planos das folias...

O enredo tinha Adão, Eva e serpente,
e o paraíso (que era em nossos dias).
Mas um problema surge, de repente,
com uma das mais simples fantasias.

É que o traje do Adão selecionado
mudou a sua norma de feitura,
por exibir um porte avantajado.

E em vez de usar-se a folha de parreira,
para evitar atritos com a censura,
usou-se a folha de uma bananeira!

–PEDRO MELLO/SP–
CONSAGRAÇÃO.

Cansado do "jejum" que a sua idade
lhe impôs à atividade sexual,
o vovô se animou com a novidade
de que o Viagra não faria mal...

Cheio de amor pra dar e de Ansiedade,
Alfredo foi pular o Carnaval...
E na Sapucaí, uma beldade
fá-lo sentir-se forte e jovial...

Mas na hora "H"... seu coração se abate...
Alfredo é posto fora de combate,
mas sucumbe feliz nosso ancião:

É velado com grande galhardia
e, escondendo o "tamanho" da alegria,
flores a mais enfeitam seu caixão...

–MARCOS MEDEIROS/RN–
MEU CARNAVAL...

Apertando a cavaleira
num cantinho da latada
ficava de pá virada
sem o freio na ladeira.

Naquele tempo era forte
na função de conquistar
não deixando nem passar
mosquito de menor porte.

Esbanjei muita alegria
nessa minha fantasia
de tremendo garanhão,

com ela no matagal
brinquei muito carnaval
nas quebradas do sertão.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Trova 219 - Nemésio Prata (Fortaleza/CE)

J. G. De Araujo Jorge (O Carnaval de Cada Um)


No fundo mesmo, não gosto de carnaval. (Nunca me encontro no palco: sou sempre espectador). Como não gosto também de todas as grandes festas coletivas, antecipadamente estabelecidas pelo calendário. Ninguém nos pergunta se estamos felizes ou desesperados. É dia de felicidade, então, toca a pular e a cantar!

Como se fosse possível estabelecer por decreto: hoje é dia de ficar triste; amanhã, é dia de amar; depois é dia de ficar só; e no Natal, e no último dia do ano, e nos dias de carnaval, a ordem é rir, brincar, ninguém tem direito de estragar a festa dos outros.

E obedecendo a esta ordem, possuída por imprevista e repentina loucura, toda uma multidão se agita num transe incontrolável, numa explosão instintiva, sonora e colorida como uma mostra de fogos de artifício.

Vocês me desculpem esta conversa desmancha-prazer. Sei que o defeito é meu. Ninguém tem nada com minha tristeza, com o meu cansaço, com as minhas frustrações. Ó benditos os felizes, os realizados, os que conquistaram essa cômoda e sonhada felicidade horizontal!

Paro no meio do caminho, ao cair da tarde, com os olhos e o coração cheios de noite, e vejo que estou perdido. Cada vez mais insatisfeito, cada vez mais, partindo...

Há os que têm a coragem de uma felicidade dopada, artificial. Para se misturarem com a alegria alheia, e não destoarem, embebedam-se. Fogem de si mesmos, pela porta dos fundos. Covardia? Sei lá! Mas não é de meu feitio. Sempre vivi o pouco que colhi, plenamente. Foram migalhas, que importa? Mas saboreei-as, lentamente, com todos os sentidos, como um provador de vinhos. Embriaguez, só com amor verdadeiro, com a própria vida. Por isso já confessei:

Temo as grandes alegrias,
o carnaval quando explode,
pois minha alma nesses dias
quer ser feliz e não pode...”


Não sou de carnaval. Nunca fui. Mais moço, muitas vezes, confesso que me deixei levar pelo arrastão. Mas meu fígado - um velho policial - sempre barrou minhas fugas para a alegria. Naquele poemeto de “Harpa Submersa” já o denunciei:

“O fígado - esse infame policial - não me entrega o passaporte/ para as viagens que eu realizaria.../ e me obriga, como um condenado, a escutar, dia após dia,/ meus entediados passos sem saída no pátio do presídio./ Apenas, vez em quando, uma espiadela sobre os altos muros/ um rápido olhar para a vida distante/ onde homens e mulheres sonham e se confundem./ Em vão tenho tentado a fuga, ele está sempre presente/ e me derruba como um policial a cada nova tentativa.../ Ah! Não ter fígado! Ter o mundo ao alcance do sonho, em seis doses de uísque...”

Já se foi o tempo em que tentava escalar o muro de minha tristeza, e escapar por três dias e noites, mesmo com o velho “tira” violento, a desancar-me com suas borrachas, deixando-me imprestável na quarta-feira de cinzas...

O carnaval sempre me amedrontou, não como a uma criança. Muito mais por ele próprio que pelas máscaras de seus foliões, que, estas, afinal, até me distraem.

Não sei porquê. Quem sabe a resposta esteja na minha trovinha:

“Por certo a solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração
no meio de muita gente...”


Mas, sentindo-me à margem, consigo às vezes, distrair-me com a alegria dos outros. Afinal, no carnaval, ela não faz tanto mal como em outras ocasiões. Talvez porque não nos pareça autêntica, encerre algo de teatral, de representada. Me deixo, por isso, ficar na calçada, a ver a rua humana que passa como um rio de euforias e esquecimentos.

Tenho assistido a muitos carnavais. E o que realmente me agrada no carnaval não é tanto a expressão coletiva, a apresentação dos grandes blocos, ranchos, sociedades, escolas de samba, estas, por si só, um espetáculo à parte. Mas o carnaval individual, pequeno, o carnaval no singular, de cada um. Dos foliões que não bebem, que são centelhas de pura e lúcida alegria, e que antes de divertirem os outros estão realmente se divertindo a si próprios. E é observando esses tipos de rua que quase me convenço de que o brasileiro é um povo alegre, de música alegre, em que pesem as palavras do poeta que viu a nossa música “a flor amorosa de três raças tristes”.

A grande festa não é apenas uma válvula de escape para seus impulsos recalcados, para suas tristezas irremediáveis, suas preocupações de todo dia. É também a oportunidade para que se reencontre a si mesmo, para que tire a máscara que é obrigado a usar durante trezentos e poucos dias no coração.

Nisto resumo meu carnaval: observar o carnaval dos autênticos foliões, cuja presença vale por uma festa! E que inveja dessa alegria acesa como uma chama colorida, a consumir-se numa emoção verdadeira! Que inveja desse mascarado que não precisa de se mascarar (qualquer que seja a sua fantasia) porque traz em si a alma do próprio carnaval.

Em sua homenagem, aqui fica uma lembrança (um poemeto do livro “Amo!”), justamente uma lembrança de

CARNAVAL

Ela passou na minha vida vazia
de boêmio e sentimental,
como passa num ano de tristezas
o relâmpago de alegria do carnaval...

Seus braços me envolveram como serpentinas
frágeis, de papel,
e se romperam, como as serpentinas
que se arrebentam quando o vento passa
e se soltam no céu...

Ela passou na minha vida, assim
como passa, na monotonia
de uma existência banal,
e furtiva beleza e a loucura de um dia
de carnaval...

Nossa história - o romance desse dia -
sem ódio, sem despeito, sem rancor, sem ciúme,
nem podemos lembrar,

teve o destino irreal de toda fantasia
e a existência de um jato de lança-perfume
atravessando o ar...

O nome dela, não sei;
ela não sabe o meu, - que importa ?- não faz mal...
Não fossemos nós dois apenas fantasias
não fosse a nossa história apenas carnaval!


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Poesia Africana (Poesia Sem Fronteiras I)


ANA DE SANTANA – Angola
Música Sanguínea


No cimo do tambor
continuar brincando, queria,
mas não,
Cantar o belo,
mas as mãos, os olhos, a carne?
(quanto sofre a carne inconfor-mada)
ter olhos passando tempo
pelo imediato,
eu passo
por aqui, sempre
(como não encontro o infinito)
a angústia no caso
que não há.
Como romper, rasgar
para essa lua entrar,
que luz?
Aonde o sol
e o tempo para soltar a voz,
a fórmula do amar
à força de estar, quem entende?
Oh, discreto riso,
suave tristeza,
olho molhado, olhando-se,
amor fardado (falhado?)
o que será dessa
música sanguínea?
AGNELO REGALLA – Guinéu-Bissau
O Eco do Pranto


Não me digas
Que essa é a voz de uma crian-ça
Não...
A voz da criança
É suave e mansa
É uma voz que dança...
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança
Parece mais
Um grito sem esperança
Um eco
Partindo de fundo de um beco
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança,
Essa é doce e mansa
É uma voz que dança...
Esta parece mais
Um grito sufocado sob um manto
– O Eco do Pranto.
MIA COUTO – Moçambique
Poeta

(ao José Craveirinha)

Escreveste
e toda a tua vida
se tornou um livro.
As páginas
das nossas mãos
são o rio de tuas palavras.
Choveu,
tu não pediste protecção.
A tua boca
encheu-se de raízes
e nós fomos camponeses
lavrando entre sonhos e parágrafos.
Sangraste
mas escondeste a ferida,
recolheste a dor e cantaste.
Agora
ninguém mais
encerra os poços onde bebeste.
Eterna e a água.
Breves são os lábios
que nela humedecem.
AMÉLIA MATAVELE- Moçambique
Insinuados Astros


Deixaram – me muito mais indecisa
Quando os três decididos me vieram disputar
Insinuados astros de mim querendo desfrutar

Cada vez mais decididos
Me deixam sem fôlego mas com vontade
Vontade de me deixar levar e não me conter de verdade

Comecei pelo mar
Sua robustez assustadora
Sua imensa grandeza sedutora, será ele?
Descartei o, de certo modo é tenebroso

Pensei no sol
Este que me aquece os cabelos
Me levanta e me acorda, pode até ser ele

E a lua?
Que exibe o seu bailado mensal
Ilumina e apaixona corações, será?

