domingo, 12 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Eternos Românticos)


Eis os verbetes da palavra romântico, no dicionário: “Diz-se dos escritores e artistas que, no começo do Século XIX, abandonaram as regras de composição e estilo dos autores clássicos. Caracterizam-se pela predominância da sensibilidade e da imaginação sobre a razão, pelo individualismo, pelo lirismo”.

De onde se conclui que, quase todos os artistas, quaisquer que sejam os tempos e as escolas, são ou foram românticos. Costumo afirmar, por isso, que o romantismo, não é apenas uma escola literária, mas um estado de espírito. Românticos foram, através dos tempos, e muito antes do Século XIX, as mais altas expressões das letras e das artes.

Aqui mesmo, em crônica anterior, falamos sobre o tema. O homem hoje parece que se envergonha de ser romântico, ou de ser tido como tal. Como se isto fosse um atestado de doença ou de fraqueza.

Continuaremos, no entanto, românticos, graças a Deus. Há alguns anos, alguém escrevendo sobre minha poesia disse que eu era o “último romântico de nossas letras”. Puro engano. O mundo continua, e seguirá povoado por essa espécie imortal para que a arte sobreviva.

Poderíamos parafrasear a expressão euclidiana, e dizer que “o romântico é antes de tudo um forte”. E por quê? Justamente porque fortes são os que têm a capacidade de sentir. E o romântico é o emotivo, o sentimental, o que expõe o coração. Só ele enriquece a vida com as perspectivas infinitas do sentimento e da fantasia. Os frios, os indiferentes, os “materialistas” num sentido puramente social, são os fracos, os temerosos, e, são, portanto, os que não vivem plenamente.

Os românticos são os que enfunam as velas do sonho e se atiram a todas as correntes. Certamente que sofrem. Mas para eles, vida e sofrimento são palavras que se equivalem, que se identificam. Sabem que o temor ao sofrimento só poderá levar a escapadas e enclausuramentos. São os que não têm medo, portanto, os que se aventuram. Os estóicos. Os que captam a vida em todas as direções, embora feridos, angustiados. Os que não se envergonham de chorar. Coisa engraçada é afirmar-se que o mundo de hoje é um mundo de homens de ferro, duros, insensíveis. Como se isto fosse vantagem, ou, que é mais importante, verdade. Se ontem, as armaduras de ferro dos cavaleiros medievais escondiam corações inflamados de ternura florais, de anseios cavalheirescos, hoje, as pesadas roupas dos astronautas protegem igualmente corações cheios de amor e poesia.

Todos nós lemos as declarações dos astronautas ao voltarem do espaço sideral. Eram falas de poetas, deslumbrados com o espetáculo novo de um universo imprevisto. Um deles, o primeiro, declarou de sua cápsula: o mundo é azul!

Que eles são, mesmo, os poetas do espaço. Hoje, eu diria que até a ciência é romântica: ainda à procura da lua dos poetas e dos namorados.

Os jogadores de futebol, que representam homens de um esporte viril, após as grandes vitórias, ou as fragosas derrotas, desmandam-se a chorar, como bebês. E que de estranho há nisso? São, e continuam sendo apenas homens, como os de todas as épocas, quando inflamados ou aterrados pelas emoções violentas. Choram políticos, choram generais, choram artistas. Na televisão, assistimos todos os dias ao espetáculo dos que desgovernam pelo coração, e são por isso sublimes ou heróicos.

Falsa, inteiramente ilusória, a afirmativa apresentada e superficial, de que deixamos de ser românticos.

Sim, o mundo gira, o mundo se transforma, mas o homem continua o mesmo: Macbeth, Otelo, Romeu ou D. Quixote. O coração continua a ser aquele ponto inevitável sobre o qual se apóia uma das pontas do compasso para traçar as figurações e planos.

E as gerações novas?

Os moços do iê-iê-iê, até na aparência são românticos. Restauram as formas de trajar, os exageros requintados de outras épocas. Quando os vemos, nos lembramos dos poetas do fim do século, de cabelos longos, roupas enfeitadas. Sua música, aparentemente “avançada”, trouxe apenas novidades rítmicas, mas o fundo melódico e as letras traem o eterno romantismo. E aí está o “slogan” dos “hippies”: “The Flower’s power”. Uma geração que faz da flor o seu símbolo, o seu estandarte, a sua mensagem de paz e amor, não é uma geração romântica? As desesperadas tentativas de fuga à realidade pelos entorpecentes, pelo LSD, não se assemelham aquela geração de Byron e Musset, dos cansados da vida aos 20 anos, e que tentavam uma última escalada pelo álcool, “fazendo-se” tuberculosos?

Que fale quem quiser. Posso, melhor que ninguém, dar meu testemunho. Desfraldei minha poesia há cerca de trinta anos, e ela aí está como bandeira no topo do mastro. Sabotada ou não, o povo faz ciranda com ela nas ruas. Dizer-se que não há leitores para a poesia é simples mentira. Não só eu vendo meus livros. Augusto dos Anjos, Raul de Leoni, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Vinícius de Morais e tantos outros poetas esgotam edições. E são todos, cada um a seu modo, poetas românticos. Citaria centenas de cartas de meus leitores, e eu disse leitores, não apenas leitoras, que provam a ressonância da poesia, que me agradecem os versos, como alguém com fome agradeceria um pedaço de pão, ou um pouco de água, se tivesse sêde.

O dicionário completa o verbete: ser romântico é ser “devaneador, poético, apaixonado”. Então, somos todos nós. “Quem não for capaz de sonhar, de encontrar belezas, de amar”, “só passou pela vida, não viveu”, como diria o velho Otaviano Rosa.

Dentro do homem mais seco, e empedernido, do espírito mais cético e pragmático, do filosofo mais materialista, há um cérebro e um coração, para pensar e para sentir. E naqueles momentos de coração que salvam a nossa vida, somos todos românticos. O operário que bota tijolo em cima de tijolo, o dia todo, à noite vira poeta diante do mar, em companhia da namorada; a mocinha do balcão que vendeu qualquer coisa, ou o do escritório que bateu faturas, vai depois copiar poesias em seu caderno; o cronista engraçado que se compraz em ridicularizar boleros, vai cantar tangos na boate, depois da terceira dose de uísque; o motorista, que transporta cargas pelos caminhos, faz poesia e humor nos pára-choques do seu caminhão.

Por muitas razões, usamos máscara trezentos e sessenta dias, e só as tiramos às vezes, no carnaval. Há homens que se envergonham de ter coração, o que é grave; procuram esconde-lo, o que é tolo; tentem nega-lo, o que é absurdo. Salvam-se alguns poetas (façam versos ou não) que têm coragem de permanecer poetas, num mundo que pretende negar a poesia, e que tanto precisa dela. Alguns poetas, que, corajosamente não usam máscaras, continuam falando de amor, como os velhos cristãos ou como... os “hippies”...

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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