Entrevista realizada por Ney Gastal para o Caderno de Sábado, do Correio do Povo
Podem achar engraçado, mas não vale rir. Em minha coleção de recortes, esta entrevista com Mário Quintana ficou sem data. Talvez haja explicações: o poeta sentava de frente para mim, na antiga redação do Correio. Eu o via todo dia, aguentava suas caretas, ranzinice, mau humor. Aquela imagem de santo barroco que ele cultivava, com a ajuda de todo o pessoal da redação, não era assim, uma verdade. Mas, também, ele tinha lá seus motivos para ser ranzinza. Ninguém, em toda a redação, era tão atazanado por chatos quanto ele.
Certa manhã, jamais vou esquecer, entrou apressado na redação, veio até minha mesa, me empurrou pedindo licença e foi avisando: "Diz que não estou". E enfiou-se debaixo da mesa de aço. Logo atrás, surgiu redação adentro um dos maiores poetas e chatos que este país já teve. Quintana até era seu amigo e admirador de sua poesia, mas, como a maioria, não aguentava sua chatice pessoal e sempre que podia dava um jeito de sumir. Nem que fosse escorregando para baixo da mesa. Era assim, uma figura tão próxima e íntima (quem já teve um grande poeta escondido debaixo da mesa?) que esqueci de datar sua entrevista. Mas prometo pesquisar, descobrir e - assim que puder - colar aqui o devido registro. Por enquanto, basta dizer que foi publicada no "Caderno de Sábado" do "Correio do Povo", relativo ao 70º aniversário do poeta. (Ney Gastal)
Entrevistar o poeta é como um duelo daqueles de filme antigo, em branco e preto, onde o bandido acaba inapelavelmente encurralado. Entrevistar o poeta é como um duelo, onde ele é o mocinho e nós, sem chance, o bandido. Raros são seus momentos de calma. Na semana de seu aniversário sempre há alguém querendo arrancar dele uma ou outra palavra. Por vezes apenas recusa; outras, lança um olhar desolado em torno, dá de ombros e sujeita-se; outras, ainda, levanta-se e traz o potencial entrevistador até o armário atrás de minha mesa, onde está colocada uma cópia da "Declaração Universal dos Direitos do Homem", e aponta o Artigo XII. Apenas isto, e poucos são os que continuam a insistir. Diz o artigo: "Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência nem a ataques a sua honra ou reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques". Sinto, poeta, mas era preciso que o 'Caderno de Sábado" tivesse uma entrevista. E, afinal, alguém que é nada mais, nada menos, que a identidade secreta do Anjo Malaquias, deve ter um pouco de paciência, não?
MQ: O Anjo Malaquias é uma figura mitológica que criei como símbolo da frustração. Portanto, não se trata do seu autor.
A esta altura da vida, continuas teimando que te deixem em paz, que deixem de lado tua pessoa em função de tua obra. Mas por de trás desta modéstia deve haver uma grande vaidade por tudo que já foi feito. Não é?
MQ: Não se trata de modéstia. É que eu sou muito orgulhoso para ter vaidades, tão próprias dos satisfeitos. Um poeta, mesmo, nunca é um auto-satisfeito.
- Dizem que "os verdadeiros poetas não lêem outros poetas; os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais". Tu, além disto, vives muito tempo dentro da redação do jornal. Ajuda a poetar?
MQ: Tudo ajuda poetar, tudo atrapalha poetar. Mas, nos momentos de criação, onde quer que se esteja, as injunções de ambiente desaparecem na alegria da criação. Poesia é alegria, porque, por mais infeliz que esteja acaso o poeta, se ele consegue expressar isso com toda a felicidade – cadê tristeza?
- Escreveram que terias dito que "Porto Alegre era uma pequena cidade grande; hoje é uma grande cidade pequena". Foi isso? Pelo que ela era é que nunca saíste daqui?
MQ: O que eu disse, ou pretendia dizer, era que Porto Alegre era uma grande cidade pequena e hoje é uma pequena cidade grande. Será que bolei as trocas sem querer? Ou.serão permutáveis os termos da proposição? Mas até as cidades do interior se estão padronizando: lanchonetes, etc. onde estão aqueles antigos cafés e bares espaçados como um salão de dança?
- Como vive o poeta dentro da estrutura desumanizada que é este nosso planeta?
MQ: Há uma infinidade de gente que julga desumanizado o meio em que vive. Mas convém não esquecer que todos os grandes movimentos começaram com pequenas minorias.