Como escolher?
Tenho que fazer justiça
Como?

Será o sol? Que vem quando quer e depois de doze
horas desaparece?

Ou se é a lua? Que depois de doze horas desaparece?
CELSO MUNGUAMBE – Moçambique
Solidão


Menino solitário
Seu único amigo é a solidao
Menino solitario
Seu tormento é tristeza
Menino solitario
Seu lar é a solidão

Sua vida sao lamurias
Seus amigos são a dor e a tristeza
Seus conselheiro é a vida

Olhos tristes, de quem
Clama por companhaia
De quem quer que seja
Menos da solidão

Um olhar solitario, sombrio
Uma vida insignificante
Onde a morte parece aproximar-se

E a solidao a estender- se.
NICO TEMBE- Moçambique
Quero Amar-te


Eu sinto-o profundo e forte,
Sinto-o muito real.

Eu sinto-o sem defunto na morte,
Pois é vivo e imortal.

Esta guardado em minha mente,
Neste presente futuro,
Nunca esteve ausente,
Pois a muito procuro-o.

Quero AMAR-TE loucamente,
Na poesia dessa musica,
AMAR-TE simplesmente,
Sem abrigar-me na duvida.

Tu és meu ancestral,
Meu presente e futuro,
Deste AMORimaturo.

Tu és fenomenal,
Minha luz no escuro,
AMO-TE, meu porto seguro!
---
Fontes:
Literatas. Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona.
Maputo, 17 de Fevereiro de 2012 - Ano II - N°18
Maputo, 20 de setembro de 2011 – Ano I – No. 10
Maputo, 06 de setembro de 2011 – Ano I – No. 9

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 485)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Potiguar

Caso chegue à presidência,
sabe o que farei depois?
Abrirei com transparência
a pasta do caixa dois.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


O carnaval do Salgado
foi terminar na prisão.
Só de pirraça, o safado
fantasiou-se de Adão!
–CÉLIO GRUNEWALD/MG–

Uma Trova Premiada


2002 - Belém/PA
Tema: CAROÇO - M/H


Ao velho diz a velhinha,
fungando no seu pescoço:
“Comeu a fruta todinha,
agora chupa o caroço!...”
–IZO GOLDMAN/SP–

Simplesmente Poesia

M O T E : Ademar Macedo
Fiz a “pergunta” ao espelho
que para não me ofender,
disfarçou, ficou vermelho
e não quis me responder!


G L O S A : Lisieux

Fiz a “pergunta” ao espelho
"existe mulher mais bela?
Dá-me aqui o teu conselho:
posso atuar na novela?"

O espelho, eu imagino
que para não me ofender
buscou com cuidado e tino
uma forma de dizer...

E, coitadinho do espelho!
Fez rodeio, embaraçou-se,
disfarçou, ficou vermelho,
engoliu seco, engasgou-se.

Sem poder dizer-me tudo
e por mentir não saber,
ficou cego, surdo, mudo,
e não quis me responder!

Estrofe do Dia

Mulher bonita e cachaça
é coisa que mais adoro,
as vezes por mulher choro
mas depois eu acho graça,
eu chego no meio da praça
com o meu copo na mão,
no bolso nenhum tostão
pra tomar uma birita;
cachaça e mulher bonita
foi a minha perdição.
–ALCIDES GERMANO/PB–

Soneto do Dia

Ilusões de Carnaval
–FRANCISCO MACEDO/RN–


Trabalhou dia e noite, fez serão,
juntou todo o dinheiro, passou fome,
e comprou fantasia de renome
e deste carnaval se fez barão

Ser o rei da folia, a sensação,
escolhera seu novo sobrenome,
vou pegar a mulata e ela não some
antes de desfilar no meu colchão.

Conquistou a mulata mais charmosa,
parecendo uma deusa “verde-e-rosa”,
estaria completo o seu reinado.

Finalmente chega a hora da conquista
e constata, que horror! Essa passista,
era um gay, por sinal, um bem dotado.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Nilto Maciel (Coisas da Natureza)


José Maria teve um sonho horrível. E nem o contou a Maria. Ou devia contá-lo? Não havia almas gêmeas!

José não chegou a biólogo. Alias, nunca chegou à Universidade. Apesar disso, interessava-se sempre por generalidades e curiosidades científicas, especialmente as da área da biologia. Sem esquecer os traços biográficos de alguns cientistas. Assim, conhecia Mendel como poucos mendelianos ou mendelistas, austríacos ou biógrafos do botânico.

Zé-Maria, no entanto, não compreendia tudo das ciências biológicas. Talvez porque lesse excessivo número de livrinhos de divulgação pseudocientífica, do tipo Como fazer enxertos, Novos métodos de implante dentário ou Vida e morte dos parasitas.

Maria não se incomodava com as manias de seu marido. Antes, se sentia orgulhosa da inteligência dele. Se alguém falava de plantas ou animais, ela se lembrava logo dele. “Fale com Zé-Maria. Ele é doutor em buganvílias. Sabe tudo de gafanhotos”.

Se José voltava para casa agarrado a um livrinho, Maria corria aos braços dele. “E agora, sabichão?” Ele ria e mostrava a capa: Assim se produzem gêmeos.

Unidos há alguns anos, José e Maria não tinham filhos. A culpa disso, ele garantia, não vinha dele nem da biologia. Ela retrucava — nem de mim. E o agarrava, como se abraçasse um livrinho.

Confuso, José vasculhava dicionários e enciclopédias, em busca de uma ordem de conhecimentos. Dos gêmeos chegava à mitologia e desta às constelações. “Se tivéssemos filhos — sonhava — eles se chamariam Castor e Pólux”. Dengosa, Maria se amuava. Não, não gostava nada daqueles nomes. Preferia Cosme e Damião. E desfiava um rosário de nomes de santos e mártires do catolicismo.

Cansado de conversas sem termo, Zé-Maria corria atrás de seres minúsculos. Coçava a cabeça, como se aninhasse piolhos. Vinham-lhe à mente os tempos de rapaz. As diversões, as mulheres, as doenças venéreas, os chatos. Revirava os livros à cata de parasitos, anopluros, insetos. Maria conchegava-se dele novamente. “Está lendo o quê, sabichão?” Ele soltava os parasitos e corria atrás de outra curiosidade. Voltava à cadeira agarrado a monstros xifópagos.

José parecia um cidadão muito normal, trabalhador, dedicado ao lar, sem vícios. Não freqüentava bares, não procurava mulheres, não fumava. Elogiavam-no na rua onde morava, na empresa onde trabalhava. Maria, no entanto, reclamava de tanta normalidade. “Vamos ao cinema?” Zé não gostava de cinemas nem de teatros nem de circos nem de zoológicos nem de igrejas. “É ateu?” Respondia com aulas de biologia. E à noite, cansado de anopluros, gêmeos e enxertos, visitava todos os canais da televisão, à cata de notícias bizarras, documentários científicos e filmes de horror. “Maria, vem ver isso”. O locutor falava do homem que havia introduzido no próprio ânus uma cenoura.

Noutras noites José se dedicava a rever desenhos e fotografias de seres anômalos: porcos com duas cabeças, hermafroditos, vegetais enxertados.

E ia para a cama, satisfeito. Maria, contudo, ainda o esperava. “E o porco?” Ele tentava dormir. “Coisas da natureza, mulher”. Ele ria: “Vem cá, meu porquinho de duas cabeças”.

Grunhiam por alguns instantes e depois caíam em sossego. No outro dia ela contava sonhos sem fim. Falava de borboletas azuis, anjinhos e outros seres alados. Ele resmungava, ia trabalhar e voltava coberto de parasitas.

“Você nunca me conta os seus sonhos”, queixava-se Maria. E acolhia-se ao peito de Zé-Maria. “Não tenho sonhos, ou não me lembro deles”. Lembrava-se de monstros xifópagos e queria buscar livros na estante. Com a ponta do dedinho, ela descobria o umbigo dele. E ria. “Sossega, Maria José”. Ela sossegava, mas voltava aos sonhos. “Eu também sonho com borboletas e anjos”.

José sonhava outros sonhos. Aqui devorado por ele mesmo. Ali multiplicado por mil. Ontem unido a Maria. Quatro pernas, quatro braços, duas cabeças. Um monstro. Coisas da natureza.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Pescoço de Girafa na Poeira, contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Machado de Assis (Pai Contra Mãe)


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O conto na íntegra está em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2012/02/machado-de-assis-pai-contra-mae.html
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O conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, publicado em 1906, no livro Relíquias da Casa Velha, insere-se na fase “madura” do autor, de características marcadamente Realistas. Ambienta-se no Rio de Janeiro do século XIX antes da abolição da escravatura, que serve de pano de fundo para a narrativa, não se configurando, porém, como a questão principal. Os aspectos sócio-econômicos das personagens beiram a miséria, com dificuldades muito grandes, dependência e escassez. O pensamento predominante é maquiavélico e capitalista, com destaque para a “coisificação” do ser humano, resumindo os escravos a mercadorias.

Fazendo um descortinamento do perfil psicológico das personagens, ele traz à tona o problema do egoísmo humano e da tibieza de caráter que subjuga o discernimento. A sociedade hipócrita em que se ambienta a narrativa é constantemente ironizada pelo narrador que vê em seus mandos e desmandos uma tentativa de impor a ordem social aos dominados, como se pudesse colocar-lhes uma máscara de folha-de-flandres para impedir seus excessos. A oposição em que se apresentam as personagens é uma briga de iguais que legitima o poder da classe dominante e da qual sai vencedor o mais forte, apesar de sua fraqueza moral e instabilidade emocional.

Narrado em 3ª pessoa, é um dos contos em que o autor apresenta a escravidão da maneira mais impressionante e brutal. A instituição forma uma tela de fundo, um elemento do cenário em que se desenrola a trama. Nesse conto a escravidão é o próprio centro da história. Aliás, na primeira linha do conto, o autor escreve: "A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais". Quando Machado escreveu este conto, a escravidão havia sido abolida há mais de uma década e já parecia algo do passado. Como quem não quer nada, Machado começou o conto como se fosse escrever uma anedotinha sobre uma profissão desaparecida devido ao progresso. O personagem do qual ele fala, Cândido, era um caçador de escravos fugidos que os capturava para entregá-los aos seus senhores. Mas ele não andava por montes e vales, vestido de botas, capa e chapéu grande, seguido por cachorros, como os caçadores de escravos que trabalhavam para os senhores das zonas rurais. Cândido trabalhava na cidade. Seu território de caça eram as ruelas, as espeluncas, os mercados, as saídas das igrejas, as procissões, as aglomerações do porto.

Para os escravos fugidos no meio urbano, a melhor coisa a fazer era misturar-se à população negra, livre, alforriada ou escrava para embaralhar as pistas. Aliás, os anúncios dos jornais da época, fonte documentária extraordinária para os historiadores, descrevem todo tipo de subterfúgio usado por escravos fugidos que buscavam confundir-se com o meio urbano. Havia anúncios do gênero: "Um tal escravo, de tal tamanho, fugiu, mas ele faz semblante de ser livre e é habituado de tal parte da cidade".

Os senhores e as autoridades, é claro, faziam questão de cercar de perto a população escrava e decretavam normas proibindo todo escravo de usar sapatos. Logo, todo negro ou mulato calçado era considerado a princípio como sendo livre ou alforriado. Nessas condições, os escravos fugidos que circulavam na cidade podiam facilmente obter sapatos para evitarem ser interpelados. Isso aumentava a confusão social fazendo recair a suspeita sobre todos os negros livres. Essa situação modificou-se após 1850 quando a imigração de proletários portugueses substituiu-se pouco a pouco os escravos no mercado urbano do Rio de Janeiro. Mesmo que Machado tivesse escrito seu conto mais tarde, após a abolição da escravidão, quando a população branca, brasileira e imigrada, era mais numerosa, seus leitores guardariam na memória a lembrança dessa cidade negra e escravagista da metade do século XIX.

Os escravos urbanos eram alugados. Seus senhores os alugavam a terceiros. Isso conduziu a uma situação particular na qual o senhor empregador do escravo não era seu senhor proprietário. Senhores confeiteiros, padeiros, maçons, marceneiros, vendedores de leilão recrutavam escravos alugados para suas atividades.

Os senhores proprietários de escravos permitiam-lhes o direito de guardar uma parte de seus ganhos a fim de formar um pecúlio que, eventualmente, permitir-lhes-ia comprar sua própria liberdade. Sabe-se que a proporção de escravos que podiam pagar seu próprio preço ao senhor proprietário era muito reduzida. Entretanto, isso representava a recompensa - o estímulo material - que impelia o escravo a trabalhar ainda mais, a fornecer rendimentos ao seu senhor proprietário para aumentar suas chances de comprar sua liberdade. Na situação já descrita do Rio de Janeiro, em que o escravo trabalhava para ganho de um senhor patrão a fim de fornecer uma renda ao seu senhor proprietário, surgia mesmo assim um problema. Isso acontecia quando o senhor patrão explorava o escravo até o esgotamento e a morte, causando, por conseqüência, uma perda não compensada por nenhum benefício para o senhor proprietário que perdia o capital que ele havia investido na compra do cativo. Para cobrir esses riscos, surgiu no Rio de Janeiro companhias de seguro para segurar a vida dos escravos em benefício de seus senhores proprietários.

Eis o contexto social no qual se desenvolviu as atividades de Cândido, caçador de escravos fugidos, personagem central do conto de Machado de Assis. Como ele fazia para ganhar sua vida na cidade? Pela manhã, lia os jornais nos quais havia muitos anúncios de escravos fugidos. Como não havia fotos nos jornais da época, as descrições eram muito detalhadas, assinalando o sotaque do escravo, suas eventuais cicatrizes etc., à maneira da polícia francesa da época no tocante aos condenados a trabalhos forçados que haviam fugido. Essa descrição física comportava pontos imprecisos.

Assim, após ter lido os anúncios e ter tomado notas das características dos escravos fugidos que ele acreditava poder cruzar nas ruas da cidade, Cândido saía para caçar. Com auxílio de uma corda, ele atacava a pessoa que julgava corresponder a um anúncio determinado. Antes de tornar-se um caçador de escravos fugidos, Cândido havia tentado várias profissões sem sucesso. Entretempo, ele havia se casado com Clara, uma jovem orfã que vivia com sua tia.

O casamento de Cândido também pode ser visto como algo que merece destaque. Apesar de ser ele alguém sem grandes ambições e gostar de vida fácil, questiona-se porque se casaria com alguém que não poderia dar-lhe boa vida? Sendo ela submissa e influenciável, infere-se que Clara legitimaria a vida medíocre ambicionada por Cândido Neves.

Por não terem meios de estabelecerem-se por conta própria, o casal morava na casa da tia. Mas eles desejavam muito ter um filho e algum tempo depois Clara engravidou. O bebê ia nascer e a tia estava muito preocupada porque eles não tinham dinheiro, nem profissão fixa, e isso ia trazer problemas. Finalmente, quando Clara deu à luz um menino, a tia a convence a abandonar a criança na Roda dos enjeitados, isto é, tratava-se de um guichê giratório instalado na fachada dos orfanatos; esse dispositivo permitia aos pais depositarem seu filho no anonimato e com toda segurança. Isso existia também em Paris e em várias cidades francesas no século XIX. Logo, a idéia de abandonar um recém-nascido era dolorosa mas, em último caso, não era escandalosa.

Após muito hesitar, o pai, cheio de desespero, pegou o nenê para levá-lo à Roda dos enjeitados do Rio de Janeiro. Antes, ele decidiu tentar, ainda uma vez, obter dinheiro para evitar a infelicidade de perder o filho. Retomou os jornais e suas fichas sobre os escravos fugidos. Selecionou então um anúncio que prometia uma grande recompensa por uma mulata fugida na cidade. O texto descrevia a aparência da escrava, os bairros que ela costumava freqüentar e seu nome: Arminda. Com o dinheiro da recompensa, Cândido podia pagar suas dívidas e ter um descanso. Sobretudo, isso permitiria ao casal ficar com o filho. Após ter relido a descrição dessa escrava, ele teve a impressão de já tê-la visto em um dos bairros do Rio de Janeiro. No caminho que o levava em direção à Roda, ele decidiu deixar o bebê com um de seus conhecidos para tentar, uma última vez, encontrar a mulata em determinadas ruas da cidade. Vai a esse lugar e eis que ele percebe a pessoa em questão. Ele a seguiu quase certo de que se tratava da escrava fugida descrita no anúncio. Chamou-a por seu nome: Arminda. Ela virou-se.

Certo de que era sua presa, Cândido saltou sobre Arminda. Eles se bateram e ela lhe diz suplicando: "estou grávida, me solte, eu serei sua escrava". De fato, no sistema escravagista, também era uso que os indivíduos escondessem e conservassem para seus próprios serviços escravos fugidos pertencentes a terceiros. Cândido recusou e arrastou-a até a casa de seu senhor que morava em um bairro próximo. Machado descreveu bem a seqüência da cena e os leitores desse conto publicado em um jornal da época não tinham nenhuma dificuldade para seguir os itinerários.

Na medida em que eles se aproximavam da casa do senhor, Arminda reagiu ainda mais, ela se debatia e terminou por abortar na entrada da casa. O proprietário de Arminda chegou e deu a recompensa a Cândido. Esse voltou com o dinheiro e, após um pequeno suspense, recuperou seu nenê.

Sucintamente, chegando na casa dele, viu a tia de sua mulher e contou-lhe o que se passou. É interessante porque aqui a mãe não está presente, é um diálogo em que a mãe não intervém mais, somente a tia. Ele conta-lhe a história de Arminda e de seu aborto.