- E a Academia Brasileira de Letras, aceitarias participar dela?
MQ: A Academia não convida. A gente é que tem de candidatar-se, solicitar votos pessoalmente, arranjar pistolões. Há gente que não dá para isso. Eu também não.
- O poeta simples é assunto para críticas complexas. Como vês a crítica e como encaras os críticos?
MQ: Gosto da crítica interpretativa. Só não gosto da que condena um poeta pelo que ele não é.
- A tua poesia tem sido efetivamente compreendida pela crítica?
MQ: Augusto Meyer, Carlos Dante de Morais, Fausto Cunha, Guilhermino César e alguns outros não oficialmente críticos antes de tudo "sentiram" a minha poesia e por isso mesmo a compreenderam.
- Quais os poetas que influíram na tua formação? Há entre eles algum gaúcho?
MQ: Primeiro o "Tico-Tico", depois Antônio Nobre, que foi meu companheiro de infância. Ah, e Camões, o velho bruxo!
- Tuas leituras de moço abrangeram a poesia inglesa ou toda tua formação foi através de francesa?
MQ: Apenas através da língua francesa: vim da "Belle Époque"...
- A pergunta clássica: como conceituas tu mesmo a tua poesia?
MQ: Uma poesia profundamente emotiva. Daí, a ter ela atravessado três gerações.
- Voltando um pouco atrás: conta um pouco de tua vivência aqui na redução do "Correio".
MQ: A minha vivência no "Correio" é ótima para a minha saúde espiritual, devido ao bem com que me tratam..
- Pergunta sugerida por um diretor teatral: és um poeta solteiro ou um poeta sem mulher?
MQ: Agora, aos setenta, sou um solteiro viúvo.
- Do cinema de todas as semanas, o que mais te marcou? Há muito e há pouco tempo.
MQ: Há muito tempo "O Cidadão Kane". Recentemente, "Um Estranho no Ninho" e "Cabaret".
- Do cinema para a televisão. É que seguido estás olhando para o aparelho aqui da redação. Gostas ou é porque ele está tão perto de tua mesa?
MQ: Aquelas figuram que se movem na TV causam o efeito sedativo de quando a gente olha a dança das chamas na lareira. Sedativo, desde que não se preste atenção ao que dizem.
- Recebes melhor estudantes que vêm te entrevistar do que jornalistas. Por que a discriminação?
MQ: Os estudantes e as estudantes me fazem voltar à idade deles. Tenho o dom de sempre me achar com a mesma idade das criaturas com quem estou falando. Se há alguma discriminação, deve ser esse o inconsciente motivo.
- O "Caderno H" é composto de frases sobre vários assuntos. Que tal uma frase sobre o "Caderno H"?
MQ: Hummm... Uma coisa inominável?
- Falam de tua solidão, muita gente diz preocupar-se com ela. Mas não me parece que o poeta seja um ser só. Talvez os outros projetem nele suas próprias solidões. Não é?
MQ: O único problema da solidão é saber como preservá-la. Não poder estar só é o que acontece a um indivíduo (?) do rebanho. Tens razão ao dizer que um poeta não te parece um ser só. Tive amigos, sim. Morreram. É difícil estabelecer novas amizades porque uma amizade se baseia em velhas recordações comuns.
- No futuro os estudiosos da literatura brasileira vão esbarrar num muro de silêncio, ao estudarem Mário Quintana. Por que não falas sobre ti, sobre teu passado. Por que este recato tão grande com tuas recordações ?
MQ: A minha biografia está implícita nos meus poemas. Toda confissão não transfigurada pela arte é uma falta de linha, uma presunção. O que é que os outros tem a ver com isso?
- Três poetas da nova geração e do teu agrado?
MQ: Daqui dos pagos ? Ayala, Duclós, Nejar, Trevisan, em ordem alfabética.
- Pretendes repetir Goethe e ser um velho prolífero ou achas que há um momento para silenciar?
MQ: Às vezes tenho momentos de "Lama, lama, sabáctani" e penso que a lagoa secou e só ficou o jacaré. Mas de repente me dá uma coisa, um treco, e sai um poema, uma observação. Isto me alegra por causa de meus leitores, dos meus fregueses de Caderno.
- Projetos?
MQ: Viver.
- Ressentimentos?
MQ: São passageiros.
- Por que respostas tão curtas?
MQ: O laconismo é a essência do estilo.
- Além de dar e suportar entrevistas, o que mais te incomoda?
MQ: É quando ninguém se preocupa comigo.
Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/
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