O narrador do texto é um elemento importante para a construção da ironia nesta narrativa. Em terceira pessoa, como já citado aqui, a sua perspectiva aproxima o leitor do tempo e do espaço através de relatos históricos sobre os fatos que envolviam a escravidão, como na descrição das crueldades das quais os escravos eram vítimas. Pareciam ser transformados em coisas, deixando de ser humanos. Por exemplo, quando fugiam “grande parte era apenas repreendida; havia alguém em casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, por que dinheiro também dói”. O escravo, essa coisa, objeto, mesmo quando fugisse, não poderia sofrer muitos castigos, já que estes poderiam impedi-lo de prestar os serviços necessários a seu senhor, inutilizando-o, causando assim, grande prejuízo.

Quando o narrador comenta “nem todos gostavam da escravidão” e “nem todos gostavam de apanhar pancadas”, qual pessoa gostaria de viver em completa escravidão, à mercê dos mandos e desmandos de alguém e, ainda por cima, levar algumas pancadas? Com sua ironia, parece que é ele, quem dá uma pancada no sistema de escravatura.

A questão da intertextualidade nos textos machadianos com outros textos, pode-se perceber através do processo de construção da personagem principal, Cândido, que do latim significa “alvo”, “puro”, “imaculado”. Nome que foi grandemente popularizado pelo título de um livro de Voltaire, sátira ao otimismo de Leibniz, então em voga, que diz que nos encontramos no melhor dos mundos possíveis. É pertinente a comparação do Cândido de Voltaire e o de Machado, já que ambos são responsáveis por ironizar uma idéia vigente ou um sistema: um o otimismo desenfreado; e outro, o sistema da escravidão em que negros são tratados como objetos e não como seres humanos. Podemos dizer que os dois Cândidos estão longe de demonstrar que o mundo em que vivem é o melhor dos mundos possíveis.

O protagonista da obra de Voltaire é também chamado Cândido, o otimista, já que atravessa um sem fim de desventuras e sempre busca encontrar o lado positivo da situação, seguindo os ensinamentos de seu mestre Panglós. O seu caráter é o reflexo de sua alma, é sensível, apaziguador e sensato: “o seu rosto era o espelho da alma. Era de entendimento claro e espírito simples; e foi essa a razão por que lhe deram o nome de Cândido. Aqui pode-se dizer que reside a ironia do Cândido machadiano, pois seu caráter não revela nenhuma candura, antes pelo contrário mostra-se insensível ao aborto da escrava, é extremamente desumano arrastando-a pelas ruas até a casa do seu senhor, pois o que realmente importa para ele é conseguir alcançar o seu propósito, que é ficar com o seu filho. O egoísmo é sua marca principal.

A idéia de progresso e perfeição na citada obra de Voltaire está basicamente ligada ao trabalho: “quando o homem foi posto no jardim do Éden, foi ali posto para trabalhar, ut opereratur eum, o que prova que não foi criado para repouso”. Voltaire faz um homem tornar-se perfeito, além de dar-lhe melhores condições de vida, ou seja, ninguém é realmente feliz até que comece a trabalhar. Extremamente irônico, Machado constrói um Cândido que tem uma aversão ao trabalho, para ele todo oficio é custoso, além disso, muitas vezes, quem trabalha não recebe o que merece. Assim seus “empregos foram deixados pouco depois de obtidos". Então lhe restou o oficio de pegar escravos fugidos, já que este estava destinado aos inaptos para outros trabalhos, como era o seu caso. Ele, porém, tinha necessidade de estabilidade, e considerava isso má sorte ou infelicidade constante, ao contrário do Cândido de Voltaire, sempre otimista. Este, todavia, no fim da obra, aceita que é mais importante a ação sobre a reflexão filosófica. Melhor que ficar pensando nos dramas existenciais é colocar-se a trabalhar, pois só o trabalho pode ser o remédio para muitos males, o que não pensa o Candinho de Machado.

É conveniente também citar a ironia presente na construção de duas personagens do conto. Clara, cujo nome do latim significa “brilhante”, “luzente”, “ilustre”, além da tonalidade, seu nome é ligado ao brilho (de distinção). Distinção essa não revelada por sua personalidade que mesmo em meio à perda de seu filho, não esboça nenhuma reação e é sempre submissa aos desmandos da tia. Mônica, a tia, significa só, sozinha, viúva, o que não acontece no texto, pois está, geralmente, perto do casal, abrigando-os, participando de suas decisões, opinando, não fica sozinha, vive em companhia dos dois.

Para dar verossimilhança aos fatos e reforçar a ironia à escravatura e à diminuição dos seres, o espaço ambiente, na cidade do Rio de Janeiro, é fundamental, pois sabe-se que os nomes das ruas em que se desenrola a ação, são nomes reais, e que muitos são os mesmos até hoje. Fato que torna essa narrativa extremamente passível de verossimilhança externa.

Machado de Assis apresenta um pessimismo, cuja fonte está em Schopenhauer, pensador alemão, que afirmava que a essência do universo é a vontade ou o querer, entidade da qual emana a parte verdadeira dos indivíduos. Mas a vontade, tanto em estado cósmico quanto individual, é má, pois provoca a agitação, o egoísmo, o ciúme. Por isso a personagem principal age como age, coloca a sua vontade de continuar com o filho acima de qualquer outra coisa, por isso é levado a agir com egoísmo, luta corpo a corpo com a escrava para poder entregá-la a seu senhor, e receber o dinheiro da recompensa, sem ao menos pensar que poderia agir de outra forma para não maltratá-la, já que estava grávida.

Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, relaciona trinta e uma funções ao estudar, pormenorizadamente, contos populares russos, porém, identificam-se algumas destas facilmente neste conto de Machado de Assis. Através delas pode-se perceber como se desenrolou a ação da personagem principal, dentro de um enredo curto, sendo ele um pai que vai lutar para continuar com seu filho, a ironia aqui consiste em não ser a mãe a responsável por essa luta, já que em nossa concepção, a mãe é mais ligada ao filho, por isso mais difícil perdê-lo.

Na função "afastamento", pode-se salientar a tentativa de Candinho em deixar o ócio em que vivia e aprender um ofício, já que agora estava apaixonado por Clara e queria ter em que trabalhar quando casasse.

Na função definida como "ardil", o Cândido Neves sofreu com as interferências da Tia Mônica que era contra o casamento da sobrinha com a nossa personagem e também das amigas de Clara que “tentaram arredá-la do passo que ia dar”.

Na função que trata da reação do herói, Candinho ficou muito triste por que agora ele tinha um filho para sustentar, as dificuldades aumentaram e ele, que agora virara caçador de escravos fugitivos, não conseguia empreitada que lhe rendesse algum dinheiro.

Em outra função, o herói luta para conquistar um objeto, quando a nossa personagem descobriu em suas notas de escravos fugidos o anúncio da fuga de uma mulata em que a gratificação subia a cem mil-réis, achar a escrava seria a salvação, não teria que entregar seu filho à roda de enjeitados como queria a tia de sua mulher: “...agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves. Saiu de manhã a ver e indagar...”.

Pode-se salientar também a presença da função definida como "perseguição" quando Cândido, ao ir entregar seu filho, encontrou por acaso a escrava fugitiva, deixou o filho em uma farmácia e saiu em sua perseguição: “atravessou a rua, até o ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma”.

Em outra função, a tarefa é realizada e o herói é reconhecido. A nossa personagem captura a escrava, entrega-a a seu dono, e recebe a recompensa e volta para casa entre lágrimas com seu filho nos braços. Tia Mônica que não queria saber da criança, ouve a explicação e perdoa a volta do pequeno, uma vez que ele trazia um bom dinheiro para a subsistência da família.

Tendo em vista os aspectos observados, acredita-se que Machado ao construir este conto utilizou elementos que acetuam o tom irônico de suas palavras.

Fontes:
Izaura da Silva Cabral, Espéculo, Revista de estudos literários, Universidad Complutense de Madrid
Denisia Gomes Pimenta, 3º período do curso de Letras
Luiz Felipe de Alencastro, Professor de História do Brasil, Universidade Paris IV.
Passeiweb

Ialmar Pio Schneider (Soneto de Amor)


Quisera que tu fosses mais selvagem
e fugisses de mim sem complacência
quando procuro unir nossa existência
para juntos seguirmos mesma viagem...

Muito mais haveria eu de sofrer,
no entanto fora doce o sofrimento
pois a força do amor que hoje alimento
seria muito maior no meu viver.

E quando, finalmente, em ânsia louca
eu depusesse um beijo em tua boca
seria muito melhor a glória da conquista

porque recordaria o sacrifício
de quanto se requer neste artifício
de ser amado assim como um artista !

Pedro Malasartes (Tema Bíblico)


Pedro Malasartes estava trabalhando para o padre. O esperto sacerdote assou uma leitoa, mas não queria que o Malasartes provasse do seu banquete. Para isso, afirmou que só comeria daquela carne quem conhecesse tema bíblico. Pôs a leitoa na mesa e disse:

-"Assim como Pedro cortou a orelha de Malco, eu corto a orelha desta leitoa", e a orelha da leitora foi para o seu prato.

O sacristão se aproximou e disse: -"Assim como a cabeça de João Batista foi cortada e posta em um prato, eu corto a cabeça desta leitoa", e assim foi feito.

Pensava o reverendo que Pedro não conhecesse nada dos evangelhos. A essa altura, aproximou-se o Pedro e disse: -"Assim como José de Arimatéia carregou o corpo de Cristo, eu carrego o corpo desta leitoa".

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ester Figueiredo (No Compasso da Trova)


Estas rugas no seu rosto
que a deixam amargurada
formam marcas de desgosto
por amar sem ser amada.

O teu carinho de amante,
tão ardente e sem pudor
eu desejo a todo instante
que me dês com muito amor.

Quando escrevo minhas trovas,
sem saber como e porque,
sinto que são como provas
do meu amor por você.

Neste instante derradeiro
em que nada mais restou
sou errante marinheiro
que na saudade afundou...

Este orgulho que carregas,
insano,dentro do peito,
foge,tão logo te entregas
de corpo e alma em meu leito.

Fonte:
Trovas enviadas pela trovadora

Trova Ecológica 76 - Wagner Marques Lopes (MG)

Hermoclydes S. Franco (Roseiras de Maringá)


Na Revista TRADIÇÃO,
roseiras de Maringá
nos trazem recordação
de quando estivemos lá!...

Página onze, ilustrada
com fotos alvissareiras,
traz Maringá enfeitada
por bouganvíleas-roseiras!...

São bouganvíleas-roseiras
que se espalham na cidade...
Tão frondosas e altaneiras,
trazem paz...felicidade...

Na Luiz Teixeira Mendes,
Enfileiradas, vistosas,
florindo parecem “duendes”
do Bem... espargindo rosas...

E quando dezembro chega,
na floração divinal,
cada ramo se aconchega
como a saudar o NATAL!...

Fonte:
O Autor

Clevane Pessoa (Consumidores do Medo)

Nilto Maciel (Ode à Tarde)


Um passarinho cansou de voar e pousou num galho. Cantou uma ode à tarde e tencionou alimentar-se. Voou ao chão e defrontou uma serpente. O guizo dela agitou-se.

— Por que me olhas assim, cascavel?

O pássaro deu um saltinho para trás. Melhor não esperar resposta. Saltitou, deu pequenos vôos ao redor do ofídio.

— Tu me odeias porque não sabes voar, não é? Ora, se voasses, o que seria dos pequenos seres como eu? Contenta-te com rastejar.

Cantou trecho da ode à tarde e riu.

— Também me odeias porque não sabes cantar? Eu canto porque não conheço o ódio.

Calada, a serpente mirava o passarinho. E o seduzia com os olhos. Falando e cantando, a avezinha também mirava a cobra.

E deu-se o bote.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Pescoço de Girafa na Poeira, contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

J. G. de Araújo Jorge (Nunca Se Chega a Paris a Primeira Vez)


“Ton souvenir em moi luit comme um ostensoir!”
(Baudelaire)


Como homem e como poeta vou carregando um pequeno drama: conheci Paris muito cedo, com dezoito anos, e receio revê-la tarde demais. Há idade para se conhecer Paris, como há idade, por exemplo, para se beber. Muito jovens, não bebemos: apenas nos embriagamos; muito velhos, o fígado, “esse infame policial”, nos mantém temerosos, e já não podemos escalar os muros ao redor, ou tentar fugas ao encontro da vida e do sonho.

Na verdade, não conheci Paris; olhei-a apenas nos olhos. E, como é natural, a Paris que encontrei foi a do Folies Bergère, do Maison dês Nudistes, do velho Moulin Rouge, dos bares alegres, dos cafés mundanos se espraiando pelas largas calçadas dos boulevards.

Era uma mocidade em férias, um adolescente poeta brasileiro que fora a Portugal numa caravana de estudantes, e que, depois, se perdera pela Europa enquanto os seus colegas voltavam ao Brasil.

Lembro-me daquela noite em que saltei na Gare du Nord, vindo do Havre. De maleta em punho, antes de ir para o hotel, eu só pensava numa coisa: ver a Torre Eiffel. Queria me convencer de que aquilo era Paris, que não estava sonhando. E só quando descortinei do alto do Trocadero, no Champs de Mars, a sobra do seu vulto sobre o fundo iluminado da noite parisiense, me dei por satisfeito.

Mas operou-se, então, em mim, uma repentina transformação, A ânsia da expectativa, do encantamento, transmudou-se numa tranqüila emoção de reconhecimento. De repente, percebi que nunca se chega a Paris pela primeira vez. Eu já tinha estado ali, certamente - quando, não sabia, - e aquelas ruas, aqueles monumentos, aquela paisagem, tudo me era familiar. Não conseguia olhar com olhos de inédito, nem experimentar a emoção do forasteiro diante de um lugar desconhecido. E a impressão iria confirmar-se depois, com mais vagar, enquanto sobrevoava Paris, seus boulevards, seus teatros, cabarés e lugares pitorescos. Era como se estivesse retornando a uma cidade de onde partira na infância, talvez. Estava revendo Paris.

De repente, retocava a paisagem esbatida com nova presença. Eu já passara antes por aqueles vendedores de livros e gravuras, com seus mostruários debruçados sobre o Sena; aquela pesada Notre Dame, povoada de história e de lendas, com seus nichos de pedra e seus apóstolos, com seu pequeno jardim e seus pombos, me parecia tão reconhecida como a igrejinha de S. Sebastião, se pudesse revê-la, nas barrancas do rio Acre; aquelas ruas do Quartier Latin, pululando de estudantes, e Montmartre, e Pigale, com seus cabarés, seus bares e cafés literários, eram um mundo que vinha à tona de regiões imponderáveis.

Poderia cruzar em Montmartre por La Goulue ou por Jane Avril, vindas do Can-Can, ou das pinturas de Toulouse Lautrec; encontrar no Quartier Latin os estudantes pobres e as costureiras românticas de La Bohème...

Ninguém chega a Paris pela primeira vez. É impossível. Todos nós nascemos, vivemos, amamos, morremos em Paris em infinitas encarnações. Nélson Rodrigues diria que o abominável Homem das Neves, o mais branco zulu africano, ou o mais frígido esquimó da Groelândia morreu de amores por Paris sem saber. Como o mar, como o céu, como o sol, Paris está em toda parte: não é apenas uma referencia geográfica, ou mais uma cidade. Amá-la não desnacionaliza, antes, amplia o nosso amor até os limites do universal. O mais ferrenho patriota, ao lado do Hino Nacional de sua terra, entoa, no coração, a sua Marselhesa. Paris está em nosso sangue, no nosso espírito, na infância, na adolescência, em todas as idades. É História, nos livros escolares - Joana dÁrc, Maria Antonieta, Napoleão,- romance e ficção, em Júlio Verne, Alexandre Dumas, Victor Hugo.

Literariamente, moramos em Paris. Clássicos, românticos, parnasianos, simbolistas, foram vizinhos e companheiros de seus mestres: Ronsard, Musset, Verlaine, Baudelaire. Somos, por isso, o Petit Trianon.

É como se o salão de Nodier abrisse suas janelas, não para a rua Sully e a ilha de Louvier, mas para a Rua do Ouvidor, ou para a Glória... E já que o curso destas considerações me levou aos Nodier, lembro-me daquela que foi a namorada de três poetas, a musa do romantismo francês, e a quem foram dedicadas as mais belas poesias de amor: Marie Nodier.

Uma dessas poesias, um soneto, escreveu-o um poeta menor, então quase desconhecido, Félix Arvers, no mesmo álbum em que figuram originais autografados de Musset, Victor Hugo, Vigny, Lamartine, Saint-Beuve. A França vivia seu apogeu romântico.

A melhor homenagem a Paris -a cidade luz dos turistas - a capital do amor e da poesia, para os amantes e poetas de todo mundo, será fechar esta página com o mais célebre soneto de amor de todas as literaturas. Traduzi-o, ainda agora, para a coletânea “Os mais belos sonetos que o Amor inspirou”, volume III:

SONETO DE ARVERS

Na alma tenho um segredo e na vida um mistério
um grande e eterno amor, num momento irrompido;
é um mal sem esperança, e assim, profundo e sério,
aquela que o causou nem sabe que é nascido.
Azar! Passo a seu lado, em vão, despercebido,
portanto, sempre só, sem nenhum refrigério,
e hei de chegar ao fim, à campa, ao cemitério,
nada ousando pedir ou tendo recebido.

E ela que o céu criou boa e terna, hei de ver
seu caminho a seguir, e a ouvir, sem entender,
o murmúrio de amor que a seus pés se erguerá;

a um austero dever, piedosa, se desvela,
e dirá quando ler meus versos cheios dela:
- “Que mulher será essa?”... e não compreenderá.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 484)

Uma Trova de Ademar
Uma Trova Nacional

Deus com sua Onipotência
usou respingos de amor
para colocar essência
nas pétalas de cada flor!!
CARLOS AIRES/PE–

Uma Trova Potiguar

Deus é eterno, é vitalício...
Não é só questão de fé.
Quem existe, teve início
Deus não existe, Deus É!...
–FRANCISCO MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Eu vi o rio chorando
quando te foste banhar,
por não poder te banhando,
dar-te um abraço, e ficar...
–ADELMAR TAVARES/PE–

Uma Trova Premiada

2005 - Taubaté/SP
Tema: ECOLÓGICO - Venc.

Ante o terror das queimadas
na floresta, com carinho,
as árvores abraçadas
tentam proteger os ninhos.
–RUTH FARAH/RJ–

Simplesmente Poesia

M O T E :
A gente leva da vida,
A vida que a gente leva...

G L O S A:
–CELSO DA SILVEIRA/RN–

Na estrada longa e comprida
para a viagem do além,
somente os atos do bem
A gente leva da vida,
Nessa hora decidida
em que o espírito se eleva,
fica a matéria na treva
porém deixa de sofrer,
porque ninguém vai saber
A vida que a gente leva...

Estrofe do Dia

Eu não quero viver igual ao nobre
num palácio dourado e majestoso,
e não quero viver todo andrajoso,
desse jeito que vive o homem pobre.
Esta roupa modesta que me cobre,
é aqui nesta casa que se faz;
eu plantei algodão tempos atrás
e o fio que eu colho eu mesmo teço,
eu só quero na vida o que mereço,
não aceito de menos nem de mais
–BRÁULIO TAVARES/PB–

Soneto do Dia

Imitação
–DIVENEI BOSELI/SP–

A frouxa luz do ocaso, em tintas fortes
estampa no poente, com magia,
a pompa com que faz morrer o dia
que, entanto, já morreu milhões de mortes;

reflete seu carmim fugaz, macia,
bordando minha fronha, nuns recortes,
que eu penso ver uns lábios de consortes,
buscando em mim o beijo que sacia…

Mas, desce a noite com seu crepe largo,
entra meu quarto a dentro sem embargo
e ensombra minha sombra em minha cama..

Nesse torpor de morte, em paz medonha,
eu beijo a boca que supus na fronha,
com a volúpia que só tem quem ama!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Marcelo Spalding (O Centenário de Contos Gauchescos)


Alguns livros marcam uma geração, outros uma nação. Os Lusíadas se confundem com a formação da nação lusa, A Divina Comédia forjou o idioma italiano, assim como as obras de Walter Scott e Shakespeare foram fundamentais para os ingleses. No Brasil, temos os romances de Alencar, que esforçou-se por representar a nação brasileira como um todo. Há outros livros, porém, que forjam não nações, mas culturas, em especial culturas regionais que não chegam a se configurar como nacionais. E este é o caso, decididamente, da cultura sul-rio-grandense.

No Rio Grande do Sul, lembramos de nossos heróis, fazemos feriado e comemorações no nosso dia, o 20 de setembro, e cantamos com entusiasmo o Hino Rio-Grandense. Mas esse gaúcho, hoje representado no Laçador, cantado em nossos CTGs e revivido no acampamento farroupilha, é acima de tudo uma figura criada pelos escritores, e poucos foram tão importantes como Simões Lopes Neto. Em Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913), esse pelotense forjou muito da personalidade mítica do gaúcho, sua valentia, sua honra, o amor pela terra e pelo cavalo.

Neste ano, comemora-se exatamente cem anos do lançamento de Contos Gauchescos, obra obrigatória nos bancos escolares e acadêmicos gaúchos, mas que poderia estar no cânone de qualquer seleção de literatura brasileira. A obra traz, além da apresentação em que Blau Nunes surge como narrador, 19 contos: "Trezentas onças", "Negro Bonifácio", "No manatial", "O mate do João Cardoso", "Deve um queijo!", "O boi velho", "Correr eguada", "Chasque do imperador", "Os cabelos da china", "Melancia — Coco verde", "O anjo da vitória", "Contrabandista", "Jogo do osso", "Duelo de Farrapos", "Penar de velhos", "Juca guerra", "Artigos de fé do gaúcho", "Batendo orelha" e "O 'menininho' do presépio".

Todos os contos são narrados por Blau Nunes, que em algumas histórias é protagonista, mas em tantas outros assiste como espectador interessado e atento. Outro aspecto fundamental do livro é a linguagem utilizada, que é representação da linguagem popular falada do gaúcho, mas retrabalhada de forma erudita a ponto de criar uma terceira linguagem rica e particular. O grande Guimarães Rosa, anos mais tarde, e confesadamente inspirado em Simões, utilizaria essa técnica em Grande Sertão: Veredas.

Trezentas Onças, o primeiro conto do livro, é um verdadeiro cartão de visitas da prosa e da linguagem de Simões, com seus gauchismos ("guaiaca, cusco"), espanholismos ("mui, cousa") e ditos populares ("brabo como uma manga de pedras"). A temática também começa a moldar os valores do gaúcho, estando a honra acima de tudo, mesmo quando grande quantia de dinheiro está em jogo.

Este trabalho peculiar com a linguagem exige um pouco do leitor contemporâneo, que talvez tropece em alguns trechos, especialmente nos mais descritivos, como este de "No Manatial": "Vancê acredita?... Nesta manhã, desde cedo, os pica-paus choraram muito nas tronqueiras do curral e nos palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o chão, embaixo das carretas;. e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e a cabeceira da cama, uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar..."

"No Manatial", aliás, é o mais belo — e talvez mais triste — conto do livro, revelando um pouquinho de como nascem as lendas e as assombrações. O que impressiona em Simões é que apesar do linguajar próprio, a narrativa flui com facilidade, tal qual um causo contado de mate na mão:

"E os dois, ¾ a que te pego! a que te largo! ¾ se despencaram por aquele lançante, em direitura ao manantial! E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo, a Maria Altina encostou o rebenque no matungo, que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao tremendal, onde se afundou até as orelhas e começou a patalear, num desespero!. A campeirinha varejada no arranco, sumiu-se logo na fervura preta do lodaçal remexido a patadas!... E como rastro, ficou em cima, boiando, a rosa do penteado."

O livro também pode ser muito interessante como um documento histórico, revelando um pouco do pensamento e da cultura gaúcha (e brasileira) de um século atrás. Em "O Negro Bonifácio", por exemplo, a representação feita da mulher e do negro causa estranheza e até revolta no leitor moderno, mas retrata os valores da época de publicação do texto:

"Os dentes [da Tudinha eram] brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios da morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju... (.) No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomungado, para aguar o pagode."

Este famoso conto, a propósito, retrata a disputa de quatro gaúchos pela Tudinha, "a chinoca mais candongueira que havia naqueles pagos". A disputa evolui para um duelo sangrento, do qual emerge ao final a revelação de uma história de amor secreta, ardente e improvável da bela morena com o Negro Bonifácio.

Talvez o sucesso dos contos seja que sua essência não está nas palavras, nas frases, na linguagem popular retrabalhada, e sim no subtexto, no não-dito, naquilo que só o leitor acostumado com os meandros do gênero conto poderá perceber, como a relação de Tudinha com o Negro.

Hoje, passados cem anos, pode-se dizer que Contos Gauchescos é um clássico em todas as acepções de clássico para Calvino, "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer", "uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe", "livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos". É, enfim, um livro além de seu tempo e de seu espaço, pois embora o espaço seja bem definido, o sul do sul, o pampa gaúcho, o pampa gaúcho de um tempo de guerras, facões, cavalos e heróis, as temáticas são universais: traição, ciúme, honra, mesquinhez, saudades.

Fonte:

Humberto Rodrigues Neto e Gui Oliva (Cochicho)


Humberto:
É gostoso, cara amiga,
de vez em quando um cochicho,
mesmo que dê alguma briga,
ou até um grave bochicho!

Gui Oliva:
Está difícil
até o fim
para dizer
não consigo.

Será mesmo
impossível???
deixa a rima pra lá.

O que faz falta mesmo
é a falta de siso
para versejar,

uma baita falta
de motivo
para cochichar

ao pé do ouvido,
aquele segredo
de meter medo

e provocar
ao final
aquele beijo!

Humberto:
Por ser exímia poetisa,
e esse dom não há quem negue,
tente, não fique indecisa,
que dizer você consegue.

Não faça disso um capricho
pois segredar não é crime;
diga logo esse cochicho
mesmo que o verso não rime!

Se é algo pecaminoso
o que anseia me contar,
conte, boba... É tão gostoso
dessas coisas cochichar.

Abra logo esses arquivos
secretos e fascinantes,
pois lhe darei bons motivos
a uns cochichos bem picantes!

Confie-me, pois, seus segredos
de algum desejo proibido;
conte-os sem pejos ou medos,
bem baixinho ao pé do ouvido!

Conhecerei seu desejo
e o seu sonho de mulher...
Que venha após nosso beijo
tudo mais que Deus quiser!

Todos estão convidados a participar dos Cochichos.
Vamos repassar e cochichar, sim,mandando seus
cochichos para a Gui F Oliva, no e-mail gui.oliva@globo.com.

Humberto.


Fonte:
Textos enviados por Humberto

Sérgio Sant’Anna (Conto (não conto))


Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça vôo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do silêncio ao seu redor. E o que é também o silêncio se não existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou num imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os ouvidos?Mas suponhamos que existissem, um dia, esses ouvidos. Um homem que passasse, por exemplo, com uma carroça e um cavalo. Podemos imaginá-los. O cavalo que passa um dia e depois outro e depois outro, cumprindo sua missão de cavalo: passar puxando uma carroça. Até que um dia veio a cobra e zás: o sangue escorrendo da carne do cavalo. O cavalo propriamente dito – isto é, o cérebro do cavalo-sabe que algo já não vai tão bem quanto antes. Onde estariam certos ruídos, o eco de suas patas atrás de um morro, o correr do riacho muito longe, o cheiro de bosta, essas coisas que dão segurança a um cavalo? Onde está tudo isso, digam-me? O carroceiro olha tristemente para o cavalo: somos apenas nós dois aqui neste espaço, mas o cavalo morre. Relincha, geme, sem entender. Ou entendendo tudo, com seu cérebro de cavalo. Diga-me, cavalinho: o que sente um cavalo diante da morte?

Diga-me mais, cavalinho: o que é a dor de um homem quando não há ninguém por perto? Um homem, por exemplo, que caiu num buraco muito fundo e quebrou as duas pernas. Talvez essa dor devore a si mesma, como uma cobra se engolindo pelo rabo.

Mas tudo isso é nada. Não se param as coisas por causa de um cavalo. Não se param as coisas nem mesmo por causa de um homem. Esse homem que enterrou o cavalo, não sem antes cortar um pedaço de sua carne, para comer mais tarde. E agora o homem tinha que puxar ele mesmo a carroça. E logo afastou do pensamento a dor por causa de seu cavalinho querido. O homem agora tinha até raiva do cavalo, por ele ter morrido. O homem estava com vergonha de que o vissem – ele, um ser humano – puxando uma carroça. Mas por que seria indigno de um ser humano puxar uma carroça? Por que não seria indigno também de um cavalo? Ora, um cavalo não liga para essas coisas, vocês respondem. No que têm toda razão.

E afinal, não podemos saber se o viram ou não, o homem puxando sua carroça, pois nos ocupamos apenas do que se passa aqui, neste espaço, onde nada se passa. Mas de uma coisa temos certeza: esse homem também encontrou um dia sua hora. E talvez – porque não tinha mãe, nem pai, nem mulher, nem filhos nem amigos – ele haja se lembrado, na hora da morte, de seu cavalo. O homem pensou, talvez, que agora iria encontrar-se com o cavalo, do outro lado. Sim, do outro lado: de onde vêm os ecos e o vento e onde se encontram para sempre homens e cavalos.

Por esse outro lado há uma linha tênue, que às vezes se atravessa – uma fronteira. Essa linha, você atravessa, retorna; atravessa outra vez, retorna, recua de medo. Até que um dia vai e não volta mais.

Aquele homem, no tempo em que atravessava este espaço aqui, beirando a fronteira do outro lado, gritava para escutar o eco e sorria para o cavalo. O homem tinha certeza de que o cavalo sorria de volta, com seus enormes dentes amarelos. O homem era louco. Mas o que é a loucura num espaço onde só existem um homem e um cavalo? E talvez o cavalo sorrisse de verdade, sabendo que ali não poderiam acusá-lo de animal maluco e chicoteá-lo por causa isso.

Depois foram embora o homem e o cavalo. O cavalo, para debaixo da terra, alimentar os vermes que também ocupam este espaço, apesar de invisíveis. Principalmente porque não há olhos para vê-los. Já o homem foi morrer mais longe. E ficou de novo este território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Não sabemos por quanto tempo, porque não existe tempo quando não existem coisas, homens, movimentando-se no espaço.

Mas, subitamente, eis que este território é de novo invadido. Vieram outros homens e máquinas, e acenderam fogo, montaram barracas, coisas desse tipo, que os homens fazem. Tudo isso, imaginem, para estender fios em postes de madeira. (Fios telegráficos, explicamos, embora aqui se desconheçam tais nomes e engenhos.) Então o silêncio das noites e dias era quebrado por um tipo diferente de zumbidos. Mas para quem esses zumbidos, se aqui ninguém escuta, a não ser insetos? E de que valem novos zumbidos para insetos, que já os produzem tão bem? Sim, vocês estão certos: os zumbidos destinavam-se a pessoas mais distantes, talvez no lugar onde morreu o dono do cavalo. O que não nos interessa, pois só cuidamos daqui, deste espaço.

Mas, de qualquer modo. Todos eles (insetos, cobras, animaizinhos cujo nome não se conhece, sem nos esquecermos dos vermes, que haviam engordado com a carne do cavalo) sentiram-se melhor quando vieram outros homens – bandidos, com certeza – e roubaram os postes, fios e zumbidos. Agora tudo estava novamente como antes, tudo era normal: um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma pequena cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação – e a cravar seus dentes numa folha.

Às vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um fantasma? Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam, os fantasmas? Mas o fato é que, de repente, escutam-se (ou se acredita escutar) esses lamentos, uma angústia quase silenciosa.

Ah, já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um macaquinho perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês respiram aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais justa que a dor de um menino?

Mas o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino – ou um macaquinho – de papel e tinta. E, depois, se fosse verdade, o menino poderia morrer pela cobra. Ou então matar a cobra e tornar-se um homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um desses gorilas que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos. Talvez porque se recordasse do medo que sentiu da cobra. Mas não se esqueçam, são todos de papel e tinta: o menino, o macaquinho, o macacão, seus urros e os socos que dá no próprio peito cabeludo. Cabelos de papel, naturalmente. E, portanto, não há motivos para sustos.

Pois aqui é somente um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Quase um deserto, onde até os pássaros voam muito alto. Porque depois, em certa ocasião, houve uma aridez tão terrível que os arbustos se queimaram e a cobra foi embora, desiludida. No princípio, os insetos se sentiram muito aliviados, mas logo perceberam como é vazia de emoções a vida dos insetos quando não existe uma cobra a perseguí-los. E também se mandaram, no que logo foram seguidos subterraneamente pelos vermes, que já estavam emagrecendo na ausência de cadáveres.

Então ficou aqui um território ainda mais vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Nem mesmo uma cobra a insinuar-se pelas pedras e pela vegetação. Pois não há vegetação e, muito menos, cobras.

Mas digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar essa história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece. E uma coisa que não é uma história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte sozinha.

Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para se contar.

Fonte:
Italo_Moriconi. Cem melhores contos brasileiros do século

Sérgio Sant'Anna (A Senhorita Simpson)


A narrativa A Senhorita Simpson, de Sérgio Sant'Anna, foi publicada em 1989. A obra serviu de inspiração para o cineasta Bruno Barreto produzir "Bossa Nova", filme lançado em 2000.

O assunto deste conto envolve o choque de valores que se dá entre a puritana protagonista, que parece ter saído das páginas do romancista americano Henry James, e a burguesia carioca com quem convive nas aulas de inglês que ministra em Copacabana.

Em A Senhorita Simpson o ponto de partida é um cursinho de inglês, o Piccadilly, que serve como motivo principal para a narrativa. As inter-relações vitais para o enredo vão surgindo como decorrência dos encontros noturnos para as aulas, tendo como narrador-protagonista Pedro Paulo Silva, um dos alunos da turma, 29 anos, funcionário-público no Tribunal de Justiça, separado da mulher, um casal de filhos, habitando sozinho um pequeno apartamento na Prado Júnior e profundamente envolvido com uma dependência por Valium, como soporífero, e por mulheres, como carência de afeto. De certa forma sugerindo em tom de paródia o tipo romântico: a crise existêncial, uma espécie de obsessão pelo encontro intermeada por um ligeiro temor, a fuga das responsabilidades 'morais' e a fragilidade das relações não duradoura.

A narrativa sugere um pequeno espaço brasileiro, essencialmente urbano: a zona sul da cidade do Rio de Janeiro, Copacabana, a classe-média, o inglês como língua de mercado e da moda, a mulher no trabalho, a separação conjugal, o misticismo oriental e a utopia da trilha pela Bolívia e Peru rumo a Cuzco e Machu-Pichu (roteiro seguido por tantos jovens da época). Tudo isto trabalhado com muita ironia e consciência crítica sobre o ato de narrar, por parte de um autor que certamente esteve no contexto, olhando desconfiado para alguns modelos, apreciando o sabor e a possibilidade do encontro e parecendo ter nunca se submetido ao vício.

Assim, mantendo-se fora do interior da narrativa, Sérgio Sant'Anna distancia-se do mundo de seu protagonista, não se identifica enquanto narrador e através da alteridade transfere para a personagem a vivência da história (em seu duplo sentido: ficção e experiências do passado). A intertextualidade metaficcional enquanto reflexividade consciente do papel da ficção na contemporaneidade, é feita através do 'pastiche' em relação às histórias do gênero "meu tipo inesquecível", que aparecem na "Seleções do Reader's Digest", conforme apresentação feita na epígrafe da obra. E esse roteiro problematizador confunde-se com a própria narração enquanto técnica e modo de compor a narrativa. Como característica pós-modernista, no entanto, em tomo de uma superposição crítica e paródica, ficcional e historiográfica, Sérgio Sant'Anna procura reconstituir o estilo (gênero) ao invés da sensibilidade compositiva mais do que sob uma conceituação estética que privilegie o contexto puramente ideológico do discurso.

O gênero "meu tipo inesquecível" instala-se na figura de Miss Simpson, faixa etária dos 40, sobrevivente de Woodstock, professorinha de inglês no Picadilly e que por um instante se converte na mãe desejada no auxílio geral e no sexo. E aqui também, como em toda história do gênero, aparece um final de "agradeço por tê-lo(a) conhecido", em deferência à importância da personagem narrada para a vida de quem com ele(a), de algum modo, um dia conviveu. Para o protagonista Pedro Paulo Silva, trata-se de Miss Simpson, que "lhe restará sempre na memória" enquanto forma de encontro necessário e vital.

Assim, como técnica de narração, o tema e o enredo parecem juntar-se enquanto arranjo de linguagem e artificio cênico da mera banalidade do ato de viver: a linguagem é simples, objetivando uma aceitabilidade fácil e sugerindo o efeito comum de representação da vida enquanto dissolução do cânone maior. Ao mesmo tempo, no entanto, realçando o caráter da importância do fato para o narrador que tem na vivência do texto elaborado um motivo a mais para viver. Como pretexto de ter o que contar e lembrar. Não importa que quem narre seja deveras um escritor (no sentido de autor em alto grau), mas um narrador cônscio da sua própria fragilidade, um que se identifica (ou pelo menos pode fazê-lo) com tantos outros que pretendem também participar da ação de terem um dia narrado. Desta forma, vivência e ficção se confundem já que o gênero "meu tipo inesquecível" reproduz a verossimilhança com o vivido. E diante da extinção na contemporaneidade da experiência de narrar", quando o ser humano está diluído no meio da multidão e se torna presa fácil da tecnologia, as vivências históricas (não mais experiências propriamente)" tornam-se ocasionais, dissolvidas nos fragmentos colhidos pelos meios de comunicação de massa. Este é o lugar da narrativas do gênero "meu tipo inesquecível": um último refúgio que possibilite às gerações terem ainda o que e onde contar.

O ponto de vista do narrador não é onisciente. Ele não mergulha na vida das demais personagens, que só se formam enquanto incursão cotidiana de relacionamento. Personagens opacas, portanto, sem aprofundamento psicológico. Apresentadas não em si mesmas, mas em relação às demais. Delas só se conhecem as superficialidades que estão presentes no contexto da ação. O próprio Pedro Paulo Silva é construído a partir de migalhas: pequenos detalhes aqui e ali. Assim, através de uma sugestão cênica fragmentada em episódios, o leitor vai se apropriando aos poucos de todo o enredo, o qual também é desprovido de profundeza. E as inter-relações pessoais no contexto da obra se esgotam rápido e fácil. O Piccadilly é quase que o único local de encontro. Nele os alunos da turma de Miss Simpson (sete no total) se conhecem e se entretêm como se fossem jovens adolescentes, possivelmente como um pretexto para o rompimento com o estado diurno do trabalho. As aulas noturnas de inglês funcionam, assim, como um espaço lúdico: próprio para o relaxamento e a desrepressão. Brincadeiras acontecem, num constante passar de bilhetinhos em classe, além das gozações mútuas.

Evidente que a trama maior se dá em tomo do narrador e protagonista Pedro Paulo Silva: seu relacionamento remoto com a ex-esposa Antonieta; sua visita ocasional aos filhos quando lhes conta estórias inventadas; seu ligeiro contato com o pai e amigo advogado, alcoólatra e depois suicida, que vive com a quarta mulher, Maria de Fátima (nome artístico: Mara Regina), num apartamento em Laranjeiras; seu distanciamento da mãe agora casada "com um joalheiro careca e chatísismo"; seu encontro com o misterioso e suspeito Wan-Kim-Lau chinês, amigo de Antonieta, impregnado com a sabedoria oriental e professor de tai-chi-chuan numa academia; sua dependência por Valium antes de dormir e seu infatigável apetite sexual por mulheres movido por uma espécie de descontrole emocional baseado no desejo de livrar-se do tédio.

Em forma de flashes momentâneos, a ação e o cenário vão se compondo, quando a narrativa se propõe a realçar a similitude com as histórias do gênero "meu tipo inesquecível". Assim, o estilo é claro, sem maior ostentação retórica e técnica, a não ser pelo recurso utilizado na passagem em que Pedro Paulo Silva conta para o Gordo sua transa com Ana e o autor sobrepõe simultaneamente e de modo engenhoso três focos narrativos diversos. Também algumas frases de efeito aparecem: "A gente sempre morre antes da última dose" (deixada pelo pai suicida dentro de uma "garrafa quase vazia", antes de se matar); "meu reflexo de passageiro da vida no espelho" (em conotação com a contemporaneidade); "a fragrância de um perfume na memória" (parecendo Marcel Proust); "o alvorecer das utopias" (em analogia ao sonho hippie); "A história se repetia como comédia; esperava-se que não se repetisse como tragédia" (parodiando Karl Marx).

No interior da narrativa uma proposta intertextual aparece enquanto uso constante de um inglês básico, que aqui e ali postula do leitor um mínimo de domínio. E esse cruzamento interlinguístico deriva do Picadilly, onde, através de Miss Simpson, Pedro Paulo Silva e o resto da turma preenchem o vazio de suas próprias histórias com as aventuras vividas pelos Dickinsons, Harrisons e Jones, personagens de uma outra história; o livro didático utilizado.

Por outro lado, as questões sociais e políticas são abandonadas ou, no mais, deixadas à imaginação do leitor enquanto apelo irônico; como exemplo, o episódio da greve no Piccadilly, ironizando maio de 68 e o movimento político brasileiro pós-64. O Matoso, um dos alunos da turma, é pego fumando marijuana no banheiro da escola e um ruidoso Mr. Higgins, o diretor, pretende expulsá-lo pois, embora fosse uma droga leve e que "se disseminara por todas as escolas", conforme argumentara Miss Simpson assumindo a defesa dos alunos, em "- Escolas só de inglês, não -", receoso de que "se aquilo se tomasse um hábito", "o nome do Piccadilly (...) iria por água abaixo". Como se fosse um 'É proibido proibir' a greve então é proposta. No entanto não acontece; Miss Simpson convence o diretor.

Mas, tem-se a alusão a "um marco histórico no movimento estudantil", ao "dinheiro da CIA no negócio"; o eco das "palavras liberty and democracy" e a ovação para que o protagonista Pedro Paulo Silva seja elevado à categoria de "líder revolucionário". A ironia se faz presente, então, de forma completa: em seu caráter ideológico contraditório, já que estabelece um vínculo com a história ao mesmo tempo em que sugere o tema como um passado perdido. Assim, o que ocorrera em termos reais até em desprendimento (enquanto abnegação = sacrifício dos próprios interesses em beneficio de uma causa maior) torna-se agora fragmentos do passado, memória apenas de uma vivência de se 'ter ouvido falar'.

A partir dessa analogia intertextual entre o passado e o presente, entre a novela e as histórias do gênero "meu tipo inesquecível", percebe-se na composição cênica de A Senhorita Simpson a vida aparecendo como o grande intertexto. Já não mais em torno de um 'eu' utópico, indivisível e potente enquanto projeto "liberal humanista", mas de um 'eu' fragmentado e, de repente, se vê no vazio. Vale, então, a lembrança de 'roteiros', não mais como um enredo coeso em tomo de um princípio, um meio e um fim. Mas, enquanto possibilidade de apego a um presente de imagens meio-ambientais (natureza - indivíduo(s) - objetos) que se arranja ou se compõe como ajuntamento de estilhaços visuais: como "um tremendo pôr-do-sol sobre o mar de Copacabana", a "porta pantográfica" do elevador, ou os "reflexos luminosos que estampavam tonalidades fantasmagóricas na pele de Miss Simpson".

O arranjo cênico então sugere 'os olhos a se alimentarem de luz', fixos na possibilidade que o meio-ambiente oferece, uma vez que o passado virou migalhas e já não há mais experiências reais para se narrar: somente vivências ou lembranças momentâneas. Neste ponto, a intertextualidade entre ficção e historiografia propõe a reflexão de que todo o jogo político do passado foi apenas um modo de constructo ideológico enquanto jogo de poder. E a identidade histórica torna-se qualidade apenas narrativa, na arte da composição. Para Pedro Paulo Silva, esse recurso significa procurar a lembrança de seu 'tipo inesquecível' e, conforme sugere Walter Benjamin, "começar tudo de novo", "contentar-se com pouco", operando "a partir de uma tábula rase'. E ele assim faz: fura uma das orelhas para "colocar nela um brinco dourado" e ao completar 30 anos estará deixando para trás não a sua juventude, mas a sua velhice, rumo à Bolívia, Peru, Cuzco e Machu-Pichu.

A senhorita Simpson é o exemplo da terceira fase do autor, onde continua fazendo exercícios metalinguísticos, mas os subordina ironicamente à história que conta. A obra transgride as próprias "convenções" do autor: o diálogo é ágil, mais "realista", sem as massas verbais típicas da sua representação do mundo; há uma nitidez, uma luminosidade que atravessa a narrativa inteira; e, o mais significativo, no final da novela encontramos um dos raros momentos em que o narrador, com simplicidade, endossa o ponto de vista de seu personagem, entregando-se ao texto sem atravessá-lo de ironia: "Aos trinta anos, eu estaria deixando para trás não a minha juventude, mas a minha velhice".

Fonte:
Carlos Eduardo Vieira de Figueiredo, Mestre em Literatura Brasileira, UFSC. Passeiweb.